Uma rara odisseia: pesquisa revela os desafios de quem tem AME tipo III
Levantamento mostra que, apesar das dificuldades do tratamento, os portadores desta doença rara não precisam mais abrir mão dos seus sonhos

Atrofia muscular espinhal: pelo nome, parece algo grave e preocupante. E a impressão procede. Trata-se de uma doença rara caracterizada por alterações em um gene (o SMN1) que impedem o organismo de produzir uma proteína (a SMN).
Mas esse não é um detalhe banal. A falta dessa molécula resulta na degeneração gradual dos neurônios motores, o que compromete funções básicas como se locomover, se equilibrar, respirar e engolir alimentos. Embora afete um em cada 10 mil nascidos vivos, a AME, sigla pela qual é conhecida, é a principal causa genética de mortalidade infantil.
E, mesmo sendo uma enfermidade um tanto quanto específica, ela contempla uma miríade de perfis. A começar pelos tipos pelos quais os médicos a classificam: vão do 0 ao 4 e são divididos de acordo com o início dos sintomas e a velocidade de progressão do quadro. “Meu irmão e meu filho têm AME tipo 3. Mas o impacto da doença nos dois é completamente diferente”, conta o engenheiro Dannylo Cavalcanti Augusto.
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A AME tipo 3 reflete um microcosmo que espelha também os desafios de milhares de brasileiros com condições mais raras e cheias de particularidades. Nessa atrofia muscular espinhal, as manifestações aparecem a partir dos 18 meses de vida.
Foi o que ocorreu tanto com o irmão de Dannylo, Gabriel, diagnosticado no fim da década de 1990 com 3 anos, quanto com o filho, Luiz Antonio, nascido em 2022, cuja doença foi detectada em 2024. “A primeira memória que tenho da AME é observar meu irmão andando e, de repente, desmontar. Quando vi acontecer com meu filho, fiquei assustado”, lembra o engenheiro.
Daí em diante, porém, há uma bifurcação nas duas histórias em família.
Gabriel nunca chegou a correr e passou a usar cadeira de rodas na adolescência — hoje, aos 29 anos, perdeu por completo o movimento das pernas e parte dos gestos dos braços. Já Luiz mal parece carregar uma doença progressiva. “Ele ainda não consegue pular, mas corre e brinca como toda criança”, diz Dannylo.
E tudo leva a crer que o futuro do pequeno não passará por uma cadeira de rodas. Essa mudança de perspectiva tem a ver com a revolução pela qual passou o tratamento da AME.
O primeiro medicamento capaz de frear sua progressão chegou ao Brasil em 2017. No momento, há três terapias eficazes, uma das quais Luiz recebe desde os primeiros anos. Seu tio também está em tratamento, só que os danos do passado não podem ser revertidos. “Estou bem e me sinto realizado como desenvolvedor de softwares, mas as limitações me fazem sair pouco de casa”, relata.
E foi para lançar luz sobre vidas como a de Gabriel, Luiz e Dannylo que VEJA SAÚDE conduziu um mapeamento inédito sobre a AME tipo 3.
Por dentro da pesquisa

O estudo, realizado com o apoio da farmacêutica Roche e do Instituto Nacional de Atrofia Muscular (Iname), entrevistou 126 brasileiros de todas as regiões, entre pacientes e cuidadores, a fim de mapear os obstáculos e os avanços do diagnóstico ao tratamento.
“Ele constata pontos críticos que, se solucionados, trarão um enorme ganho para essa comunidade”, destaca Juliane Arndt de Godoi, diretora nacional do Iname. Comunidade que tem suas peculiaridades e necessidades.
Ao contrário dos tipos 1 e 2 da AME, o tipo 3 não está associado a uma mortalidade precoce. “As principais consequências são a perda progressiva dos movimentos do corpo e da autonomia, embora a doença também possa afetar a capacidade de respirar e de deglutir em fases avançadas”, explica o neurologista Edmar Zanoteli, professor da Universidade de São Paulo (USP).
Na pesquisa, mais da metade dos pacientes não conseguia andar e 24% não podiam mover os braços. “Até por ser considerada menos grave, a AME tipo 3 leva mais tempo para ser diagnosticada”, observa Zanoteli.
A pesquisa corrobora o médico: 51% dos respondentes demoraram mais de três anos para confirmar a enfermidade.

A questão é que, quanto maior o tempo para iniciar o tratamento, maiores são as deficiências irreversíveis. As terapias atuais brecam e previnem novos estragos, mas não conseguem recuperar os neurônios destruídos. Ainda assim, representam um trunfo da medicina que está salvando e mudando a vida de inúmeros jovens, como Luiz.
Nesse arsenal, há uma terapia gênica que corrige a mutação problemática no gene SMN1 — e permite recuperar a produção daquela proteína protetora — e dois medicamentos, o nusinersena e o risdiplam, que fazem com que outro gene (o SMN2) reponha o estoque proteico em prol das células motoras. “Se detectarmos a doença antes de os sintomas surgirem, conseguimos manter o paciente praticamente sem limitações”, diz Zanoteli.
Daí a pressão das associações de pacientes e outras entidades para incluir a AME na triagem neonatal do SUS, o famoso teste do pezinho. Apenas alguns locais, como Minas Gerais e Distrito Federal, já dispõem desse recurso no sistema público, apesar de uma lei sancionada em 2021 estendê-lo a todo o território nacional nos próximos anos.
“Precisamos cobrar pela entrada da AME no teste do pezinho, sim. Mas não adianta fazer a detecção precoce se não houver acesso aos medicamentos e às terapias de suporte”, pondera a neurologista pediátrica Vanessa Van Der Linden, do Hospital Maria Lucinda, no Recife.
Gargalos no tratamento

Essa é a segunda batalha dos pacientes e familiares. Ora, crianças com os tipos 1 e 2 têm direito às terapias modernas por meio do SUS. Já as pessoas com o tipo 3, via de regra, não. Como os remédios não costumam sair por menos de 150 mil reais ao mês e a aplicação da terapia gênica está na casa dos milhões, resta à maioria delas acionar o convênio ou a Justiça.
Na pesquisa, chama a atenção que 53% dos respondentes não utilizam medicamentos. “Passei várias noites em claro pensando que, se perder meu emprego, perco meu seguro. Aí meu filho deixa de receber a medicação, e sabemos aonde isso pode levar”, preocupa-se Dannylo.
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A questão é delicada: nos últimos anos, pedidos de inclusão das drogas para AME tipo 3 na rede pública foram rejeitados. Mas há a esperança de que esse desfecho possa ser revertido. “Acho que o governo está entendendo melhor as evidências e os benefícios dessas terapias”, avalia Van Der Linden.
A médica se refere aos ganhos em termos de preservação dos movimentos e da autonomia, que se refletem em menos complicações e outros gastos com a saúde mais adiante. Além da incorporação de remédios, existem outras barreiras.
A pesquisa de VEJA SAÚDE escancara a falta de centros capacitados com atendimento multidisciplinar — uma prioridade para um em cada três respondentes. “Os medicamentos mudaram a realidade da AME, mas as terapias de suporte seguem imprescindíveis”, esclarece a fisioterapeuta Jaqueline Almeida Pereira, do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Além de sessões de físio motora e respiratória, o rol de apoio inclui nutricionistas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais… Gabriel destaca outro: os psicólogos.
“Pouco depois da pandemia, eu vi que estava perdendo boa parte dos movimentos dos braços e fiquei pensando o que viria de bom dali em diante. Aí comecei a psicoterapia e percebi que tenho muito a conquistar.”
O programador prossegue: “Junto à família, foi isso que me deu forças para entrar na faculdade e procurar um emprego”. E ainda o estimulou a ir atrás da medicação que usa hoje. A dura realidade é que não há uma perspectiva realista no horizonte de que Gabriel e outras pessoas que conviveram por anos com a AME sem acesso aos novos tratamentos possam reaver os movimentos perdidos.
Mas isso só reafirma a necessidade de o Estado e a sociedade civil viabilizarem espaços mais inclusivos — outra lacuna apontada pela pesquisa de VEJA SAÚDE. Afinal, quando o avanço científico se soma a políticas públicas, aquilo que já foi uma sentença dá lugar a uma jornada com muitos sonhos pela frente.
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