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“Podemos simular em humanos virtuais o funcionamento de novos tratamentos”

Especialista em modelagem computacional, o norte-americano Steven Levine explica como a tecnologia dos "gêmeos virtuais" pode beneficiar a nossa saúde

Por Larissa Beani
Atualizado em 15 fev 2024, 20h49 - Publicado em 15 fev 2024, 16h04
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Tecnologia permite criar simulações realistas para melhorar tratamentos de saúde (Dassault Systèmes/Divulgação)
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A cada dia fica mais clara a presença da inteligência artificial (IA) na nossa rotina, seja no trabalho, nas redes sociais ou em uma pesquisa qualquer na internet. Se depender do norte-americano Steven Levine, especialista em ciência dos materiais, ela também estará fortemente presente nos cuidados com a saúde.

O pesquisador se dedica ao desenvolvimento de gêmeos virtuais, uma ferramenta que visa aprimorar tratamentos de saúde em humanos e, no futuro, até nos substituir em algumas etapas do desenvolvimento de novos medicamentos, por exemplo.

“As agências regulatórias estão avaliando esse tipo de experiência e como ela pode reduzir dramaticamente o tempo e o custo dos ensaios, já que bilhões de dólares são gastos para criar novas drogas“, explica Levine, que é diretor de modelagem humana virtual da empresa francesa Dassault Systèmes.

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Os gêmeos virtuais são cópias digitais que reproduzem fielmente, no ambiente virtual, o comportamento de um objeto real. É uma tecnologia consolidada em várias indústrias é usada, por exemplo, para testar as capacidades e fragilidades de carros e aviões , porém pouco aplicada à área médica, devido a complexidade de simular materiais orgânicos.

Com mais de 30 anos de experiência em modelagem computacional, Steven Levine acredita que já estamos prontos para dar passos mais largos no uso da IA na saúde. A seguir, confira uma entrevista exclusiva com o especialista, também fundador e diretor-executivo do Living Heart Project, que construiu um gêmeo virtual do coração humanos com precisão.

VEJA SAÚDE: O que são gêmeos virtuais e como eles têm sido utilizados na medicina?

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Steven Levine: Há algumas décadas, ficou claro para algumas indústrias, como a aeroespacial e a automotiva, que criar versões virtuais de carros ou aviões para simular o seu comportamento sob as mais diversas condições traria benefícios econômicos, ambientais e até regulatórios.

Com o avanço da tecnologia, os cientistas conseguiram garantir que o modelo virtual, chamado de gêmeo virtual, fosse idêntico e funcionalmente equivalente ao objeto real.

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O coração foi o primeiro órgão escolhido para a criação de um gêmeo virtual pela Dassault Systèmes (Dassault Systèmes/Divulgação)

Hoje, praticamente todas as indústrias transformadoras usam gêmeos virtuais. Na medicina, esse recurso começou a ser mais explorado na última década. Até então, os sistemas eram rudimentares demais para modelar partes do corpo.

Por isso, reunimos especialistas do mundo todo para criar gêmeos virtuais de órgãos humanos completos. Começamos pelo coração: criamos um modelo mais preciso, que pode simular especificidades de um indivíduo ou de uma população inteira — levando em consideração diferenças biológicas, geográficas ou de gênero…

Assim, é possível simular em humanos virtuais o funcionamento de medicamentos ou ferramentas, como marca-passos e stents, em desenvolvimento. 

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Como é construído um gêmeo virtual?

A partir de diversos exames, como ecocardiograma, ressonância magnética e tomografias computadorizadas. Os resultados coletados são transpostos ao sistema e o objeto 3D é adaptado. A simulação inclui detalhes de como funcionam as fibras, as câmaras, as válvulas e até o sistema elétrico do coração, que é uma bomba eletromecânica. Também podemos prever como todas essas variáveis se modificam.

Temos um modelo de referência que pode ser adaptado rapidamente a qualquer indivíduo (ou população) com qualquer condição de saúde.

De que forma populações inteiras podem ser impactadas por essa aplicação na medicina?

Acho que a maneira mais valiosa, pelo menos hoje, de ajudar as pessoas é modelando um ensaio clínico [pesquisas em humanos onde são testados tratamentos experimentais] de antemão. Ao longo do desenvolvimento de um novo tratamento, são testadas diferentes dosagens e substâncias em públicos distintos — e apenas 10 a 15% desses ensaios têm sucesso.

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Eles podem ser agilizados e melhor aproveitados com o uso de gêmeos virtuais, que ajudam a entender, com mais precisão, o que pode acontecer durante os testes. É possível testar variabilidades e focar em uma população específica. Isso confere uma maior confiabilidade de que você está apostando nos parâmetros certos em seu ensaio.

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Como as agências regulatórias veem essa aplicação?

Nós estamos trabalhando com o FDA [Food and Drug Administration, a agência reguladora dos Estados Unidos]. Acabamos de concluir um projeto em que modelamos um ensaio clínico completo para mostrar como essa tecnologia pode ser usada para reduzir a quantidade de voluntários necessários nos testes.

Ela também pode melhorar a cobertura de populações pouco representadas em ensaios, como crianças. Por razões éticas, são poucos os testes realizados em crianças — mas podemos fazê-los em gêmeos virtuais.

As agências regulatórias estão avaliando esse tipo de experiência e como ela pode reduzir dramaticamente o tempo e o custo dos ensaios, já que bilhões de dólares são gastos para desenvolver novas drogas.

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Simulação do Living Heart Project (John Mottern/Feature Photo Service/Divulgação)

Os gêmeos virtuais também podem ser usados para aprimorar técnicas cirúrgicas?

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É nisso que já estamos causando um impacto significativo. Antes de uma cirurgia, são solicitados raios-X, tomografias e ressonâncias para que os médicos tenham uma ideia de qual é o problema e consigam planejar como será a operação. 

Com os gêmeos virtuais, o cirurgião faz isso com mais precisão, porque ele pode testar no paciente digital o que ele imagina para a cirurgia e ver quais serão os resultados — que nós realmente conseguimos prever muito bem, pelo menos tratando-se de cirurgias cardiovasculares e de remoções de tumores, por exemplo.

Ao testar diferentes procedimentos, eles têm uma certeza maior de que estão escolhendo as técnicas corretas e podem treinar as equipes para o que está por vir. Eles podem acertar de primeira e passar menos tempo no centro cirúrgico, porque o time estará melhor preparado.

Isso também é uma grande vantagem para cirurgias de alta complexidade, inclusive em crianças.

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Durante a pandemia, vocês também utilizaram essa tecnologia para simular o risco de contaminação por Covid-19 em um hospital da China. Como foi essa experiência?

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Na pandemia, tivemos a oportunidade de contribuir para a construção do Hospital Leishenshan, em Wuhan, levando em consideração um modelo virtual do espaço, que previa como poderia se dar a contaminação pelo Sars-CoV-2 e outros germes. Surpreendentemente, ou talvez não, o design de grande parte dos hospitais não leva isso muito em consideração.

Aplicamos esse sistema a teatros e universidades de outras cidades também para que as pessoas pudessem reconhecer que o design de prédios — hospitais em especial, mas essencialmente qualquer lugar — é importante para manter as pessoas saudáveis.

Essa tecnologia poderá, um dia, ser aplicada em larga escala, para grande parte da população?

Acreditamos que os gêmeos virtuais podem ajudar a desmistificar o funcionamento do nosso corpo. Não com toda a complexidade que o médico precisa saber, mas o suficiente para que você, como consumidor, possa de fato entender como funcionam os seus órgãos e como os seus hábitos os afetam.

Acabamos de anunciar um projeto em que estamos analisando uma atleta olímpica, a norte-americana Desiree Linden. Ela detém o recorde mundial para uma mulher com mais de 40 anos em uma maratona. E, como é típico dessa idade, ela começou a ter mais consciência da sua saúde.

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Construímos um gêmeo virtual do coração dela e, enquanto ela treina, ele simula o que está passando nela naquele momento. Então, se Desiree estiver se sentindo cansada, ela saberá se pode aumentar o ritmo ou se isso causará algum dano ao órgão.

Ao fazermos isso, podemos, no futuro, conectar essas informações às de relógios inteligentes simples e, assim, você terá mais ferramentas à disposição para administrar melhor a sua saúde e se comunicar com seu médico de uma forma muito mais parceira e informativa. Acho que é aí que veremos, nos próximos anos, que essa tecnologia realmente faz a diferença.

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Steven Levine é PhD em ciência dos materiais e diretor de modelagem humana virtual da Dassault Systèmes (Dassault Systèmes/Divulgação)
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