Sorofobia: entenda como a discriminação impacta pessoas que vivem com HIV
O fenômeno é complexo e se deve, em parte, ao imaginário que grande parte da população ainda tem sobre o HIV
Ao longo dos mais de 40 anos da epidemia de HIV, a ciência evoluiu significativamente, trazendo consigo novos tratamentos, formas de prevenção inovadoras e mais qualidade de vida para aqueles que vivem com o vírus.
Contudo, ainda hoje a infecção é vista como um tabu. O diagnóstico, por sua vez, permanece carregado de vieses equivocados, como um pesado fardo de culpa, associação a comportamento irresponsável e até mesmo uma espécie de castigo.
Por mais que o tratamento antirretroviral tenha alcançado a capacidade de zerar o risco de transmissão por relações sexuais, para muitos, a pessoa que vive com HIV é vista como uma ameaça.
O fenômeno é complexo e se deve, em parte, ao imaginário que grande parte da população tem sobre o HIV – a partir do início da pandemia, na década de 1980, quando a infecção provocou um grande número de mortes.
As consequências são nocivas, como preconceito, discriminação, rejeição e estigmatização de quem vive com o vírus. Para a infecção, há um tratamento medicamentoso extremamente eficaz. Para a sorofobia, o problema é mais profundo.
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Afinal, o que é a sorofobia?
A sorofobia é uma aversão e uma prática de discriminação contra pessoas que vivem com HIV. Podemos fazer paralelos com a homofobia, que discrimina pessoas LGBTQIA+, ou com o racismo, que no Brasil afeta especialmente a população preta.
“Além de estigma, automaticamente há uma atribuição a aquela pessoa de diversos valores negativos”, detalha o infectologista Rico Vasconcelos, pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
O especialista pontua que ser diagnosticado com vírus ainda é um fator associado a comportamentos inadequados ou irresponsáveis, como o uso de drogas injetáveis ou a uma ideia de promiscuidade no que diz respeito à quantidade de parcerias sexuais.
“Temos que levar em consideração que o sexo, o principal vetor de infecção do HIV, é um tema que é permanentemente tabu. Por mais que a nossa sociedade tenha avançado e se fale muito do assunto, isso não significa necessariamente que se fale bem. Existem muitos componentes afetivos, culturais e históricos que se entrelaçam”, pontua o psicólogo Maycon Torres, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF).
O psicólogo avalia que esse tipo de discriminação tem uma série de raízes diferentes que perpassam a dificuldade geral de se discutir sobre sexo.
“É comum observarmos discursos que acabam associando a infecção a punição. Ou seja, ela é vista como uma forma de castigo por supostamente não se ter tido cuidado, por uma vivência promíscua ou pela ausência de relacionamentos fixos – tudo acaba entrando como um forte julgamento moral”, destaca Torres.
Um dos reflexos negativos da sorofobia é a rejeição e o isolamento social. Nesse contexto, são comuns relatos de pessoas com HIV abandonadas pelos parceiros após a revelação da sorologia. O afastamento se estende a outros círculos sociais, como família, amigos e trabalho.
“O preconceito impacta profundamente a pessoa que vive com HIV, despertando sentimentos como medo, culpa, ansiedade e tristeza e aumentando o risco de transtornos como a depressão”, afirma o infectologista Álvaro Furtado, do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) e diretor da Sociedade Paulista de Infectologia (SPI).
Como saber se um comportamento é sorofóbico
Há pouco mais de dez anos, o criador de conteúdo digital Lucas Raniel recebeu o diagnóstico de HIV. Para ele, os primeiros momentos foram dolorosos e repletos de sentimentos negativos, como culpa e julgamento.
Além de ter a sorologia revelada para os familiares sem a sua permissão, ele passou a ser alvo de comentários de desconhecidos na cidade onde morava, Ribeirão Preto, no interior de São Paulo.
Naquele momento, tomou a decisão de começar a falar abertamente na internet sobre o próprio diagnóstico e sobre questões relacionadas ao HIV. Para isso, criou o canal no Youtube “Falo memo!”, em 2017. Hoje, concentra as publicações no perfil do Instagram.
“A partir dessas experiências, que não foram tão boas, me senti na obrigação de pesquisar mais sobre o assunto. Percebi que ter o conhecimento era, de certa forma, uma ferramenta de defesa para quando a sorofobia acontecesse comigo”, pontua.
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Apesar do alcance obtido ao longo dos anos e de lidar bem com a vivência com o vírus, Lucas pondera que ainda é vítima de discriminação.
“A exposição ao falar sobre o tema publicamente não me protegeu da sorofobia, é algo que acontece até hoje. A internet tem dois lados: um em que as pessoas se solidarizam, entendem sua jornada e mandam mensagens de afeto. E tem aqueles que acham um absurdo, criticam e são sorofóbicos ao ponto de derrubarem o meu perfil”, destaca.
Assim como episódios de racismo, homofobia ou machismo, o comportamento sorofóbico se apresenta em diversas nuances – de assédio moral a abusos físicos.
“São inúmeras atitudes. Saber que alguém vive com HIV e questionar os hábitos dessa pessoa é uma delas, por exemplo. Outra é não querer se relacionar por causa disso”, exemplifica Raniel.
E o problema perpassa inclusive a linguagem que utilizamos. Vamos tomar como exemplo uma frase que parece inofensiva, mas não é. Após receber um diagnóstico negativo para o HIV, é comum que uma pessoa diga “estou limpo” – como se, antes, estivesse suja. É uma forma de sorofobia – cometida, muitas vezes, sem perceber.
“Nesse contexto, o que a pessoa está implicitamente dizendo é que quem vive com HIV está sujo, porque fez coisa errada ou o que não devia. Ou seja, que é uma pessoa que não dá para confiar, que não é boa de se conviver. É um exemplo triste e frequente de sorofobia”, diz Vasconcelos.
Além das consequências para a saúde mental dos indivíduos com HIV, a discriminação tem dimensões amplas para a saúde pública. Um dos efeitos colaterais da sorofobia é o afastamento das pessoas de unidades de saúde, tanto para a busca por testes de diagnóstico como para a realização do tratamento.
Em resumo, a sorofobia se manifesta como:
- Atribuição de valores negativos a um indivíduo apenas pelo diagnóstico de HIV
- Afastamento de alguém que vive com o vírus com base em sua sorologia
- Divulgação do diagnóstico alheio sem permissão
- Recusa em conviver e participar de atividades sociais devido ao vírus
- Discriminação no local de trabalho ou escola
- Exigência de exames de HIV para ingresso no trabalho público ou privado
- Restrição do acesso a locais de convívio como creches, clubes, centros esportivos, eventos culturais e templos
- Assédio moral
- Abuso verbal, físico e agressões
- Recusa ou atraso proposital no atendimento por serviços de saúde públicos ou privados
Conscientização
Assim como o enfrentamento do racismo e da homofobia, o combate à discriminação de indivíduos com HIV conta com um longo caminho pela frente. Para os especialistas, a direção está na ampliação do acesso à informação, de modo conscientizar o público de maneira mais efetiva.
“Campanhas de educação em saúde mostrando que a sorofobia é uma construção discriminatória tão equivocada quanto o racismo e quanto à homofobia devem continuamente veiculadas. Assim como ações que mostrem que uma pessoa que vive com HIV não é suja, perigosa e não tem o risco de transmitir o vírus, desde que esteja fazendo o tratamento”, destaca Vasconcelos. “Só assim para tirar um pouco da imagem negativa que o HIV tem no imaginário popular”, complementa
Já Furtado enfatiza a importância de expandir o conhecimento do conceito científico “Indetectável = Intransmissível”, ou I = I.
Na prática, o consenso significa que uma pessoa que vive com HIV em tratamento e com carga viral indetectável há pelo menos seis meses não transmite o vírus através de relações sexuais. A sigla, aliás, foi atualizada para I = 0 – ou seja, indetectável tem risco zero de transmissão para outras pessoas.
“Precisamos trazer para as campanhas sobre o HIV pessoas absolutamente felizes, aproveitando a vida, sem nenhum estigma no corpo, como é a realidade das pessoas que fazem o diagnóstico em 2024”, diz Furtado.
Ponto de vista jurídico
No Brasil, um conjunto de dispositivos jurídicos resguarda direitos de pessoas que vivem com HIV.
O acesso aos medicamentos antirretrovirais de maneira gratuita, por exemplo, consta na Lei nº 9.313 de 1996. Nesse contexto, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem o dever de ofertar o tratamento indicado pelo médico por força da Constituição Federal juntamente com legislação complementar.
“Caso tenha uma recusa, poderá acionar o Poder Judiciário por meio de um pedido de tutela de urgência, ou liminar. Diferentemente do que as pessoas imaginam, as ações judiciais na área da saúde são céleres, seguras e efetivas. O mesmo ocorre para uma pessoa com plano de saúde. Esta poderá recorrer à justiça se tiver um tratamento negado pelo plano”, afirma a advogada especializada em direito em saúde Claudia Nakano, que atua no escritório Nakano Advogados Associados.
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O direito ao sigilo da sorologia também consta na legislação brasileira. A lei nº 14.289 proíbe a divulgação de informações que permitam a identificação de pessoas que vivem com HIV. A medida inclui ainda indivíduos com hepatites crônicas, hanseníase ou tuberculose.
“Não pode haver divulgação por agentes públicos ou privados de informações que permitam a identificação acerca da patologia ou sobre o estado da saúde da pessoa com HIV. Já o sigilo profissional somente poderá ser quebrado em casos determinados por lei, por justa causa ou por autorização expressa da pessoa com o vírus”, detalha Claudia.
O texto ainda deixa explícito que o atendimento em serviços de saúde deve ser organizado de forma a impedir o conhecimento do público em geral da condição daqueles que convivem com uma dessas doenças.
Revelar o diagnóstico de outra pessoa sem consentimento é um crime previsto na lei nº 12.984, punível com reclusão de 1 a 4 anos e multa. Diante de um episódio de discriminação, o indivíduo deve buscar uma delegacia próxima, apresentando testemunhas ou provas do ocorrido para a realização de boletim de ocorrência.
No mundo corporativo, o tema é tratado na portaria 1.249/2010, do Ministério do Trabalho e Emprego que destaca um conjunto de normas.
O documento enfatiza que nenhum trabalhador pode ser obrigado a realizar o teste de HIV ou revelar seu estado sorológico. Além disso, proíbe a testagem para o vírus em exames médicos por ocasião da admissão, mudança de função, avaliação periódica, retorno, demissão ou outros ligados à relação de emprego.
O texto pontua ainda que o status não pode ser motivo de qualquer discriminação para a contratação ou manutenção do emprego. “Demitir uma pessoa por causa da sua sorologia é ilegal”, frisa a advogada.