O retrato da fibrose cística no Brasil
Pesquisa com pacientes e cuidadores de pessoas com essa doença rara mapeia dificuldades no diagnóstico e tratamento e perspectivas para melhorar os cuidados
Confundida com pneumonia, asma, bronquite e alergias, a fibrose cística ainda impõe a seus portadores um caminho de incertezas até chegar ao diagnóstico correto. Esse é um dos cenários apontados pelo estudo Fibrose Cística: Um Retrato Brasileiro, realizado por VEJA SAÚDE, o núcleo de Inteligência de Mercado do Grupo Abril e a Unidos pela Vida, organização dedicada a pacientes com a condição.
A sondagem contou com a participação de 258 pessoas, entre pacientes e cuidadores, de todas as regiões do país. Na amostra, 40% do público com a doença não foi diagnosticado logo ao nascer, e 13% tiveram que esperar pelo menos dez anos pela confirmação.
A fibrose cística é uma das mais de 7 mil doenças raras já identificadas. É progressiva e desencadeada por mutações genéticas. “Para desenvolver o problema, a pessoa precisa herdar um gene alterado da mãe e outro do pai. Se receber de apenas um deles, ela é portadora, mas não manifesta a doença”, explica a pneumologista pediátrica Mônica Firmida, do Ambulatório de Fibrose Cística da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
As mutações ocorrem no gene CFTR, responsável pela produção de uma proteína de mesmo nome. “Ela se situa na superfície das células e funciona como um canal de transporte de cloretos”, descreve Mônica. Com a falha na fabricação da proteína, tanto cloreto quanto água ficam retidos nas células.
Uma das consequências desse mau funcionamento é a perda excessiva de sal pelo suor — tanto é que o problema ficou conhecido como a “doença do beijo salgado”, o gosto sentido pelos pais ao beijarem os filhos acometidos. Outra decorrência é a formação de secreções mais espessas no organismo, levando a repercussões graves, entre elas infecções recorrentes que machucam os pulmões.
“A fibrose cística é uma doença multissistêmica. Além dos pulmões, ela atinge, por exemplo, o pâncreas, que não consegue liberar as enzimas necessárias para a digestão dos alimentos”, diz o pneumologista Rodrigo Athanazio, coordenador da Comissão de Fibrose Cística da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT). Sem o aproveitamento correto dos nutrientes, a desnutrição é um dos quadros esperados em sua evolução — e quase 80% dos respondentes relataram dificuldades no ganho de peso e altura na infância.
Para minimizar os prejuízos, o diagnóstico precoce é peça-chave. A inclusão do rastreamento para fibrose cística no teste do pezinho, na triagem neonatal, vem colaborando nesse sentido. “Mas a implementação do exame ainda apresenta falhas em alguns estados”, lamenta a psicóloga Verônica Stasiak Bednarczuk de Oliveira, diretora e fundadora do Unidos pela Vida.
“Como na pesquisa a maior parte dos participantes éxdo Sul e do Sudeste, onde os estados estão habilitados para identificação da doença há mais tempo, a percepção da maioria é de não haver dificuldade para fazer o teste, mas essa não é a realidade em outras regiões”, pondera.
Nascida nos anos 1980, quando o rastreio não era obrigatório nas maternidades, Verônica conta que levou mais de duas décadas até que os contratempos em série que resultaram na retirada de parte de seus pulmões e do pâncreas fossem atribuídos à fibrose cística.
“Além das manifestações clínicas variadas e inespecíficas, como tosse, falta de ar, fadiga e diarreias, há um desconhecimento sobre a doença pela população e por profissionais de saúde”, analisa Athanazio. “E, em alguns casos, os sinais são mais leves, dificultando o reconhecimento”, pontua.
Rastrear e acompanhar
O teste do pezinho é o primeiro passo para o diagnóstico da fibrose cística. “O ideal é que seja realizado entre o terceiro e o quinto dia de vida”, diz a médica Mônica Firmida. Caso seja detectada alguma alteração, o exame deve ser refeito antes de o bebê completar 1 mês. Se o resultado se repetir, a criança é encaminhada a um centro de referência para fazer o teste que mede a concentração de cloreto no suor.
“Em 98% dos casos, a confirmação é feita dessa forma”, nota a especialista. Porém, mesmo com laudo negativo do teste do pezinho, diante de manifestações como tosse crônica, cansaço, diarreia, e, sobretudo se houver histórico de casos na família, é preciso levantar a suspeita da doença e indicar a realização do teste do suor.
Desafios do tratamento
Uma vez confirmado o problema, pacientes e familiares se veem diante de dúvidas e angústias nem sempre bem esclarecidas pelo médico — como mostra a experiência de um terço da amostra no estudo. As lacunas na orientação e no acolhimento ajudam a entender por que palavras como medo, tristeza e choque são tão associadas ao momento do diagnóstico. A adesão ao tratamento é outro dilema.
Mais de 40% do grupo expressa dificuldade para seguir as recomendações à risca, situação que favorece complicações e acarreta hospitalizações. E olha que 43% desses pacientes precisaram ser internados nos últimos 12 meses.
“A rotina terapêutica é difícil, exige duas horas ou mais todo dia”, diz Verônica. “É preciso fazer algumas sessões de inalação, higienizar os aparelhos, realizar fisioterapia respiratória, tomar as cápsulas para reposição de enzimas ao se alimentar. Tudo isso sem data para acabar”, resume.
À árdua sequência de cuidados, somam-se as dificuldades de acesso às medicações, fornecidas exclusivamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) aos mais de 5 mil pacientes incluídos no Registro Brasileiro de Fibrose Cística. “Só que mesmo para os remédios básicos, assegurados pelo protocolo seguido pelo SUS, há falhas tanto na compra por alguns estados quanto na dispensação para os pacientes”, afirma Verônica. Isso sem contar a carência de equipes multidisciplinares, com fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos e outros profissionais aptos ao acompanhamento caso a caso.
“O manejo da fibrose cística demanda muito das famílias. É comum um dos pais ter que deixar de trabalhar para cuidar da criança, e isso afeta a vida financeira e traz impactos emocionais a todos”, diz Marise Basso Amaral, vice-diretora do Unidos pela Vida e mãe de um garoto de 16 anos diagnosticado com a doença ao nascer. Não à toa, os abalos na vida profissional e social e na autoestima despontam entre pacientes e cuidadores ouvidos na pesquisa.
A exemplo de outras doenças raras, entender e discutir a complexidade da fibrose cística é a via para alertar sobre direitos à assistência e informar sobre o surgimento de terapias capazes de melhorar a qualidade de vida. Chama a atenção, nesse contexto, que quase seis em cada dez respondentes não saibam exatamente o que sejam os chamados moduladores de CFTR. “Esses novos medicamentos agem diretamente na causa do problema, diminuindo as manifestações e, por consequência, a progressão da doença”, explica a especialista da Uerj.
Como esse recurso de última geração beneficia portadores de mutações específicas, a realização de testes genéticos é etapa crucial para indicar o melhor tratamento disponível. “Esses exames não são oferecidos pelo SUS, mas um projeto coordenado pelo Grupo Brasileiro de Estudos de Fibrose Cística, numa parceria público-privada, vem viabilizando a testagem para os diagnosticados em tratamento nos centros de referência”, conta Marise. Tanto que, no levantamento da Abril, quase 90% já tiveram a mutação identificada.
Falta, porém, estender o acesso aos melhores cuidados e acelerar a chegada dessas terapias por aqui. A primeira delas foi aprovada nos Estados Unidos em 2012 e só teve recomendação final para incorporação no Brasil em 2020. “Temos de lutar por políticas públicas que agilizem todo o processo. Não podemos aceitar atrasos no diagnóstico nem esperar anos pela disponibilização de novas tecnologias já aprovadas”, defende Marise. “A gente luta contra o tempo. Quem tem doença rara tem pressa”, conclui.
Futuro promissor
A chegada de uma nova classe de medicamentos contra a fibrose cística ampliou as esperanças no horizonte. “Nos últimos anos, tivemos poucos avanços na medicina como esse”, avalia o médico Rodrigo Athanazio. Ele se refere aos moduladores do CFTR, capazes de estimular o organismo a fabricar a enzima faltante.
Duas medicações do gênero ganharam autorização para uso no Brasil — uma delas com recomendação de incorporação ao SUS para pacientes a partir dos 6 anos. “Elas são eficazes diante de uma mutação presente em 5% das pessoas com a doença”, explica o pneumologista. “Mas há uma grande expectativa pela aprovação por aqui de uma terapia de combinação tripla de moduladores e que abrangerá de 70 a 80% dos casos”, conta Athanazio.