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Precaução ou retrocesso? Médicos comentam decisão do CFM sobre cannabis

Entidade restringiu a prescrição de derivados da maconha e foi duramente criticada por profissionais e pacientes. Entenda a polêmica

Por Chloé Pinheiro
Atualizado em 25 abr 2023, 11h43 - Publicado em 24 out 2022, 18h03

Recentemente, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou uma resolução limitando o uso medicinal da cannabis ao seu derivado canabidiol (CBD), e somente para certas epilepsias infantis resistentes ao tratamento. 

O documento também proibia médicos de darem palestras ou cursos sobre a planta fora do ambiente científico e veda a prescrição da cannabis in natura ou outros derivados, como os extratos que contém tetrahidrocanabinol (THC) e outros fitocanabinoides. 

A decisão causou revolta entre pacientes que já estão usando esses produtos no tratamento de diversas condições, mesmo diante da incerteza da ciência sobre seu benefício, como fibromialgia e autismo. Tanto que, semanas depois, a entidade suspendeu a resolução enquanto realiza consulta pública sobre o tema. 

Por enquanto, volta a ser responsabilidade do médico a prescrição de derivados da cannabis, seguindo as recomendações da Anvisa.

Hoje, além do Mevatyl, medicamento à base de CBD e THC aprovado desde 2017 para tratar espasmos da esclerose múltipla, e dos extratos comercializados por associações, há dezenas de produtos importados aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) por meio de uma normativa especial, que dispensa comprovação de eficácia e segurança. 

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Como mostramos em reportagem recente, há um boom de interesse no uso medicinal e na pesquisa da cannabis que leva a  certa banalização, mas também existem evidências sólidas para justificar sua prescrição em situações além das mencionadas pelo CFM. 

“O próprio conselho, em uma cartilha de 2019, reconhece como evidências conclusivas três indicações que ficaram de fora da resolução: dor crônica, espasticidade reportada pelo paciente na esclerose múltipla e para náuseas e vômitos induzidos por quimioterapia”, comenta Heloísa Jatobá Scattone, médica e pesquisadora de cannabis medicinal da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Para vários outros cenários, as evidências científicas ainda estão sendo construídas, até porque foram empacadas por décadas de proibicionismo. 

“Toda decisão deve advir da ciência. Não importa se pessoas “acreditam” que a cannabis deva ser usada como tratamento médico, o que importa é o que os estudos irão comprovar com o passar do tempo”, comenta o psiquiatra Rafael Faria Sanches, da Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto. 

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A contraditória posição do CFM

A diretriz do conselho é uma atualização do último posicionamento sobre o assunto, de 2014, mas, que na prática, tem o mesmo conteúdo do documento anterior. Como argumento para manter a restrição, o CFM publicou um livro onde analisa as evidências científicas sobre o assunto, mas o documento só cita o tratamento da epilepsia refratária. 

A título de comparação, em 2017, a Academia Nacional de Ciências, Engenharia e Medicina dos Estados Unidos publicou uma revisão com o mesmo objetivo, que chegou a conclusões bem diferentes. 

Os autores norte-americanos destacam benefícios terapêuticos da cannabis e seus derivados em três situações além das epilepsias refratárias, que são aquelas que já mencionamos: dor crônica, espasticidade associada à esclerose múltipla e no alívio de vômitos e náuseas associados à quimioterapia em adultos. 

+ Leia também: Panaceia ou revolução? O fenômeno da cannabis medicinal

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A psiquiatra Débora Gomes-Medeiros, pesquisadora em políticas sobre drogas do Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos da Unicamp, compara a situação com o Parecer 4/2020, do mesmo CFM. 

No início da pandemia, o órgão liberou a prescrição de medicamentos como cloroquina e ivermectina para o tratamento da Covid-19. O texto reconhece a ausência de evidências, mas evoca a autonomia médica, a relação médico-paciente, o uso compassivo e uma racionalidade clínica a ser comprovada pelos estudos que estavam sendo conduzidos.

Depois, quando as pesquisas mostraram que o “kit Covid” não funcionava, o órgão desconsiderou a ciência e manteve seu posicionamento, se apoiando somente na autonomia do médico. 

Na resolução em relação à cannabis, nada disso foi levado em conta. “O que ocorreu foi um privilégio daquilo que o órgão entendeu como evidências robustas. A autonomia, a relação médico-paciente, as milhares de pesquisas em andamento, o histórico de mais de 4 mil anos de exploração desse potencial terapêutico foram completamente ignorados”, comenta Débora.

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A proposta de uso compassivo 

A comparação entre a postura do CFM perante o kit Covid e a cannabis faz sentido, mas desperta outro questionamento. Ora, se a postura do órgão estava errada em 2020, não é melhor que seja corrigida agora para evitar o uso exagerado de uma substância ainda em testes? 

O ponto é que, além de já ser justificável prescrever cannabis em várias situações desconsideradas pelo órgão, outras milhares de pessoas já estavam usando a planta no chamado uso compassivo, aquele feito quando o indivíduo não responde ao tratamento convencional ou quando não há remédios específicos para a sua doença. 

“É uma modalidade de uso no qual a decisão médica se sustenta na observação cuidadosa do paciente, na intensidade do sofrimento, na evolução do caso e no padrão de resposta ao tratamento”, explica Débora. 

Outro pilar importante é a comunidade científica e uma racionalidade biológica. “Se os estudos clínicos com a cannabis continuam ocorrendo, isso significa que a ciência segue validando a possibilidade do uso nas condições pesquisadas”, comenta a médica. 

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+ Leia tambémComo o Brasil virou o país da cloroquina?

Ou seja, diferente do tratamento precoce contra a Covid, que já foi descartado e substituído pelas vacinas e por antivirais específicos para o coronavírus, aqui estamos falando de uma planta que está na crista da onda da ciência. E com resultados promissores. 

Isso não justifica o exagero na prescrição e nenhuma panaceia, claro, mas os benefícios que já estavam sendo observados não podem ser ignorados pelo conselho. 

“A decisão é uma tentativa de frear o uso descontrolado, o que é muito bom, o problema é que alguns pacientes com doenças mais graves poderiam se beneficiar desses derivados”, pontua Sanches.  

A outra questão é que esta resolução pode ter um viés político, uma vez que foi aprovada às vésperas de uma das eleições mais disputadas dos últimos anos, e o tema maconha gera debates apaixonados, tanto à esquerda quanto à direita.

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“Se o conselho opta por restringir o uso, precisa fazê-lo de maneira que não cause danos à população pela descontinuidade dos tratamentos, não gere insegurança que acarrete estresse adicional para aqueles que já estão doentes e não restrinja o acesso à saúde, direito constitucional”, aponta Débora.

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