Sabe por que o vírus da gripe chama influenza? Os médicos italianos do século 14 ficavam intrigados com o aumento das queixas de febre, cansaço, tosse e coriza durante os meses de temperatura mais baixa. Como eles não sabiam ao certo o que causava esses perrengues aos seus pacientes, restava culpar a influência dos astros e das vontades divinas. Os doutores do passado estavam enganados quanto à origem do problema, mas a história serviu para nomear um inimigo que continua afetando milhões e mata 650 mil pessoas por ano.
Ainda que reapareça em todo outono/inverno e soe a algo rotineiro, essa infecção sempre pode surpreender. O recém-acabado inverno do Hemisfério Norte foi marcado por um dos piores surtos nas últimas décadas. Só nos Estados Unidos foram confirmados 48 344 casos e 142 mortes de crianças entre outubro de 2017 e março de 2018.
Para ter ideia, esses são os maiores números desde a assustadora pandemia de 2009, que ficou conhecida como gripe suína. Na Europa, a situação foi similar: alguns países, como Alemanha, França, Polônia e Reino Unido, tiveram taxas de transmissão bem acima da média para o período.
A primeira explicação para o fenômeno está numa mutação genética que ocorreu com o H3N2, a cepa de influenza que mais circulou em terras americanas ao longo dessa temporada. “Como o conteúdo da vacina é definido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) com alguns meses de antecedência, essa modificação fez com que a eficácia da proteção ficasse em 30%, muito aquém do desejado”, analisa o infectologista Alberto Chebabo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Lâmina Medicina Diagnóstica.
As nações europeias também sofreram com um convidado-surpresa. A protagonista das infecções foi uma cepa do influenza tipo B que não integrava o imunizante aplicado na população. Em suma, esses vírus pegaram todo mundo de calças curtas.
Um segundo fator que ajuda a entender o sufoco lá no Hemisfério Norte foi a pior onda de frio do século, que se dispersou por várias regiões. Chamado de Besta do Leste, o fenômeno congelou rios, paralisou estradas e fez 45 vítimas. A gripe certamente pegou carona na friagem. “Com a temperatura muito baixa, saímos menos de casa e ficamos em ambientes fechados com outras pessoas, o que eleva a probabilidade de transmissão do vírus”, conta o infectologista Celso Granato, da Universidade Federal de São Paulo e do Fleury Medicina e Saúde.
Para completar o soneto trágico, os moradores desses países demoraram muito para se vacinar. Eles só correram aos postos de saúde quando a coisa já tinha começado a degringolar. Como o imunizante leva alguns dias para conferir o resguardo, todos ficaram expostos à infecção. Não deu outra: um monte de gente ficou doente e precisou se ausentar de suas atividades. A junção desses três fatores — mutação do vírus, frio rigoroso e falhas na prevenção — esclarece os milhares de casos noticiados.
E o que eu posso fazer?
Chegamos à pergunta que você deve estar se fazendo neste momento: qual o risco de esse cenário se repetir no Brasil, agora que estamos próximos do inverno? “Os casos da doença aumentam em geral em abril, mas não conseguimos antecipar exatamente qual será seu início, sua gravidade e sua duração”, responde o médico Julival Ribeiro, da Sociedade Brasileira de Infectologia. De acordo com o boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, até 5 de maio o país contabilizava 1 005 diagnósticos e 158 mortes por gripe, estatísticas normais para a época.
Por ora, os vírus mais atuantes são o H1N1, o H3N2 e o tipo B — os dois últimos são os mesmos que atingiram o Hemisfério Norte. Só que, não dá pra ter certeza se eles vão provocar tantos estragos em terras brasileiras como fizeram na porção superior do planeta.
O que não podemos fazer é ficar parados. Se agirmos desde já, é possível impedir que o problema ganhe contornos dramáticos. E o passo número 1 é tomar a vacina. “Ela está disponível na rede pública para crianças de 6 meses a 5 anos de idade, gestantes, mulheres que deram à luz nos últimos 45 dias, idosos profissionais da saúde, professores, indígenas, portadores de males crônicos como asma e diabetes, imunodeprimidos e indivíduos privados de liberdade”, lista a médica Helena Sato, diretora técnica de imunização da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo.
A campanha nacional de 2018 começou no dia 23 de abril e vai até 1º de junho. Se você integra algum desses grupos, que são mais suscetíveis aos perigos do influenza, não se esqueça de atualizar a carteirinha quanto antes.
E tenha cuidado com as notícias falsas que circulam por aí. A principal delas acusa a vacina, coitada, de causar a gripe. Pura balela. “Não existe a mínima probabilidade de isso acontecer, pois o imunizante é produzido com o vírus inativado”, garante o infectologista Ícaro Boszczowski, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, na capital paulista.
O único evento adverso que raramente aparece é uma leve irritação na pele no local da aplicação. Caso receba alguma informação estranha sobre esse tópico pelas redes sociais, pesquise a fonte e, na dúvida, converse com o médico antes de compartilhá-la com outros amigos. Tem gente espalhando boatos sem pé nem cabeça.
As particularidades da vacina da gripe
Ao contrário da maioria dos imunizantes, aquele que protege contra a gripe precisa ser renovado ano após ano. “O influenza sofre mutações a toda hora, o que lhe possibilita escapar da ação de uma vacina utilizada anteriormente”, ensina o virologista Edison Luiz Durigon, professor do Instituto de
Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Depois de alguns meses da picada, a proteção cai e, com a vinda do outono, uma nova dose é necessária para fazer o sistema de defesa contra-atacar o vírus da vez.
A eficácia decepcionante da vacina lá nos Estados Unidos e na Europa — bem abaixo da média de 70% — pode deixar uma pulga atrás da orelha. Será que compensa ir ao posto de saúde para obter uma proteção tão baixa? Tenha certeza que sim. Primeiro, não dá pra saber se esse número vai se repetir aqui — provavelmente não. “Além disso, ela segue efetiva para evitar os casos graves de gripe e protege contra complicações comuns após a infecção, como uma pneumonia”, defende o pediatra Alexander Precioso, diretor do Instituto Butantan, em São Paulo.
Claro que ninguém está 100% satisfeito com o imunizante de hoje. É por isso que cientistas se dedicam há anos na procura por novas soluções e aprimoramentos. Nos próximos meses, desembarcará no Brasil o primeiro produto dessa classe que vem junto a uma substância adjuvante, que incentiva uma reação turbinada das células de defesa. “Sem contar que, em breve, sairá a liberação de uma vacina de alta dose, com mais antígenos, voltada ao público idoso”, antecipa a médica Isabella Ballalai, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações.
A companhia francesa Sanofi Pasteur, uma das líderes nessa área, investe na criação de novos meios de preparar os imunizantes. Enquanto o método atual depende de ovos de galinha, a proposta seria utilizar culturas de células para cultivar os vírus. “Esse processo de manufatura é mais eficaz e rápido, o que nos permitiria responder com agilidade a uma eventual pandemia”, destaca a pediatra Ana Paula Flora, gerente médica da empresa.
Mas o grande sonho está na invenção de uma vacina universal contra o influenza, que não carecesse de reaplicação a cada ano. E já existem alguns avanços nesse sentido. A britânica GSK, em parceria com a Escola de Medicina Mount Sinai, nos Estados Unidos, identificou uma partícula do vírus da gripe que não passa por tantas mutações e inventou uma vacina com efeito duradouro.
Ela já foi testada em animais e resguardou por um tempo prolongado. “Devemos começar os estudos com humanos em breve, e os resultados preliminares serão publicados em 2019 ou 2020”, planeja a pediatra Bárbara Furtado, gerente médica da GSK.
Atitudes diários antigripais
Algumas medidas ampliam nossas linhas de defesa contra o vírus, como lavar as mãos ao chegar em casa, no trabalho ou na escola. Pense em todos os locais onde você bota os dedos no seu trajeto: maçanetas, barras do transporte público, botões de elevador… Será que alguém gripado não passou ali antes e espalhou uma multidão de germes? Para afastar qualquer oportunidade de infecção, vale ainda não coçar ou cutucar olhos, nariz e boca a todo momento.
Quando os sinais da chateação aparecem — cansaço, dor no corpo, calafrios, febres e nariz escorrendo —, é bom ficar de repouso. “Consulte o médico para que ele prescreva remédios que aliviam os sintomas, como antitérmicos e anti-inflamatórios”, recomenda a infectologista Maria Beatriz Souza Dias, do Hospital Sírio-Libanês, na capital paulista. Diferentemente do resfriado, a gripe tem início repentino e a febre é forte, acima dos 38 ˚C. Se necessário, dá para recorrer a um antiviral específico.
Todas essas recomendações são importantes não só do ponto de vista individual. Junto à vacina, elas ajudam a conter o vírus em toda a comunidade. O raciocínio é simples: se você não tem a doença, protege também quem está no seu entorno.
Até porque não sabemos onde, nem como, nem quando, surgirá a próxima pandemia. Em fevereiro de 2018, por exemplo, a China confirmou um contágio humano inédito com o temido H7N4, que antes só circulava entre aves. O que falta para uma nova mutação fazer esse vírus ser transmissível de pessoa para pessoa?
Sim, o futuro está lotado de incertezas. Mas há algo sobre o qual não podemos ter dúvida alguma: o papel-chave da vigilância e da prevenção para fazer da gripe uma ameaça menos assustadora.