A Food and Drug Administration (FDA, sigla da agência que regulamenta fármacos e alimentos nos Estados Unidos) aprovou recentemente a primeira terapia gênica para tratamento de pacientes com epidermólise bolhosa distrófica (EBD), uma doença genética e hereditária rara que provoca lesões, bolhas e feridas na pele em consequência de mínimos atritos.
Apesar de não ser a cura da doença, a nova terapia foi recebida com entusiasmo pela comunidade científica e pelos pacientes, que comemoram os avanços em busca de alternativas para melhorar a qualidade de vida das pessoas com EBD.
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O novo medicamento é o Vyjuvek, fabricado pela Krystal Biotech – uma biofarmacêutica que pretende disponibilizá-lo nos EUA ainda neste ano (ainda não há previsão para a chegada ao Brasil).
Trata-se de um medicamento de uso tópico, em forma de gel, que deve ser aplicado na ferida aberta. A expectativa da Krystal é reduzir em 50% o tempo de fechamento da ferida e mantê-la fechada e íntegra por um período mais longo (cerca de nove a 12 meses, o que é considerado muito bom).
Não existem números oficiais de pacientes com epidermólise bolhosa no Brasil, mas a DEBRA Brasil (uma organização internacional sem fins lucrativos de pesquisa, apoio e suporte à comunidade com EB) estima que haja pelo menos 1.500 pessoas oficialmente vivendo com a doença no país.
No entanto, a entidade acredita em subnotificação, e a estimativa é de que existam pelo menos 5.000 pessoas com EB no país e cerca de 500 mil no mundo.
Entendendo a doença
Existem mais de 30 tipos e subtipos de epidermólise bolhosa, mas a doença é basicamente dividida em quatro grupos principais: distrófica (mais prevalente, cerca de 40% dos casos); juncional, simples e Kindler.
Em cada um desses grupos, a mutação genética que causa o problema na pele acontece em genes diferentes, por isso, a apresentação clínica e a gravidade da doença variam de um paciente para o outro. Vale ressaltar que a doença não é contagiosa e nem transmissível.
Para entender o significado do impacto dessa terapia gênica na vida dos pacientes com EBD, é preciso primeiro entender o que a doença causa na pele.
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A nossa pele é formada por camadas: epiderme (a mais externa, que tem a função de barreira e proteção) e a derme (intermediária, mais interna). Entre as duas camadas existe uma zona basal, que atua como uma espécie de velcro, unindo uma à outra.
Nesta região é depositado colágeno tipo 7, uma proteína fundamental para fortalecer, estabilizar e manter a integridade da camada externa da pele.
Nas pessoas com EBD, mutações genéticas no gene que codifica o colágeno 7 (COL7A1) fazem com que as células não produzam essa proteína ou produzam versões que trabalham de forma errada, deixando a pele mais suscetível a traumas.
“O colágeno é que faz o ancoramento das duas camadas da pele [derme e epiderme]. Sem o colágeno, as camadas ficam mais soltas, sem firmeza. Qualquer batida, machucado ou atrito mais fortes, causam o descolamento dessas camadas. Isso forma a bolha que pode se transformar em uma ferida em carne viva no paciente com EB”, explicou o pesquisador Ricardo Weinlich, coordenador do Grupo de Pesquisa em Terapias Gênicas do Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Israelita Albert Einstein.
Segundo Weinlich, as feridas em pessoas com EB distrófica podem surgir tanto na pele externa, quanto nas mucosas da boca, esôfago, traqueia, estômago e intestino.
São muito dolorosas, incômodas e pioram consideravelmente a qualidade de vida do paciente, que precisa manter curativos diários.
O problema, explica o pesquisador, é que com a ausência de colágeno, novas feridas podem abrir com frequência, causando inflamações recorrentes na pele, o que aumenta o risco de infecção (pois a pele está aberta e se torna um meio fácil de entrada de bactérias) e de câncer de pele.
“O processo de cicatrização nesses pacientes é mais lento. E as feridas se tornam crônicas porque abrem, fecham, abrem de novo, fecham. Isso aumenta as chances de infecção generalizada e a probabilidade de surgimento de câncer de pele, o que pode levar estas pessoas a óbito”, disse Weinlich.
Como age a terapia gênica
Atualmente, os pacientes com EB não têm um tratamento específico para a doença. Cuidam das bolhas e feridas com curativos e pomadas, com hidratação constante e vão driblando as dores e dificuldades dentro de poucas opções terapêuticas.
A pomada Vyjuvek é considerada uma revolução porque atua fornecendo a “receita do bolo” para que a pele ferida do paciente com EBD produza o colágeno 7, cicatrize mais rápido, diminua a inflamação e permaneça estável (cicatrizada) por mais tempo.
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Para fornecer a “receita do bolo”, a terapia genética tem como base um vetor viral e usa o vírus herpes-simples tipo 1 (HSV-1), geneticamente modificado em laboratório, para fornecer cópias normais do gene COL7A1 para que a pele do paciente produza colágeno.
Segundo Priscila Keiko Matsumoto Martin, pesquisadora do IEP-Einstein e diretora de pesquisas da DEBRA Brasil, o gel deve ser aplicado somente na ferida aberta (já que na pele íntegra ele não faz efeito) e, provavelmente, ser reaplicado algumas vezes até que a cicatrização ocorra.
“Não é um tratamento sistêmico, mas funciona muito bem nas áreas de ferida aberta. Não importa o tamanho da ferida, nem quantas existem. Pode ser aplicado em todas”, explicou Martin.
Parece simples, mas envolve cuidados especiais e um custo bastante alto. O Vyjuvek é produzido em ampolas (estima-se que cada ampola consiga ser usada em cerca de 10 aplicações); precisa ser transportado e armazenado em temperatura de freezer (-22ºC) e, depois de aberto, deve ser usado em até 24 horas.
Cada ampola deverá custar nos EUA, em média, US$ 20 mil (cerca de R$ 100 mil).
“Não há limite de reaplicação, o que é ótimo. A gente acredita que seja necessário fazer pelo menos duas reaplicações semanais na mesma área lesionada para atingir o resultado. Estamos falando de três a quatro ampolas por paciente, por mês”, avalia Martin.
Como a validade do medicamento é muito curta e ele precisa ser usado em um único dia, o ideal seria dividir os custos de uma ampola entre vários pacientes.
“Após ser aberto, o Vujyvek precisa ser imediatamente usado, assim como acontece quando abrimos uma ampola de vacina. Estamos projetando um custo estimado de 80 a 100 mil dólares por mês”, explica a pesquisadora.
Outro detalhe importante é que a terapia gênica com Vyjuvek não é duradoura, já que ela não modifica o DNA do paciente, apenas fornece uma cópia transitória do gene extra para que as células daquela parte da pele produzam o colágeno.
Segundo Weinlich, à medida que as células do paciente se dividem e se renovam, uma nova camada de pele se formará e ela nascerá com o mesmo defeito genético, ou seja, continuará sem produzir o colágeno.
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“O tempo de cicatrização é muito variável em cada paciente porque depende do tamanho da ferida, do local afetado. Mas, em geral, a cicatrização do paciente com EB é demorada e logo depois a ferida volta a abrir no mesmo local”, disse Martin.
“O mais importante dessa terapia gênica é que ela deixa essa ferida fechada e cicatrizada por mais tempo. Isso reduz muito o risco de infecção e de câncer de pele, que são causas recorrentes de morte”, completa.
Mesmo diante do alto custo, das dificuldades logísticas envolvendo o transporte e acondicionamento do medicamento, além da complexidade da doença, os pesquisadores comemoram os resultados obtidos até agora com o Vyjuvek.
Para eles, o maior tempo de cicatrização que a terapia alcança promove um ganho indireto muito importante que é a redução da dor, do desbalanço hídrico e, consequentemente, a diminuição do risco de infecções e de câncer de pele.
“Essa terapia gênica não é curativa porque o gene saudável não está sendo colocado nas células-tronco e sim nas células superficiais da pele. Mas os resultados obtidos são incríveis. Todos os tratamentos disponíveis até hoje são cuidados paliativos. Essa terapia, mesmo não sendo curativa, ataca a causa raiz que é a falta de produção de colágeno. E esse depósito constante de colágeno torna a pele muito mais estável”, disse Weinlich.
Pesquisa no Brasil
Desde 2021, o time de Weinlich e Martin está desenvolvendo uma pesquisa de terapia gênica no Instituto de Pesquisa do Einstein justamente em busca de um tratamento para EBD.
O projeto está sendo feito em parceria financeira com o Ministério da Saúde e com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
A pesquisa ainda está em fase pré-clínica e os cientistas estão testando diversas ferramentas para encontrar a melhor abordagem de tratamento para pacientes com epidermólise bolhosa.
Segundo Weinlich, o grupo coletou amostras de pele de pacientes com EBD para poder multiplicá-la em laboratório e testar as ferramentas in vitro.
“A nossa pesquisa ainda está distante da prática clínica. Mas estamos fazendo testes para definir qual é o protocolo de terapia gênica mais eficaz para transformá-lo futuramente em pesquisa clínica”, explicou.
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O grupo trabalha em duas frentes: a primeira usa uma amostra de pele do paciente para obter células desse indivíduo. No laboratório, por meio da terapia gênica, serão feitas correções genéticas no gene do colágeno 7 dessas células. O próximo passo é multiplicar essas células para recriar pequenos fragmentos de pele contendo o colágeno 7 – são esses fragmentos que serão transplantados nas áreas de feridas desses pacientes.
A segunda abordagem da pesquisa pretende utilizar um vetor viral (assim como acontece com o Vyjuvek) para entregar as ferramentas de edição gênica desenvolvidas diretamente na pele para que as células com a mutação passem a produzir o colágeno.
“Hoje não existe a cura da epidermólise bolhosa e a terapia gênica é o que mais se aproxima disso. Sabemos que ainda temos um longo caminho pela frente, mas estamos empolgados em trilhá-lo”, disse o pesquisador.
Ele ainda faz uma ressalva: “Se por um lado temos uma tecnologia super avançada e complexa sendo produzida, por outro lado ainda falta acesso aos materiais e cuidados básicos para esses pacientes. O desafio ainda é grande”, completou Weinlich.
Fonte: Agência Einstein