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Panaceia da cannabis medicinal é discutida em congresso de neurociência

Médicos e pesquisadores debatem as expectativas e as evidências científicas para a utilização de substâncias derivadas da maconha no tratamento de doenças

Por Diogo Sponchiato
Atualizado em 8 jul 2022, 17h08 - Publicado em 7 jun 2022, 16h22

A panaceia do canabidiol: assim foi batizada uma das principais sessões de discussão do 21º Congresso de Cérebro, Comportamento e Emoções, realizado há pouco no frio de Gramado (RS). A mesa-redonda reuniu profissionais que estudam ou lidam na prática clínica com essa substância originária da maconha, alvo de pesquisas e esperanças no tratamento de condições que vão de autismo a demência.

A Cannabis sativa possui mais de 150 canabinoides, entre os quais se destacam o tetrahidrocanabinol (THC), elemento por trás do efeito psicoativo da maconha (o “barato”), e o canabidiol (CBD), componente que desperta maior interesse para fins terapêuticos e não altera o estado de consciência nem gera dependência.

Regularizado para uso medicinal no Brasil, o CBD está com a demanda em alta: cada vez mais médicos prescrevem a substância e pacientes veem nela uma oportunidade de controlar problemas que envolvem dores, crises convulsivas ou ansiedade. O composto é adquirido em farmácias ou importado por meio de receita médica e autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

O ganho de popularidade caminha em paralelo a dois fenômenos: o desenvolvimento de estudos que investigam a eficácia e a segurança do tratamento em diversos contextos e o marketing que, em algumas situações, beira o charlatanismo.

Se por um lado há gente séria apurando os benefícios e as limitações do canabidiol, por outro há profissionais sem capacitação adequada receitando um “óleo milagroso”, capaz de curar doenças sozinho − o que está longe de ser verdade.

Daí a mesa-redonda na última edição do Brain, como o maior congresso de neurociência do país é conhecido no meio acadêmico. Afinal, o que há de comprovado no uso terapêutico da cannabis e o que precisa ser mais bem compreendido antes de as pessoas saírem tomando ou prescrevendo por aí? Com a palavra, os especialistas.

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Esperança, mágica e ciência

O principal campo de atuação terapêutica dos canabinoides hoje é o das doenças neurológicas ou neuropsiquiátricas. Já existem evidências sólidas de que o canabidiol pode ser associado, com sucesso, ao tratamento de alguns tipos de epilepsia refratária às abordagens tradicionais, esclerose múltipla e dor crônica.

Enquanto experimentos buscam respostas sobre essas e outras indicações, e os cientistas desbravam os mecanismos de ação da molécula, médicos e pacientes depositam no CBD esperanças para controlar problemas de saúde que resistem às terapias clássicas, ou como forma de evitar os efeitos colaterais dos medicamentos convencionais. A lista de aplicações só cresce: autismo, enxaqueca, demência etc.

O neurologista André Palmini, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), expôs que a procura pelo canabidiol se pauta hoje pela grande expectativa dos cuidadores e pacientes em encontrar uma solução diante de uma condição desafiadora, pelo acesso a inúmeros relatos de internet a respeito e por uma espécie de rejeição aos tratamentos alopáticos.

Dá para entender o lado das famílias. Imagine crises de epilepsia incontroláveis ou casos de autismo grave em que o jovem se agride constantemente ou é violento com os outros. Quando os remédios usuais não funcionam tão bem, não seria legítimo partir para uma alternativa como o CBD?

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A discussão fica mais complexa quando faltam estudos atestando a eficácia e a segurança dessa opção para quadros específicos. E pela carência de informação confiável e acessível às famílias. “É um cenário em que as pessoas convivem com o imbróglio da descriminalização da maconha, em que se confunde cannabis com canabidiol e ainda temos que considerar um possível efeito placebo do tratamento“, analisa Palmini.

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De acordo com o neurologista, os efeitos bem estabelecidos sobre o uso de canabidiol, publicados em periódicos científicos de peso, se restringem por ora a formas mais graves de epilepsia e autismo − neste caso, pelo impacto comportamental.

Quem vive no dia a dia a demanda e a esperança dos familiares depositada nesse derivado da cannabis é a neuropediatra Marta Hemb, também da PUC-RS. Lidando com crianças portadoras de epilepsias refratárias e autismo severo, ela conta que é comum receber pais buscando uma alternativa às medicações tradicionais, nem sempre efetivas e repletas de reações adversas.

“Temos pacientes tomando cinco ou seis medicamentos e sofrendo com a doença e os efeitos colaterais dos remédios. Na epilepsia, por exemplo, as mães contam que o canabidiol muitas vezes nem melhorou tanto a doença em si, mas ajudou bastante no comportamento da criança”, relata a médica.

Na sua experiência com epilepsia e transtorno do espectro autista, Marta observa benefícios do CBD (e a quase ausência de eventos adversos) na maioria dos pacientes atendidos em consultório. “Há uma plausibilidade biológica para esse efeito, mas isso não é sinônimo de evidência, só gera hipóteses de eficácia”, argumenta.

A neuropediatra comenta que ainda precisamos de estudos mais robustos para direcionar as aplicações do canabinoide. “Penso que hoje vale tentar para aqueles casos mais graves, refratários às medicações usuais ou que sofrem com seus efeitos colaterais”, diz. Sempre com acompanhamento médico, é bom frisar.

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ilustração de folha de maconha
Cannabis: planta tem mais de 500 substâncias, 165 canabinoides descritos. (Ilustração: Veja Saúde/SAÚDE é Vital)

Como funciona?

A ação do canabidiol no corpo humano é uma das searas mais intrigantes da neurociência. Essa história começa na década de 1960, quando o israelense Raphael Mechoulan fez as primeiras descrições da estrutura química dos principais canabinoides da maconha, o THC e o CBD.

A farmacêutica Alline Campos, da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, conta que, nos anos 1990, estudiosos identificaram receptores para os canabinoides nas células do nosso sistema nervoso central e, posteriormente, até em unidades do sistema imune. “Descobriu-se que essas substâncias interferiam na liberação de alguns neurotransmissores, controlando a excitação ou a inibição do sistema nervoso”, ensina.

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Na sequência, cientistas observaram que o próprio organismo produz moléculas parecidas com os canabinoides, e elas foram chamadas de endocanabinoides. Pesquisadores brasileiros deram uma importante contribuição para esse campo do conhecimento demonstrando, em experimentos com animais e humanos, os efeitos do canabidiol na ansiedade, por exemplo.

Mas era preciso entender mais a fundo o mecanismo de ação da molécula. E é a isso que Alline vem se dedicando desde 2006. Em um de seus experimentos em modelo animal, a farmacologista desvendou que, ao contrário do que a lógica mandaria supor, o efeito do CBD não é mediado exatamente pelo seu contato com os receptores de canabinoide das células. Ele interage com vários outros receptores celulares, influenciando a liberação de neurotransmissores e modulando reações dos neurônios.

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E o que isso muda na prática? Dentro dessa linha de pesquisa, Alline percebeu que o CBD potencializa a ação de antidepressivos, o que sugere inclusive que, no início, esses medicamentos dependem do nosso sistema endocanabinoide para funcionar direito.

Essas repercussões já começam a ser visualizadas em gente como a gente. Na USP de Ribeirão Preto, um estudo clínico com portadores de depressão resistente testou a associação do canabidiol com o tratamento convencional e constatou efeitos positivos.

Para entender minuciosamente o trajeto do canabidiol pelo organismo, a equipe de Alline fez uma parceria com o Instituto Max Planck, na Alemanha, com o intuito de utilizar um marcador fluorescente a ser acoplado à molécula de CBD. Isso vai permitir rastrear seu caminho e pontos de atuação pelas células.

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Eficácia e segurança

Um dos principais nomes no estudo dos canabinoides no Brasil, o psiquiatra José Alexandre Crippa, professor do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, recuperou o histórico de evidências do canabidiol e sublinhou que o CBD não deve ser encarado como uma “panaceia” ou “bala de prata”.

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O especialista lembrou que a primeira prova do benefício da substância na epilepsia foi fruto do trabalho de pesquisadores brasileiros, capitaneados pelo médico Elisaldo Carlini (1930-2020), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e que seus efeitos ansiolíticos foram observados em pessoas saudáveis em experimentos realizados pelo grupo da USP de Ribeirão Preto.

Também resgatou dois episódios envolvendo crianças com epilepsia refratária que melhoraram com o óleo de CBD, o primeiro nos Estados Unidos em 2003 e o segundo no Brasil em 2014, que mobilizaram a opinião pública e colocaram o derivado da cannabis na mídia e na pauta política.

Hoje, as evidências científicas suportam o uso dessa solução em síndromes que provocam crises convulsivas graves e há dezenas de estudos avaliando o potencial do CBD em quadros psíquicos e neurológicos.

No entanto, Crippa questionou a aura mágica e inofensiva que a substância adquiriu. “O fato de ser natural não significa que é inócuo. Inclusive a utilização pode ter efeitos colaterais, como alterações das enzimas hepáticas, e interação com outras medicações”, afirma.

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O professor também pontuou a necessidade de aprimorar a padronização e o controle de qualidade dos extratos (nos EUA, já são vendidas até balas e gomas com canabinoides!) e de realizar mais pesquisas para entender eficácia, segurança, janela de tempo, dosagem e possíveis combinações para cada tipo de transtorno.

Ele conta que o óleo é a forma de uso que propicia melhor absorção, mas deve-se ficar atento à presença e ao percentual de THC de algumas formulações − e, pensando no componente psicoativo da maconha, ponderar os riscos já relacionados a um cérebro em desenvolvimento, como no caso de adolescentes.

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Reforçando a importância da ciência em matéria de canabinoides e sua interação com o organismo, Crippa recordou o episódio do rimonabanto, um comprimido para perda de peso lançado por uma farmacêutica que atuava no sistema endocanabinoide.

Ele passou nos testes clínicos e chegou a ser aprovado para uso aqui e lá fora, mas estudos subsequentes descobriram que aumentava o risco de depressão e ideação suicida. A droga (que não era um canabinoide, convém frisar) foi tirada do mercado.

Em outra sessão do congresso, focada em demência, a neurologista Sônia Brucki, da Faculdade de Medicina da USP, esclareceu que, apesar dos relatos positivos sobre o uso de canabinoides nesse contexto, sobretudo no aspecto comportamental dos pacientes, mais pesquisas de longo prazo são necessárias para determinar o grau dos benefícios.

Em meio à tanta discussão, uma coisa é certa: o CBD segue promissor, mas longe de ser uma “panaceia”, como já há quem pregue por aí.

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