E, de repente, foi preciso evitar beijos, abraços e até um fraterno aperto de mão. Usar máscara para sair de casa, tirar os sapatos quando voltar, higienizar tudo com álcool em gel. Dedicar mais tempo aos filhos, ficar longe dos amigos e dos colegas de trabalho. O quarto virou escritório; a sala, academia; e o velho tapete azul trazendo lembranças do mar.
Neste cenário de isolamento imposto pelo novo coronavírus, o cérebro recorre aos sonhos para processar as emoções intensas vivenciadas durante o dia e assimilar eventuais experiências que possam favorecer a sobrevivência, em uma estratégia de adaptação ao “novo normal”.
“Segundo alguns teóricos, o sonho é como uma super-realidade virtual que nos permite, em um contexto de medo profundo, treinar e melhorar a performance em aspectos cruciais do cotidiano”, explica à Agência FAPESP a neurocientista Natalia Mota, pós-doutoranda no Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Partindo dessa premissa, a pesquisadora analisou relatos de sonhos de um grupo de voluntários com o objetivo de investigar como estavam sendo afetados pela pandemia e pelo isolamento social. Os resultados do estudo – divulgados na plataforma medRxiv, ainda em versão preprint (sem revisão por outros especialistas) – sugerem que, quanto maior o grau de sofrimento do indivíduo no primeiro mês da quarentena, mais comuns eram as menções a termos associados à ideia de “limpeza” nos relatos oníricos.
O trabalho integra o projeto de pós-doutorado de Mota, supervisionado pelos pesquisadores Sidarta Ribeiro (UFRN) e Mauro Copelli (Universidade Federal de Pernambuco). Ambos são coautores do artigo e integram o Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão em Neuromatemática (NeuroMat), apoiado pela Fapesp.
A história por trás desse estudo
Com apoio da rede NeuroMat, Mota desenvolveu nos últimos anos uma série de aplicativos e softwares que permitem, por meio da análise do discurso, diagnosticar doenças psiquiátricas, particularmente a esquizofrenia, com acurácia.
Essas ferramentas foram posteriormente adaptadas para fazer avaliações cognitivas, principalmente de crianças na fase de alfabetização. “Vimos que um indivíduo saudável começa a organizar seu discurso entre os 5 e os 8 anos de idade e essa habilidade vai se aprimorando até a idade adulta. Mas em pessoas com problemas como esquizofrenia, essa capacidade, em vez de avançar, começa a decair quando chega a adolescência”, diz Sidarta Ribeiro.
Estudos anteriores do grupo comprovaram que os relatos de sonhos se configuram no material mais rico para esse tipo de análise, porque garantem acesso direto ao que vai no inconsciente dos indivíduos. “Se eu te contar como foi meu dia ontem, por exemplo, será um relato cronológico e baseado em fatos reais. Não será muito diferente do relato de um paciente bipolar ou esquizofrênico. Mas quando comparamos narrativas dos sonhos, vemos que são completamente distintas”, afirma Ribeiro.
Um dos aplicativos desenvolvidos pelo grupo para uso clínico possibilita a coleta de dados, na forma de áudio, por meio do smartphone do próprio indivíduo a ser avaliado. Para testar a viabilidade da ferramenta, entre os meses de setembro e novembro de 2019, os pesquisadores solicitaram a um grupo de voluntários saudáveis que enviassem o relato diário de seus sonhos em mensagens com no mínimo 30 segundos de duração.
“Quando pretendíamos iniciar os testes em um grupo de pacientes com esquizofrenia, veio a Covid-19 e, com ela, toda uma discussão sobre como a crise de saúde estava alterando a qualidade do sono e o padrão dos sonhos. Decidimos então comparar nossa amostra coletada no período pré-pandemia com outra realizada no primeiro mês da quarentena, também com voluntários saudáveis, para ver as diferenças na estrutura e no conteúdo do discurso”, conta Mota.
Relatos fornecidos por 67 voluntários foram avaliados por meio de ferramentas desenvolvidas pelo grupo. Uma delas mede a quantidade de palavras associadas a emoções positivas e negativas. “De modo geral, os relatos de sonhos durante a pandemia tinham maior proporção de palavras relacionadas à raiva e à tristeza do que no momento anterior”, revela a pesquisadora.
Por meio de outra ferramenta, foi possível mensurar quanto as palavras empregadas no relato estão próximas de termos como “contaminação”, “limpeza”, “doença”, “saúde, “morte” e “vida”.
“Identificamos que os sonhos do primeiro mês da quarentena estavam mais associados aos termos contaminação e limpeza, mas não notamos diferença em relação à doença e saúde ou morte e vida. Nossa interpretação é que, naquele momento, as pessoas ainda estavam se adaptando às regras mais rígidas de higiene e ao medo da contaminação. Possivelmente, o medo da morte e da doença não tenha aparecido porque nenhum dos participantes ou familiares próximos tinha contraído a doença até então”, avalia Mota.
Ao final de um mês, os pesquisadores buscaram mensurar o grau de sofrimento mental de todos os participantes por meio de escalas psicométricas – questionários padronizados e validados adotados em muitos estudos da área.
“Todos os voluntários apresentavam uma sintomatologia leve, mas havia uma grande variabilidade entre eles. Ao correlacionar a severidade dos sintomas às peculiaridades que aparecem nos relatos dos sonhos, notamos que os indivíduos que mais mencionavam termos relacionados à limpeza eram os que mais estavam tendo dificuldade para manter relações sociais de qualidade durante o primeiro mês de quarentena e mais estavam sofrendo com isso. Esse achado indica uma adaptação mais pobre à situação de isolamento social”, conta Mota.
Para Ribeiro, o estudo mostra que os sonhos refletiram de forma rápida e robusta as mudanças impostas pela pandemia, confirmando a existência de uma continuidade entre sonho e vigília defendida desde os trabalhos iniciais de Sigmund Freud (1856-1939) e Carl Gustav Jung (1875-1961). “Aquilo que está na sua vida onírica e diz respeito a essa emergência planetária se expressa como sofrimento quando você está desperto. Esse achado reforça a ideia proposta por Freud de que os sonhos são a via régia para o inconsciente e um material particularmente rico para diagnóstico”, afirma o pesquisador.
*Este conteúdo é da Agência Fapesp.