Lei da ozonioterapia pode oferecer riscos à população, alertam entidades
Texto sancionado por Lula libera técnica que ainda não tem comprovação científica de eficácia e segurança
O presidente Lula sancionou nesta segunda-feira (7), a lei já aprovada pelo Congresso Nacional que autoriza o uso da ozonioterapia por profissionais da saúde como tratamento complementar.
A decisão foi publicado no Diário Oficial da União.
Segundo a nova legislação, o tratamento precisa seguir três regras para ser utilizado:
I) Só pode ser realizada por profissional de saúde de nível superior inscrito em seu respectivo conselho de fiscalização;
II) Só pode ser aplicada com equipamento de produção de ozônio medicinal devidamente regularizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ou órgão que a substitua;
III) O profissional responsável pela aplicação deverá informar ao paciente que o procedimento possui caráter complementar.
Os conselhos das classe profissionais de odontologia, fisioterapia, farmácia, enfermagem, medicina veterinária, biomedicina e biologia autorizam o uso da terapia, afirmando que ela é recomendada para tratamentos de saúde e estética.
Porém, entidades médicas como o Conselho Federal de Medicina (CFM), a Associação Médica Brasileira (AMB) e a Academia Nacional de Medicina (ANM) já se manifestaram contra a técnica, alegando que faltam evidências científicas concretas de eficácia e segurança.
Entidades se posicionam contra
A ANM, inclusive, escreveu uma carta aberta ao presidente Lula pedindo para que ele vetasse a lei. No texto, a entidade afirma que não há evidências comprovando a eficácia da ozonioterapia “em nenhuma circunstância”.
E diz ainda que ela gera uma “ilusão em pessoas leigas, portadoras de doenças graves, como câncer, de que condutas dessa natureza possam ter efeito terapêutico”.
“A Academia Nacional de Medicina é instituída como órgão que presta assessoria ao governo federal, por isso era nosso dever desaconselhar a sanção da lei”, afirma o médico Francisco Sampaio, presidente da ANM.
“No que se refere à Câmara e ao Senado, nós acreditamos que, quando questões referentes à saúde precisem ser discutidas, devem ter assessoria da ANM e do CFM. Porque, obviamente, a maioria dos deputados e senadores não está habilitada a decidir se um procedimento de saúde deve ser aprovado ou não”, alega o médico.
Segundo o jornal O Globo, a ministra da Saúde Nísia Trindade também recomendou o veto à Lula.
Após a sanção, a Anvisa emitiu um comunicado à imprensa reafirmando sua nota técnica de 2022. Para a entidade, a técnica só deve ser usada para questões odontológicas e para auxílio à limpeza e assepsia de pele na estética.
“Não havendo, até o momento, nenhuma evidência científica significativa de que haja outras aplicações médicas para a utilização de tal substância”, diz o texto.
Na atualização feita hoje, a Agência afirma que não há equipamentos de produção de ozônio aprovados por ela para uso em indicações médicas no Brasil, e que a aprovação dessas máquinas só virá com os devidos estudos para comprovar eficácia e segurança.
Entretanto, diversos profissionais de saúde já oferecem a ozonioterapia em seus consultórios, prometendo benefícios terapêuticos, com as máquinas disponíveis no país.
Desde 2018, a ozonioterapia é classificada como Prática Integrativa e Complementar (PIC) pelo Ministério da Saúde, e pode ser oferecida pelo SUS em diversos contextos.
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Lei pode ser inconstitucional
O advogado Henderson Fürst, do escritório Chalfin Goldberg Vainboim, presidente do Conselho de Bioética da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), ressalta características inconstitucionais da nova lei.
“Primeiro, porque a competência para autorizar ou vetar tratamentos de saúde não é dos legisladores, mas sim de órgão reguladores que respondem ao governo federal, como a Anvisa”, diz Fürst.
Outro ponto de inconstitucionalidade é a ameaça à tutela do direito fundamental à saúde. “Quando se disponibiliza amplo acesso a um recurso que pode causar danos e não tem evidências de benefício, se expõe a população a um risco grave”, comenta.
O advogado relembra o caso da fosfoetanolamina, a suposta pílula do câncer, aprovada por lei em 2016. “Em 2020, o Supremo Tribunal Federal levou esse mesmo raciocínio em conta para declarar o texto inconstitucional”.
Ozônio na medicina: uma polêmica
O ozônio (O3) é um gás que se origina do oxigênio (O2), mas tem propriedades bem diferentes. O ozônio medicinal, usado na ozonioterpia, é composto por no mínimo 5% O3 e 95% O2.
De acordo com os apoiadores do tratamento, o O3 tem uma ação analgésica e anti-inflamatória, por conta de sua característica microbicida.
Assim, ele seria positivo para o sistema imunológico por destruir as paredes celulares desses seres vivos e impedir a sua reprodução.
Outro efeito seria a melhora da circulação sanguínea e da oxigenação das hemácias (células do sangue responsáveis por transportar oxigênio).
Por conta dessas supostas ações, hoje se vê recomendação da terapia para tudo: ajudar na cura de cânceres, HIV, esclerose múltipla, infertilidade, diabetes, hérnia de disco, Alzheimer, e até condições psicológicas e psiquiátricas, como depressão, ansiedade e autismo.
Ela também é utilizada na área veterinária e odontológica, para prevenção e tratamento dos quadros inflamatórios/infecciosos. Na estética, alega-se que a ozonioterapia reduz celulite, estrias, gordura localizada e até estimula o colágeno.
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O problema, segundo as entidades médicas, é que falta comprovar esses efeitos em humanos.
A maioria das pesquisas usadas como evidência é considerada de baixa qualidade. Isso porque não comparam o método com um controle ou com um placebo, ou são estudos preliminares (em células isoladas ou animais) ou ainda baseiam-se em medidas subjetivas de melhora, como relatos individuais.
“Nós não encontramos trabalhos importantes e com metodologia que permita verificar eficácia publicado em revistas renomadas demonstrando benefícios terapêuticos ou estéticos. Não existe nenhuma comprovação científica”, afirma o presidente da ANM, que conduziu levantamento bibliográfico recente sobre o tema.
A agência regulatória dos Estados Unidos (FDA), publicou uma nota em 2019 alegando que “o ozônio é um gás tóxico sem nenhuma aplicação médica conhecida como terapia específica, adjuvante ou preventiva”.
E o órgão foi contra até sua aplicação em feridas. Isso porque, para que o gás seja efetivo como germicida, ele deveria estar presente em uma concentração muito maior do que aquela que pode ser tolerada com segurança por seres humanos ou animais.
“O ozônio serve para a esterilização de materiais médicos, pois tem uma ação antiséptica. Mas, para tratamento de feridas, a gente ainda não tem um ensaio clínico forte provando que a aplicação do gás funcione”, completa Sampaio.
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Na ozonioterapia, o O3 pode ser aplicado por via externa (gás vaporizado na pele), por injeção subcutânea, por hemotranfusão (o sangue do paciente é retirado do organismo, misturado ao ozônio e depois reintroduzido) e até por vias retais e vaginais.
As entidades médicas afirmam que os riscos já começam aí.
“A auto-hemoterapia é extremamente grave, porque pode causar problemas como embolias e infecções“, diz o presidente da ANM.
“As aplicações retais também são bastante perigosas, porque o reto tem uma mucosa com alto poder de absorção, e isso pode trazer diversas complicações“, alerta o médico.
Banalização: um perigo
Anna Alves, estudante de 22 anos, relatou à reportagem que comprou um pacote de massagem em uma renomada clínica de estética de Brasília e ganhou sessões de ozonioterapia como brinde.
“Falaram que ia melhorar gordura localizada e aceitei fazer. Na primeira sessão, aplicaram o gás por via subcutânea e doeu muito. Na segunda sessão, até chorei de dor, aí resolvi parar e fiquei com o pé atrás com a clínica”, conta.
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Ela afirmou que, após a aplicação, notava uma estranha bolha de gás dentro da pele. E também disse que não viu diferenças práticas na sua pele.
A profissional que conduzia as sessões era uma esteticista. Esteticistas, por não serem profissionais da saúde, não tem aval pela nova lei para realizar a técnica.