O casal de aposentados Maria do Carmo, 56, e Carlos Teixeira, 64*, que vive em São Paulo, é exemplo de um dos maiores enigmas da pandemia do coronavírus. Por que algumas pessoas pegam Covid-19 e outras não?
Já em tempos de alta da variante Ômicron – considerada mais transmissível, eles viajaram com duas amigas. Alguns dias depois, uma delas ligou avisando: “fomos infectadas”.
“Viajamos de carro, dormimos no mesmo quarto, fizemos churrasco. Quando elas nos alertaram, fomos fazer o teste”, conta Maria. O dela deu positivo, o do marido, negativo. Maria e Carlos passaram a dormir separados, tentando evitar o contato, mas parecia nem ser necessário. Ele não deu sequer um espirro.
Desde o início da pandemia, cientistas têm buscado entender casos como esse, que se tornaram um tópico comum nas rodas de conversa.
A bióloga e geneticista Mayana Zatz conduz estudos sobre a transmissão do Sars-Cov 2 na Universidade de São Paulo (USP). Um dos principais achados do grupo é uma possível explicação genética para a situação.
Os pesquisadores buscaram casais discordantes (quando um pega o vírus, mas não passa para o outro) e fizeram o sequenciamento de uma parte do DNA dos voluntários.
“Percebemos que havia uma diferença em alguns genes responsáveis pela resposta imune e que as pessoas infectadas com sintomas têm uma resposta mais tardia das células NK, chamadas de natural killers, que sevem como primeira barreira de defesa do nosso organismo contra uma infecção”, explica Mayana.
Em quem não fica doente, ocorre justamente o contrário, essas células parecem ser mais rápidas, destruindo o vírus sem dar chances dele se replicar ou se espalhar por aí.
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O estudo genético está indo além dos casais. “Avaliamos centenários que passaram imunes pela gripe espanhola e, agora, pelo coronavírus”, revela a bióloga.
Todas essas análises, que continuam em andamento, têm como objetivo identificar linhagens de pessoas que carreguem genes protetores e mais respostas sobre nossa interação com o vírus. “Esses dados podem levar a futuros tratamentos contra a Covid-19 e também nos deixar mais preparados para as próximas pandemias”, avalia Zatz.
Infectados em tempos diferentes
A genética pode explicar quem se defende melhor do vírus, mas a transmissão permaneceu como uma loteria na casa da jornalista e assessora de imprensa Paula Novaes, 26. Ela, o namorado, a sogra e o sogro moram juntos, e cada um pegou a doença em períodos diferentes.
“Começou pelo meu sogro no início da pandemia. Ele trabalha em um mercado. O escritório é fechado, mas o almoço é em refeitório, não teve como evitar”, conta Paula.
Mesmo com 65 anos, idade já considerada de risco, Luiz Duarte só teve sintomas semelhantes aos de uma gripe forte. Depois do teste positivo, a mulher dele, a advogada Cléa Duarte, 68 anos, passou a dormir em outro lugar, separou talheres e tudo o mais.
Naquele momento, não ocorreu nada. Mas, no fim do ano passado, Cléa foi infectada. “Estávamos vendo TV no quarto com mais uma pessoa. Minha sogra já estava espirrando. Quando começou a ficar com mais sintomas, resolveu fazer o teste e deu positivo. A outra pessoa que estava no quarto também pegou, mas eu passei ilesa mais uma vez”, conta a jornalista.
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Já o namorado de Paula, o assessor de investimentos Tarcísio Duarte, 31 anos, adoeceu meses depois. “Ele começou a ficar fraco, com dor no corpo, mas estava de dieta e correndo, treinando bastante. Tratamos a dor no corpo com gelo, continuamos dormindo juntos, até que veio a falta de ar”, relata ela.
Após quatro dias de sintomas e mais três esperando o resultado do teste, ele descobriu estar com Covid. “Só então eu me isolei e fiz o exame, que deu negativo de novo”, conta ela.
Paula já se sentia imune ao coronavírus até que chegou a vez dela – e foi em temporada de Ômicron. “Senti febre e tosse, passei mal no trabalho, testei e deu negativo. Não melhorei, insisti no teste, e desta vez deu deu positivo. Nesse momento, a transmissão domiciliar aconteceu e o namorado se infectou novamente.
Todo mundo ficou bem no final, mas ninguém entendeu exatamente o que se passou.
Naturalmente resistentes e janela de transmissão
O virologista Paulo Eduardo Brandão, colunista da VEJA SAÚDE e professor da USP, lembra que toda doença infecciosa terá um grupo de pessoas naturalmente resistentes e há alguns fatores necessários para que o vírus pule de um hospedeiro para outro.
“A transmissão depende do tempo de contato entre duas pessoas e o estado de imunidade de ambos”, afirma o professor da Universidade de São Paulo.
Existe ainda a janela de transmissão. Assim que o vírus entra no organismo de um indivíduo, precisa de um tempo para se alojar e começar a se replicar. Daí a importância de se testar nos dias corretos.
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Geralmente, exames são feitos quando os sintomas estão mais presentes, portanto, a carga viral está alta. Ou seja, é muito mais fácil que a transmissão ocorra nesse momento. Isso pode ocorrer mesmo quando a pessoa infectada está assintomática.
Ainda em relação ao contágio, outro ponto levantado por esses últimos estudos é que que homens transmitem mais do que as mulheres.
Para fazer essa constatação, foram feitos exames de detecção do Sars-CoV-2 pela saliva, que detectaram que os rapazes apresentam uma carga do vírus no fluido cerca de dez vezes maior do que mulheres, particularmente até os 48 anos de idade.
E as variantes?
Ao longo da pandemia, muita coisa aconteceu, entre mudanças de comportamento e o surgimento das variantes. “Estamos recontatando esses mesmos casais para saber se aqueles que não ficaram doentes continuaram resistentes à Ômicron”, relata a bióloga e pesquisadora da USP. Outras variáveis serão avaliadas nessa fase, como o fato desses casais agora estarem vacinados.
Cientistas da Noruega já fizeram um estudo mais recente com as mutantes, publicado na revista acadêmica Jama. Eles buscaram pessoas com testes positivos de Covid que dividiam a casa com mais gente. De 31 220 casos de transmissão na mesma casa, 25% deles ocorreu com a variante Ômicron, e outros 19% com Delta.
*Nomes fictícios