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O açúcar é um dos alimentos com pior reputação ultimamente.
Não estamos falando dos carboidratos em geral — que no organismo são transformados em açúcar —, mas da versão de mesa, ingrediente de doces e guloseimas e adicionada a sucos e cafezinhos.
Seu nome químico é sacarose. E ele não tem ficha limpa. A culpa, contudo, não mora no açúcar em si, mas em exagerar na dose. Os alertas se somam ano após ano.
O último deles vem de uma revisão de estudos, publicada pelo British Medical Journal. Depois de avaliarem mais de 8 mil pesquisas (!), os cientistas identificaram uma ligação cristalina entre o alto consumo de açúcar e 45 condições que encurtam a qualidade ou a expectativa de vida.
A lista engloba diabetes, obesidade, pressão alta, ataque cardíaco, câncer, derrame, asma, gota, depressão, cárie e até morte precoce.
O ponto preocupante é que, mesmo ciente de que açúcar demais não combina com saúde, o brasileiro mete o pé no doce. Pelas contas do governo, a ingestão média no país chega a 80 g por dia, muito acima do limite recomendado pela OMS de 25 g.
A história do nosso país — cuja economia se baseou durante um bom tempo no cultivo de cana — ajuda a explicar nossa preferência por esse sabor. Mas fato é que podemos reeducar o paladar. E sem radicalismos, por favor.
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Polêmicas, no entanto, seguem azedando a discussão e o entendimento. Em 2021, a ex-confeiteira e influencer Dani Noce, que ficou famosa nas redes sociais após experimentar receitas ultradoces de brownies e bolos, afirmou que parou de fazer seus pratos porque descobriu que “açúcar com gordura é basicamente cocaína”.
A comparação com uma droga ilícita causou revolta de um lado e aplausos do outro.
De lá para cá, fervilharam pela internet desafios de confeitaria sem açúcar e depoimentos de pessoas que deram adeus à “dependência” por ele.
Outro conteúdo campeão de audiência nesses domínios é o do gênero “Aprenda a se livrar do vício em açúcar”. Mas será que isso existe mesmo?
Até existem estudos sugerindo que o açúcar tenha efeitos semelhantes aos de drogas no sistema de recompensa cerebral. Mas não há consenso a respeito. “Ainda há muitas informações controversas, investigações pequenas e pouco confiáveis. Não dá para cravar que o açúcar vicia da mesma forma que outras substâncias”, diz a nutricionista Lara Natacci, colunista de VEJA SAÚDE.
Na tentativa de validar a hipótese do vício, alguns artigos postulam que o consumo de açúcar libera dopamina e serotonina no cérebro, assim como fazem as drogas. Mas, se você raciocinar a fundo, verá que praticar exercícios, abraçar ou ouvir música também libera neurotransmissores por trás da sensação de bem-estar e nem por isso causam dependência.
Até porque a relação do ser humano com o açúcar é mais complexa. Nossos antepassados, que viveram num mundo em que nem sempre havia garantia de comida à disposição, desenvolveram uma predileção por fontes imediatas de energia.
E não há melhor exemplo disso que os redutos de açúcar. “Existem trabalhos científicos que mostram que, desde bebês, preferimos o sabor doce, e ele desperta sensações positivas que nos fazem comer mais. Mas daí a viciar há uma longa distância”, aponta o médico Durval Ribas Filho, presidente da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran).
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Compulsivos ou não, caímos em maus lençóis quando nos excedemos no açúcar, geralmente nas colheradas adicionadas ou por meio dos alimentos ultraprocessados lotados do ingrediente.
Eis um prato cheio para o aumento de processos deletérios ao organismo, inclusive a inflamação, e do risco de doenças crônicas. Se você sente que perde o controle diante dos doces, o ideal é buscar ajuda com um profissional de saúde para achar a raiz desse comportamento.
Agora, esse cuidado não deve ser interpretado como a condenação absoluta do açúcar. Ora, a doçura faz parte do nosso DNA. “Ninguém deve embarcar naquele terrorismo nutricional de que açúcar é veneno”, afirma a nutricionista Sophie Deram, no livro Pare de Engolir Mitos (Sextante). “Ele não é obrigatório ou mesmo necessário, mas faz parte da nossa cultura e do nosso bem-estar.”
Pior ainda é cair na história, também disseminada nas redes, de que as frutas deveriam ser escanteadas por terem… açúcar.
“Isso também não é verdade, porque, além da frutose natural, elas fornecem fibras, vitaminas, compostos bioativos”, elucida Lara. Pois é, sobrou até para a turma da pera, uva, maçã…
Mas é hora de sairmos desse tribunal. Pão, leite, ovo e até um docinho vez ou outra: todos podem fazer parte do dia a dia.
Os juízes da internet continuarão caçando vilões, mas agora você já sabe que essa história de um único culpado na alimentação não resiste à defesa da ciência.
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