“É mito que a educação sexual estimule a sexualidade precoce”
Médica esclarece a importância das primeiras visitas ao ginecologista e explica o mecanismo do vírus HPV, responsável pelo câncer de colo do útero
Dentre as muitas demandas que as mulheres já têm, não se pode menosprezar a saúde íntima, ainda muito envolta em tabus.
Na última edição de VEJA SAÚDE, mergulhamos nesse universo e destrinchamos questões de higiene íntima e saúde sexual na reportagem Conhece-te a ti mesma: a saúde íntima feminina.
Esse cuidado tão essencial envolve idas periódicas ao ginecologista e prevenção do HPV, entre tantos outros tópicos. Na entrevista abaixo, a médica ginecologista Lia Damásio, que participa da reportagem, dá dicas preciosas para mulheres de todas as idades.
Lia é professora de ginecologia da Universidade Federal do Piauí (UFPI), doutora em ciências pela Universidade de São Paulo (USP) e membro da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).
Primeiros passos
VEJA SAÚDE: Para começar, gostaria que a senhora explicasse qual a melhor idade para levar a menina a sua primeira consulta com um ginecologista, o médico especialista em saúde íntima feminina.
Lia Damásio: Gosto de dizer que existiriam três boas ocasiões: no momento em que começam as alterações puberais, ou seja, quando começam a aparecer mamas e pelos, antes da primeira menstruação. Pode ser entre 9 e 10 anos, às vezes algumas meninas com 8 anos.
Isso é importante para que o ginecologista possa acompanhar se o desenvolvimento está normal e adequado para a idade, e se existe alguma necessidade de investigação ou acompanhamento mais específicos.
Passado esse momento, uma segunda oportunidade é a época da primeira menstruação, que é a menarca.
O profissional acompanha o desenvolvimento desse processo, e existem alguns parâmetros usados para o monitoramento: frequência, regularidade, volume, presença de outros sintomas associados. A consulta também faz com que a jovem comece a conhecer melhor o próprio corpo.
Se após essa fase a consulta ainda não aconteceu, o ideal é que ela vá pelo menos antes da primeira relação sexual. É essencial ter boas orientações sobre métodos contraceptivos, uso de preservativo, verificar se está tudo bem… E tirar dúvidas, né?
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Isso seria para uma garota que se desenvolve normalmente, certo? Mas há exceções?
Sim. Uma menina recém-nascida que tem um sangramento genital deve ser logo ser encaminhada ao médico especialista. Assim como aquelas que tiveram corrimentos diferentes ainda crianças.
Também temos um evento chamado puberdade precoce, que pode até ser normal em alguns casos, mas tem aumentado um pouco de incidência por conta de estímulos excessivos, como os das telas eletrônicas, os distúrbios de sono, tudo tem repercussão…
Por isso, se a menina teve algum desenvolvimento puberal muito cedo, como o surgimento das mamas e pelos antes dos oito anos de idade, é obrigatória a investigação. Até porque, nessa idade, há o risco de comprometer a altura final da criança.
Se houver realmente o diagnóstico de puberdade precoce, há medicações que vão tentar bloquear esse desenvolvimento e podem ser usadas alguns casos.
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Qual é a periodicidade ideal pra mulher no ginecologista?
Da adolescênica à terceira idade, a a frequência recomendada é uma vez ao ano.
Para adolescentes, é ideal fazer um acompanhamento pra ver se tudo tá desenvolvendo bem. No caso de mulheres adultas, o objetivo é fazer o chamado seguimento de rotina.
Isso muitas vezes inclui somente anamnese [diálogo estabelecido entre o profissional e o paciente] e o exame físico, que já são super importantes. A partir dos 25 anos, temos a citologia, que é o exame papanicolau, para rastrear o vírus HPV. A partir dos 40, podem entrar outros exames, em especial a avaliação da mamografia. E por aí vai, a depender de cada caso.
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Prevenção do HPV
Algumas mulheres reclamam do papanicolau, tem vergonha, acham invasivo, não querem fazer… Qual é a importância de se realizar periodicamente esse exame a partir dos 25 anos?
No papanicolau, a gente colhe células do colo do útero pra tentar rastrear lesões pré-invasivas, ou seja, que surgem antes de virar o câncer de colo de útero.
Esse tumor é causado, majoritariamente, pelo vírus HPV.
A história natural do câncer de colo é a seguinte. Primeiro, a mulher entra em contato com o HPV. Praticamente todo mundo que tem relação sexual contrai esse vírus.
Quando ela adquire o vírus, é normal haver uma infecção, mas mais de 90% das pessoas clareia esse problema. O que é isso? A sua própria imunidade, em dois ou três anos, consegue inativar sozinha a ação do vírus. Se isso não acontece, a infecção pode levar, anos depois, ao câncer.
Daí a importância do exame: flagrar essas lesões pré-câncer e tratá-las antes que evoluam mal.
Então por que não se deve fazer essa pesquisa do HPV e esse rastreio da citologia em mulheres com menos de 25 anos?
Porque a incidência de presença de HPV e pequenas alterações vai ser muito alta, já que muitas delas acabaram de entrar em contato com o vírus pelo início da vida sexual.
No passado, se fazia muitos procedimentos agressivos para meninas jovens, com medo desse HPV inicial, mesmo ele sendo uma infecção que, dali a dois anos, já estaria autolimitada e resolvida.
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E nas mulheres nas quais a infecção não foi naturalmente suprimida, o que ocorre?
Nesses 10% de mulheres, o HPV fica persistentemente causando lesões ali no colo do útero. São as chamadas neoplasias intraepteliais (NIC), de baixo ou alto grau, que podem ser classificadas como NIC1, NIC2, NIC3.
Esses número indicam o nível de comprometimento da espessura do epitélio [camada que reveste o órgão], sendo NIC1 a menos invasiva, e NIC3 a que acomete todo o epitélio.
Essas lesões são pré-invasivas, ou seja, não são câncer. Mas, se você não cuidar delas, podem evoluir e penetrar ainda mais, causando o câncer de colo.
Só que para isso acontecer, é preciso, em média, 10 anos de infecção persistente.
Por isso dizemos que o câncer de colo do útero é uma doença evitável. Se você descobrir a lesão antes que ela vire uma NIC ou nas NICs iniciais, a gente tem uma grande chance de frear essa evolução.
Se houver alguma lesão, como é o tratamento?
Não há um remédio que mate o HPV. O que fazemos é tratar a lesão. Se a pessoa tiver uma NIC1, dependendo de como se manifesta, é possível cauterizar, retirar, realizar outros procedimentos ou ainda só acompanhar e tomar medidas para melhorar a capacidade de defesa contra o vírus, como a vacina contra o HPV, e aí ir observando periodicamente.
Quando já é NIC2 e NIC3, que são as lesões de alto grau, é indicado fazer uma retirada mais ampla, que é a chamada conização, para tentar limitar a progressão. O que, geralmente, tem bom resultado.
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Nesse contexto, qual a importância da vacina contra o HPV?
A vacinação contra o HPV logo na infância é o primeiro dos cuidados, para deixar o corpo já preparado para o vírus.
Se a gente fizer um tripé contra o HPV é: vacinação, de preferência antes do início da atividade sexual; rastreamento adequado com a citologia bem colhid,a anualmente, na idade correta; e sexo seguro, com uso do preservativo. Isso já é capaz de reduzir a incidência e a gravidade do câncer de colo do útero.
A OMS, a Organização Mundial de Saúde, tem um projeto de zerar o câncer de colo até 2030. A gente está longe disso, porque nosso rastreamento ainda não é 100%, a taxa de vacinação é baixa, e o nosso uso de preservativo tem caído. Mas, sabemos que é possível, é uma doença a se combater com educação e informação.
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Alguns pais ainda tem receio de vacinar contra o HPV e estimular a sexualidade precoce. Mas essa relação não existe, certo?
Não existe. Perfeita sua colocação, porque isso é um mito comum que prejudica muito a vacinação.
Na verdade, é o contrário. Os estudos têm mostrado que as adolescentes vacinadas têm uma tendência a ter um início da vida sexual mais tardio do que as não vacinadas. Isso porque em geral a vacinação indica que elas têm um pouco mais de orientação em relação à educação sexual.
A atividade sexual tem que ser conversada, com naturalidade. Não se trata de estimular. Pelo contrário, se trata de abordar com transparência e cuidado. Isso não influencia nada, apenas fortalece a saúde.
Pela campanha do Ministério da Saúde, meninos e meninas entre nove e catorze anos devem tomar a vacina tetravalente, que protege contra os quatro tipos de HPV mais comuns.
Isso é o que tem disponível no SUS. Com a taxa de cobertura, ressalte-se, muito pequena, né? Estima-se que apenas 30 a 40% das crianças tomem as doses na hora certa.
Na rede privada, há tanto a tetra quanto a nonavalente, que não tem ainda no SUS e protege contra nove tipos de HPV, oferecendo uma proteção maior, até os 45 anos de idade.
Importante ressaltar que a vacina serve para a prevenção primária, antes de entrar em contato com o HPV; para a prevenção secundária, de quem já contraiu o vírus, aprimorando a imunidade; e serve até para melhorar a resposta imune das infecções ativas.
Além disso, o HPV também é envolvido em outros tipos de cânceres menos falados, como no de boca, orofaringe, de pênis e até no câncer anal.
Vacinar os meninos, além de diminuir a propagação de meninos para meninas, também ajuda a diminuir a incidência dessas doenças, sem falar em condiloma, verrugas genitais.
É preciso falar de saúde sexual de forma global. É fundamental que sejam vacinados meninas e meninos contra o HPV.