É muito mais fácil do que se imagina para uma criança abusar do açúcar. Especialmente porque os 25 gramas presentes nas colheradas – o novo limite estipulado pela Associação Americana do Coração para os pequenos acima de 2 anos – dizem respeito apenas ao açúcar de adição. “Chamamos de adicionado aquele que incluímos nas preparações caseiras e também o que faz parte dos alimentos industrializados”, descreve a pediatra Jean Mills, da Universidade Emory, nos Estados Unidos, uma das autoras da diretriz.
Ou seja, além dos cristaizinhos de açúcar utilizados para adoçar uma limonada, entra na conta aquele que já vem embutido em bebidas artificiais, balas, biscoitos, pães e até barras de cereais. “Esse tipo é o que mais nos preocupa. O exagero aumenta o risco de doenças crônicas no futuro, como diabete e hipertensão“, avisa Jean.
A entidade americana tem motivos de sobra para emitir o alerta. A molecada de lá consome até 80 gramas de açúcar adicionado por dia, mais de três vezes o recomendado. O Brasil não fica atrás, infelizmente. Se apenas os lanches intermediários da manhã e da tarde de certos estados fossem pesados todos os dias, no fim do ano teríamos uma montanha de mais de 5 quilos do ingrediente, como revelou recentemente o levantamento Nutri Brasil Infância II, coordenado pela Associação Brasileira de Nutrologia (Abran).
“Em alguns casos, nessas pequenas refeições o consumo ultrapassa o indicado para o dia inteiro”, nota o pediatra e nutrólogo Mauro Fisberg, professor da Universidade Federal de São Paulo e um dos responsáveis pela pesquisa de abrangência nacional. Para ter ideia, a investigação mostrou que, na região Centro-Oeste, os baixinhos de 4 a 6 anos mandam goela abaixo 21 gramas de açúcar só no lanche da tarde. “Consumidas frequentemente, essas altas doses contribuem para a obesidade“, afirma Fisberg.
Veja, não é para banir as guloseimas de vez. Os especialistas são unânimes em dizer que a saída é o consumo consciente – e a educação sobre o assunto tem que começar cedinho. A primeira lição, endossada pelo grupo de cardiologistas americanos, é evitar o açúcar adicionado antes dos 2 anos. “Nessa fase, o paladar está se desenvolvendo. Quando a oferta açucarada se inicia aí, o bebê fica acostumado a esse sabor”, ensina a nutróloga Jocemara Gurmini, da Sociedade Brasileira de Pediatria. Antes do segundo aniversário, o doce degustado deve se restringir ao que vem naturalmente de alimentos como frutas e leite. É o momento de estimular a percepção dos gostos, com apresentação de uma variedade de verduras, legumes e frutos.
Essa indicação, entretanto, não é seguida em boa parte dos lares. Há estimativas de que 60% das meninas e dos meninos com menos de 2 anos comam bolacha, biscoito ou bolo. Para piorar, um terço deles já se esbalda de refrigerante. Em seu documento, os especialistas americanos afirmam que a introdução de bebidas adoçadas artificialmente (como os tais refris e também os sucos de caixinha) no primeiro ano de vida está associada ao maior risco de desenvolver obesidade aos 6 anos. A conclusão não só faz sentido como combina de forma assustadora com a realidade brasileira. Dados recentes apontam que mais de 30% das nossas crianças de 5 a 9 anos sofrem com excesso de peso.
“O elo entre açúcar e obesidade infantil é forte por aqui porque ingerimos mais esse ingrediente do que gordura, diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos”, analisa a endocrinologista pediátrica Louise Cominato, da Universidade de São Paulo. O tal açúcar adicionado é problemático porque é considerado fonte de uma caloria vazia – isto é, ela não vem acompanhada de outros nutrientes. Bem diferente daquele proveniente das frutas e do leite, por exemplo.
E por que o abuso desse ingrediente específico tem deixado os especialistas preocupados? Ora, o açúcar é uma fonte de glicose rapidamente absorvida. Quem abusa, portanto, corre o risco de ver o excedente se depositando pelo corpo de outras formas. “O excesso pode ser processado pelo fígado e virar gordura”, explica Jocemara. É o pontapé inicial do estrago. “Fora o peso, o nível de moléculas gordurosas na circulação pode subir”, aponta Fisberg.
Pronto: eis um terreno fértil para doenças cardiovasculares lá adiante. Se a criança já tiver sobrepeso ou tendência familiar, existe ainda o perigo de encarar a resistência à insulina. Nessa situação, o corpo não consegue aproveitar direito o açúcar, abrindo caminho para o diabete tipo 2. É uma bagunça geral.
“Isso não quer dizer que quem come açúcar ficará obeso. Mas é um fator que pode contribuir para esse quadro e que temos a oportunidade de controlar”, afirma o nutrólogo Carlos Nogueira, da Abran. Ocorre que a busca por moderação enfrenta alguns entraves. Além de muitas vezes o paladar estar viciado no dulçor, hoje não é obrigatório identificar o teor de açúcar na tabela nutricional dos produtos. “E, mesmo que algumas marcas o façam voluntariamente, não existe um padrão. Então o açúcar indicado pode ser o adicionado ou o total”, informa a nutricionista Ana Paula Wolf Tasca Del’Arco, da consultoria Capitão Pão, em São Paulo.
Para não ficar no escuro (e cair num poço açucarado), o jeito é fazer análises cruzadas. Considere, por exemplo, as calorias de cada produto e verifique a lista de ingredientes, que está sempre em ordem decrescente. Portanto, se o açúcar ou outro de seus nomes – frutose, xarope de milho, dextrose, lactose, glucose e por aí vai – for um dos primeiros itens relacionados, é sinal de que ali há doçura extra. E tenha em mente que, em bebidas adoçadas artificialmente, grande parte dos carboidratos é açúcar pra valer. “Nos néctares de fruta, quase 100% dos carboidratos indicados são sacarose ou glicose”, diz Ana Paula.
A sacarose, tirada da cana-de-açúcar, é o tipo que usamos em casa em sucos e receitas e também o mais requisitado pela indústria. “Ele tem índice glicêmico alto, ou seja, provoca picos de glicemia. Mas o ideal é que o carboidrato seja absorvido devagar”, conta Nogueira. É o caso da frutose das frutas, cujo índice glicêmico é considerado mais baixo. Mesmo assim, sua presença não limpa a barra de um alimento processado. Isso porque o xarope desse açúcar, versão que faz sucesso na indústria, traz a substância bem concentrada. Ora, para ingerir o teor de frutose encontrado em uma bebida adoçada artificialmente, teríamos que nos entupir de uva, melancia, banana…
Doçura com bom senso
“A criança tem o direito de comer doces esporadicamente. O segredo está no entendimento de que todo exagero faz mal”, reitera Fisberg. Enquanto as exceções estão liberadas, no cotidiano o controle deve ser mais rígido. Uma dica para os pais é focar no lanchinho da tarde, frequentemente fonte de calorias desnecessárias. “Frutas, queijo branco, pães e cookies integrais são exemplos de opções saudáveis para essas refeições”, sugere Cátia Guerbali, nutricionista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo.
Vale lembrar que quem cresce acostumado com o açúcar sente mais necessidade dele. Aí, a redução precisa ser gradual. Caso contrário, será difícil convencer o pequeno a maneirar. Nessa empreitada, a participação da família é essencial – e não é para tirar o doce da boca da criança. “A educação sobre hábitos alimentares deve abranger todos da casa”, frisa Jocemara. Afinal, não adianta os pais oferecerem uma mexerica de sobremesa ao filho enquanto eles próprios saboreiam uma bola de sorvete. O chororô é garantido e, convenhamos, compreensível.
E os adoçantes?
Por enquanto, só meninos e meninas com prescrição médica devem apostar nos adoçantes artificiais ou itens com zero caloria. “Não há muitos estudos sobre os efeitos dos edulcorantes no organismo infantil. Por isso, recomendamos o uso apenas em casos específicos, como em crianças com diabete e obesidade”, conta a nutróloga Jocemara Gurmini.