A planta Cannabis sativa, popularmente conhecida como maconha, consta de farmacopeias pelo mundo há séculos. Faz tempo que a humanidade a utiliza não só pelos efeitos recreativos mas também terapêuticos — uma lista de indicações que incluía de bronquite a insônia.
Na década de 1920, um brasileiro podia ir à farmácia comprar cigarros de cannabis numa boa.
A história começou a mudar nos anos 1930. Leis proibicionistas restringiram as vendas e a utilização. Em 1961, num cenário de convulsões culturais, ela passou a ser considerada “substância extremamente prejudicial à saúde” pela Organização das Nações Unidas (ONU). Virou “droga”, na acepção mais comum da palavra.
A decisão, considerada equivocada por especialistas, empacou as pesquisas que exploravam o caráter medicinal da planta. Como sabemos, os predicados “antigo” e “natural” não são sinônimos de “seguro” e “eficaz”. Mas a cannabis prometia. Assim, cientistas seguiram estoicamente testando a erva a despeito das restrições.
O Brasil inclusive virou referência no assunto. Nos anos 1970, o médico Elisaldo Carlini, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), usava plantas apreendidas pela polícia e chegou a fazer seu próprio cultivo para estudar as propriedades da cannabis. “Já naquela época, ele ensinava que era necessário romper barreiras e enfrentar dogmas”, recorda o farmacêutico Paulo Eduardo Orlandi Mattos, pesquisador da Unifesp que colaborou com Carlini.
O professor que desafiou o establishment faleceu em 2020, aos 90 anos, e foi citado em mais de 12 mil trabalhos científicos.
A medicina está colhendo agora os frutos da dedicação de Carlini e de outros estudiosos, como o bioquímico israelense Raphael Mechoulan, que, nos anos 1960, descreveu os principais componentes ativos da maconha.
Dois meses depois da morte do médico brasileiro, em dezembro de 2020 a mesma ONU reconheceu as propriedades terapêuticas da cannabis e a retirou da lista de substâncias perigosas como o crack. Pesquisas clínicas de qualidade atestam sua eficácia para algumas doenças e sintomas.
E a legislação brasileira também mudou. Hoje é possível comprar, com receita médica, produtos à base de cannabis nas drogarias. Por outro lado, a merecida empolgação e um mercado em expansão também deram origem a um rótulo de panaceia, como se a planta resolvesse qualquer parada — e relatos individuais estouraram na mídia se sobrepondo a estudos e incertezas.
Estamos diante de um admirável e promissor mundo novo estrelado por essa velha conhecida, só que a banalização sem chancela científica pode queimar (de novo) o filme dela.
Em 2015, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou a importação de produtos derivados de cannabis para fins terapêuticos por meio de prescrição médica. No primeiro ano, foram 850 pedidos. Em 2021, quase 40 mil.
O crescimento do interesse partiu primeiro dos pacientes, chegou aos médicos — que, aos poucos, começaram a se interessar em prescrever e buscar cursos de especialização — e é pautado, antes de tudo, pela ciência. “Nos últimos cinco anos, o número de estudos clínicos cresceu consideravelmente. Com isso, há patologias em que temos o grau máximo de evidência, que são os ensaios randomizados controlados comparando os compostos da cannabis com um placebo, e outras em que esse nível não foi atingido, mas há indícios consideráveis do benefício, corroborados por estudos pré-clínicos e observacionais”, contextualiza o médico Wellington Briques, fundador do Centro Brasileiro de Referência em Medicina Canabinoide.
+ Leia também: Como interpretar um estudo científico?
A aplicação mais referendada pelas provas científicas hoje é a prescrição de canabidiol (CBD), um dos princípios ativos da planta, para o controle de algumas epilepsias que não são resolvidas com medicamentos.
Esse uso foi viabilizado em maior escala com uma mobilização social pela liberação da cannabis no Brasil, liderada principalmente por mães de crianças que convulsionavam dezenas de vezes ao dia e, com o extrato de CBD, passaram a viver melhor.
Uma revisão sistemática a respeito, publicada no periódico Scientific Reports, do grupo Nature, mostrou que o canabidiol reduz em até 50% as crises de crianças com síndrome de Dravet. O quadro, progressivo e incapacitante, limita o desenvolvimento cognitivo e motor da criança, e não costuma responder à abordagem farmacológica padrão. O CBD também atua com sucesso na síndrome de Lennox-Gastaut, que tem repercussões similares.
“Além disso, temos outros bons estudos que demonstram o poder de reduzir crises espontâneas em pacientes que sofrem de epilepsia refratária. Esse foi um ganho muito significativo, pois temos mais de 150 anos de uso da cannabis como anticonvulsionante, mas esse tipo de pesquisa estava adormecido e ainda existe uma população desassistida, apesar dos avanços da indústria farmacêutica”, conta o neurocientista Claudio Queiroz, do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Outra indicação bem consolidada é o controle da espasticidade, um sintoma da esclerose múltipla. Definida como excesso de tônus muscular com reflexos hiperacentuados, ela é fruto de uma pane no sistema nervoso que prejudica a movimentação, leva a contraturas, deformidades e dores intensas.
O CBD aqui é coadjuvante. O principal responsável pelo benefício nesse caso é o tetra-hidrocanabinol, ou THC, composto mais famoso por ser responsável pelo barato da maconha, mas também com potencial terapêutico — e não só nesse campo.
O uso na esclerose múltipla é paradigmático porque, a exemplo de outras situações, a cannabis não trata a doença em si, mas suas manifestações que emperram a qualidade de vida. “O que acontece é o controle de um dos sintomas que talvez seja o mais incapacitante da doença”, diz a farmacologista Alline Cristina de Campos, professora da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, principal polo mundial de estudos canábicos.
Em 2017, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e a farmacêutica Prati-Donaduzzi investiram mais de 30 milhões de reais na instituição para criar o Centro de Pesquisa em Canabinoides, o nome técnico das moléculas presentes na planta.
Dessa parceria, também nasceu o primeiro e único produto 100% brasileiro à base de cannabis, o Canabidiol, da Prati-Donaduzzi.
Na raiz da dor
Outra aplicação promissora da cannabis tem a ver com suas propriedades analgésicas. “Enquanto o THC é mais indicado para dores crônicas e agudas de caráter neuropático [devido a problemas no sistema nervoso], o CBD atua nas dores de origem inflamatória, com destaque para as queixas nas articulações, como as artrites”, diferencia Orlandi Mattos.
Não se trata de uma cura, mas de alívio. Em revisões sistemáticas, os efeitos imediatos parecem mais significativos do que os de longo prazo — o que parece ser uma constante, aliás, em tratamentos para dor crônica. Ainda falta entender as melhores vias de administração, formulação e doses, algo que ocorre em diversas aplicações dos canabinoides, feitas na base da tentativa e erro.
Até por isso, hoje essa estratégia é cogitada quando outras terapias falham. “Temos estudos avançados sendo conduzidos no momento e outros, não tão robustos, já disponíveis, além de uma boa experiência na prática clínica”, esclarece a anestesiologista Mariana Camargo Palladini, da Sociedade Brasileira para Estudo da Dor (Sbed).
“O problema é que hoje o paciente já chega ao consultório querendo CBD, mas não é todo mundo que se beneficia do produto. A resposta a ele é muito individual”, pondera a médica.
No universo da dor, a cannabis também tem sido testada e até prescrita contra a fibromialgia, uma condição ainda não bem compreendida pela medicina que aumenta a sensibilidade do indivíduo e provoca incômodos intensos pelo corpo.
Só que os estudos nessa linha ainda são bem incipientes. O que parece mais certo é uma melhora no sono e na qualidade de vida dos portadores dessa e de outras condições que provocam dor crônica.
Mais qualidade de vida é outro relato constante, a ser validado por pesquisas controladas, no uso em quadros severos de autismo. “Estamos colhendo dados de um grupo de famílias e os pais descrevem melhora nos sintomas. Além disso, já registramos indícios menos subjetivos, como a diminuição da necessidade de usar medicamentos mais fortes, como antipsicóticos, nesses pacientes”, relata o biólogo Renato Malcher Lopes, da Universidade de Brasília (UnB), que há mais de 20 anos destrincha a ação fisiológica dos canabinoides.
Já na redução de náuseas e enjoos relacionados às sessões de quimioterapia contra o câncer, as evidências são consideradas robustas o suficiente para apoiar a prescrição. E o THC também parece ter efeito nas dores associadas à doença. “Porém, como faltam estudos comparando a molécula com outras drogas, então não usamos como primeira linha de tratamento, somente quando outras alternativas já falharam”, comenta o oncologista Igor Morbeck, da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (Sboc).
Falando em câncer, dada a ação sistêmica da cannabis (inclusive na imunidade), ela também protagoniza experimentos que avaliam uma possível propriedade antitumoral. Na mesma linha, estudos iniciais testam seu potencial para enfrentar condições tão diversas como endometriose e glaucoma. Mas a lógica atual não é erradicar o problema em si… “A ideia não é tratar a doença, mas seus sintomas. É como estar com Covid e tomar um remédio para febre”, compara Queiroz.
Conexões cerebrais
A planta que já foi criminalizada e ligada a “viciados” pode, quem diria, virar um coadjuvante no tratamento de doenças psiquiátricas e neurológicas.
Já existem pesquisas em curso para entender seu potencial contra Parkinson, Alzheimer, esclerose lateral amiotrófica (ELA)… “É uma área promissora, mas alguns estudos mostram sucesso e outros nem tanto. Então ainda não está claro o papel dos canabinoides nesses cenários”, diz o neurocientista Renato Filev, coordenador científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas.
O mesmo se aplica a transtornos psiquiátricos como ansiedade e depressão. Estudos clínicos da USP de Ribeirão Preto apontam benefícios ansiolíticos do CBD em algumas circunstâncias.
Em um deles, pessoas com ansiedade social que tomaram uma única dose do composto isolado ficaram mais confortáveis para falar em público. Em outro, com 24 portadores de Parkinson, metade tomando placebo, metade CBD, a molécula se mostrou eficaz em diminuir a ansiedade e os tremores no mesmo contexto.
Mais recentemente, o mesmo grupo da USP, coordenado pelo psiquiatra José Alexandre de Souza Crippa, testou o efeito calmante em 120 profissionais de saúde da linha de frente do combate à Covid-19, um grupo que foi colocado sob tensão intensa nos últimos anos.
Os voluntários que ingeriram a substância apresentaram menos queixas relacionadas a burnout e esgotamento emocional. Os achados foram publicados no renomado periódico JAMA Psychiatry, e, apesar de animarem, precisam ser confirmados por trabalhos comparando o fármaco a um “remédio” de mentirinha.
Isso porque, nessas circunstâncias, o efeito placebo, aquele desencadeado pela própria vontade de melhorar do indivíduo, é muito poderoso. “Em especial no início da intervenção, é difícil diferenciar o que é placebo e o que é ação bioquímica do medicamento. Sabemos que a esperança da pessoa e o ambiente acolhedor podem estimular uma resposta positiva. Isso é interessante, mas não sabemos se é sustentado em longo prazo”, explica Alline. “Não estamos dizendo que não funciona, mas que devemos estudar mais para garantir”, completa a farmacêutica.
+ Leia também: Vem aí a Cannabis medicinal
Mesmo diante de algumas incertezas, já tem médico sugerindo o uso de CBD para depressão e transtornos de ansiedade resistentes ao tratamento convencional. “O profissional tem autonomia para isso, mas particularmente não sou um entusiasta. Não vemos na prática um benefício significativo e também não há evidências científicas sólidas. Pode ser que no futuro se descubra um potencial antidepressivo, mas ainda não estamos lá”, pondera o psiquiatra Luís Fernando Tófoli, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) não recomenda o uso da cannabis para transtornos mentais. Aliás, no caso de depressão, burnout e ansiedade, questões tão inerentes aos nossos tempos, provavelmente a solução definitiva não virá de um medicamento sozinho. “Se pensar assim, a pessoa pode minimizar o efeito de intervenções que têm mais evidências que a própria cannabis, caso da psicoterapia e da atividade física”, diz Tófoli.
O sistema endocanabinoide
Autismo, epilepsia, esclerose múltipla, dores e inflamações… Como uma única planta pode ter tantas aplicações diferentes? A resposta está no sistema endocanabinoide. Descoberto nos anos 1980, ele é tido por alguns como um maestro do sistema nervoso central.
Trata-se de uma rede de moléculas parecidas com os canabinoides — pois é, devemos à maconha seu batismo —, mas produzidas pelo próprio corpo, que interagem com receptores presentes em diversos órgãos.
São dois tipos de receptores, o CB1, presente principalmente no cérebro, e o CB2, distribuído pelo organismo e menos estudado. “Por isso nossas células têm fechaduras nas quais os componentes da planta se ligam como chaves”, ilustra Malcher Lopes.
Naturalmente, o sistema endocanabinoide é acionado quando a comunicação do sistema nervoso está superativada. Explicamos por partes. Neurônios funcionam trocando informações e sinais elétricos, num processo mediado por substâncias químicas — essa conversa se chama sinapse. É uma via única: um neurônio pré-sináptico ativa um comando para o neurônio pós-sináptico. “Os endocanabinoides são liberados nessa segunda etapa, como um feedback para a célula pré-sináptica”, explica o neurocientista da UnB.
Dramatizando a situação, é como se esse segundo neurônio dissesse ao outro “Já estou ativado o suficiente”, usando os endocanabinoides como meio de comunicação retroativo.
Em diversas doenças neurológicas, um dos problemas parece ser justamente um descontrole nessa comunicação celular. É o caso da epilepsia, mas não só. “No autismo, há um alto grau de funcionamento dos circuitos neuronais, como se toda a informação na cabeça do portador circulasse em um volume muito alto, com o botão de regulagem quebrado”, compara Malcher Lopes.
“Mesmo a ansiedade pode ser desencadeada por um excesso de ativação no sistema cerebral que detecta perigos”, continua. Para responder ao estresse, qualquer que seja, o corpo sai de seu estado normal, e os endocanabinoides entram em ação para retomar o equilíbrio. A ingestão dos canabinoides da planta poderia, então, contribuir para o trabalho dos nossos endocanabinoides — até porque, em algumas situações, seus níveis podem estar reduzidos.
Essas moléculas estão ligadas ainda a um efeito “recompensa”. “Os endocanabinoides também são liberados mediante atitudes positivas para o corpo, o que parece ser uma maneira de consolidar comportamentos saudáveis do ponto de vista social, como encontrar amigos e fazer exercícios”, nota o pesquisador.
Trocando em miúdos, é como se esse sistema fosse um detector de que algo vai bem ou mal, sempre em busca de manter a homeostase, o equilíbrio do organismo.
Essa seria uma possível explicação para os benefícios da cannabis sob investigação — e não só no cérebro. “Os endocanabinoides parecem ter papel funcional em diversos tecidos e sistemas: cardiovascular, hepático, adiposo, reprodutor, osteomuscular… Alguns autores dizem que a presença deles em tantos lugares indica que o uso de fitocanabinoides seria capaz de reduzir sintomas de muitas patologias”, conta Filev.
Para deixar o papo um pouco mais cabeçudo, cabe pontuar que essa regência bioquímica engloba uma porção de mecanismos. O THC tem mais afinidade com os receptores CB1, enquanto o CBD atua neles de forma mais indireta, estimulando a produção dos endocanabinoides, e de um em especial, a anandamida.
Seu nome vem da palavra em sânscrito para “felicidade” ou “prazer extremo”, e a molécula está envolvida na memória, no sono, no apetite e no humor. Ou seja, é uma ação complexa, nada simples quanto bloquear ou ligar um receptor isolado numa área do corpo.
“Nos nossos estudos pré-clínicos, tentamos atuar somente nesses receptores e o efeito contra a ansiedade se manteve. Depois, descobrimos que a ação era indireta, mediada pelos neurônios que produzem serotonina”, revela Alline. Serotonina é justamente o “neurotransmissor do bem-estar”.
+ Assine VEJA SAÚDE a partir de R$9,90
A teoria da homeostase ainda passa pelo crivo da ciência. “Faz sentido, mas é uma narrativa sendo construída em cima de um campo que ainda pouco conhecemos, que é o sistema nervoso como um todo”, analisa Queiroz.
É por isso que se pede cautela no ânimo e na prescrição em condições ainda pouco estudadas. Mas, é claro, tudo depende de uma conta de risco e benefício. Até porque há muita gente com pressa em busca de tratamentos mais satisfatórios que os atuais. “Medicações de uso contínuo apresentam efeitos colaterais importantes e alguns pacientes não respondem a elas. Os canabinoides apresentam, além da potencial alta eficácia, uma segurança superior à grande maioria das drogas nas farmácias”, afirma Orlandi Mattos.
“Temos dois mundos, o do mecanismo e o da prática clínica. Você pode não entender direito como um medicamento funciona, mas, se um de seus filhos tem uma epilepsia grave que não responde aos remédios, você não vai ficar esperando a comprovação do mecanismo para usar uma planta que é segura e melhora sua qualidade de vida”, expõe Queiroz. “Enquanto isso, vamos estudando. Uma coisa não invalida a outra”, complementa o neurocientista.
Estudar os canabinoides é um baita desafio, que suscita debates acalorados sobre o próprio método científico e seus aspectos sociológicos.
Para testar um medicamento, o ideal é submetê-lo a grandes ensaios clínicos randomizados que comparam o princípio ativo com o placebo, o remédio de mentirinha, sem que ninguém saiba quem está tomando o quê. Só que, no caso da protagonista da matéria, as possibilidades são infinitas: dá para testar canabinoides isolados ou o extrato da planta, cuja composição varia, dada a diversidade de espécies e as influências de clima e solo.
Pode ter mais THC, mais CBD, fora todas as outras dezenas de moléculas que compõem a planta, com destaque para outros canabinoides, polifenóis e os terpenos, responsáveis pelo aroma característico. A maioria desses coadjuvantes está presente em baixíssima concentração — e estudos preliminares indicam que essa complexa combinação turbinaria o efeito terapêutico da droga.
Ainda tem todas as questões inerentes a qualquer medicamento, como a farmacodinâmica (a interação com o organismo) e a biodisponibilidade, que é quanto do princípio ativo chega ao alvo. “A maioria do CBD é absorvida no intestino, só 6% vão para a corrente sanguínea e, por fim, chegam ao cérebro”, diz Alline.
“O paradigma do estudo duplo-cego randomizado [o ideal na avaliação de remédios] é muito adequado para substâncias isoladas, mas, quando trabalhamos com fitoterápicos, como a cannabis, fica difícil relacionar o benefício a moléculas específicas. Ainda mais porque, nesse caso, ela age em vários sistemas do organismo, o que faz com que a dose adequada varie muito de acordo com cada paciente”, reflete Orlandi Mattos.
Como o sistema endocanabinoide de cada um funciona de um jeito, algumas pessoas se dão bem com doses mais baixas, enquanto outras precisam de quantidades maiores.
Eis outro problema para os pesquisadores, já que os estudos controlados buscam justamente padronizar a dose de um medicamento e garantir que ele tenha sempre a mesma composição, algo duro de garantir com uma planta.
+ Leia também: Anvisa lança cartilha de fitoterápicos
“O sucesso do tratamento depende da constância do produto, da padronização da matéria-prima vegetal utilizada em sua fabricação, da presença dos principais compostos de interesse, dentre eles os canabinoides, nas concentrações corretas, e da ausência de contaminantes, tais como metais pesados, resíduos de agrotóxicos e micro-organismos, além de dados que sustentem sua segurança”, esclarece João Paulo Silvério Perfeito, gerente de Medicamentos Específicos, Notificados, Fitoterápicos, Dinamizados e Gases Medicinais da Anvisa.
“Quando você isola a substância, garante sempre o mesmo teor do ativo, enquanto o extrato é como o vinho, depende da safra da uva e de fatores ambientais. Para uma intervenção médica, é fundamental saber quanto de princípio ativo está sendo administrado”, afirma Giovani Saggioro, vice-presidente da divisão de Saúde, Nutrição e Cuidado da DSM na América Latina, gigante do setor de suplementos que em 2021 entrou no negócio da cannabis.
Isso leva a um dilema: estudar a planta como um fitoterápico, com seu extrato o mais “natural” possível, ou isolar seus compostos para criar medicamentos baseados nesses princípios ativos?
A resposta parece ser fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Criar um remédio para uma condição grave é diferente de pensar no extrato de cannabis como um complemento a um tratamento contra a dor, para citar um exemplo.
Certo é que a ciência precisa olhar com atenção para essa demanda já verbalizada pela sociedade e se ajustar em tempo real a ela. “Nós, médicos, estamos acostumados a produzir o conhecimento de dentro pra fora, e com a cannabis aconteceu o contrário: veio de fora para dentro do laboratório. Até por isso há tanta discussão”, comenta o neurologista Flávio Rezende, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretor de Pesquisa e Desenvolvimento da Health Meds, indústria brasileira de produtos derivados da cannabis.
BUSCA DE MEDICAMENTOS
Consulte remédios com os melhores preços
Tem outra questão. “Os ensaios clínicos randomizados costumam ser patrocinados por farmacêuticas, que tinham pouco interesse em algo não patenteável como a cannabis. Isso implica falta de interesse em financiar pesquisas”, aponta Filev.
A coisa está mudando agora. Apesar do moralismo e do preconceito que ainda rondam a planta, o interesse popular crescente atrai empresas grandes e pequenas a entrar nesse terreno. Como a Health Meds, que agora vai estudar os efeitos de um composto misto de CBD e baixas doses de THC para enxaqueca, em parceria com o Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
Enquanto as metodologias e seus frutos avançam, os especialistas pedem para olhar com ressalvas tudo que vem de causos pessoais ou estudos observacionais pouco controlados.
“Relatos de caso e experiências individuais não são provas científicas, como ficou bem claro na pandemia com a cloroquina”, alerta o pediatra João Paulo Lotufo, da Universidade de São Paulo (USP). E estudos pré-clínicos, em células isoladas ou animais, dão pistas, mas não servem para amparar a prescrição, sobretudo como primeira linha de tratamento.
O fato é que se vive um boom da cannabis. Apesar dos dados tímidos em algumas searas médicas, já tem congresso, pós-graduação e até dossiê sobre o tema surgindo para tentar guiar os profissionais brasileiros.
Em agosto, foi lançado o Tratado de Cannabis Medicinal: Fundamentos para a Prática Clínica (Farol 3 Editores), primeira grande obra técnica em português, escrita pela psiquiatra Ana Gabriela Hounie, representante do Brasil no Conselho Consultivo da Associação Pan-Americana de Medicina de Canabinoide.
Como pano de fundo, um dos pontos que animam os médicos a prescrever a cannabis como alternativa para quem já esgotou opções terapêuticas é sua segurança.
No caso do CBD, que vem sendo usado há anos mundo afora, não há grandes contraindicações, exceto um potencial risco ao fígado (comum a diversos fármacos), efeitos colaterais como sonolência, perda de apetite e diarreia, além de interações medicamentosas, aumentando ou diminuindo a disponibilidade de remédios já sendo tomados.
O THC exige um pouco mais de cuidado, pois há risco de dependência e o uso por longos períodos já foi associado ao desenvolvimento de quadros de esquizofrenia em indivíduos suscetíveis. Também desperta reações como euforia, alterações de apetite e consciência, aumento da frequência cardiovascular… E não se recomenda a utilização por jovens, devido ao risco de interferências no desenvolvimento cognitivo na infância e na adolescência.
Compostos isolados, concentrações novas e outros avanços por vir, como moléculas sintéticas que imitam a ação dos canabinoides, exigem tanto ou mais rigor científico. No passado, um medicamento que atuava no receptor CB1 para controlar o apetite e o peso, o rimonabanto (não se trata de um fitocanabinoide!), foi retirado do mercado por poder levar a depressão e ideação suicida.
Mercado e acesso
Hoje, há 20 produtos à base de cannabis já autorizados pela Anvisa para comercialização no Brasil, além da possibilidade de importar diretamente tantas outras formulações, com prescrição médica.
Essa ainda é a via mais escolhida, pois nas farmácias o preço é mais alto e o produto não é facilmente encontrado. O que é, aliás, um entrave, já que o farmacêutico, profissional que deve orientar a população sobre o uso apropriado, não entra em cena.
Empresas novas fazem o meio de campo entre médico, remédio e paciente. É o caso da Cannect, startup criada em 2021 que oferece uma plataforma virtual para conectar essas três pontas. “Temos mais de 600 produtos e uma ferramenta que ajuda o profissional a escolher o melhor para cada situação, além de atuarmos com a importação”, resume Allan Paiotti, CEO da healthtech, que atendeu nos últimos seis meses 3 mil pessoas.
O florescimento do mercado é notável. E, enquanto uns se animam demais, outros têm postura mais conservadora, como o Conselho Federal de Medicina (CFM), que aceita apenas o uso compassivo nas epilepsias pediátricas, e só recentemente abriu consulta pública para rever seu posicionamento.
Enquanto isso, a indústria farmacêutica tenta conquistar um novo nicho. “As inovações vão na linha de diminuir o frasco, aumentar a concentração e melhorar a qualidade dos produtos”, diz Matheus Patelli, diretor da HempMeds Brasil, uma das pioneiras no setor.
Só que tanta efervescência tem seu efeito colateral negativo, a banalização e a prescrição como solução miraculosa. Nos Estados Unidos e em outros países, o canabidiol é comercializado como suplemento alimentar, com pouca regulação, até em forma de balinha de goma, facilitando a automedicação, que, mesmo que não seja perigosa, pode levar alguém a gastar dinheiro à toa em vez de procurar assistência adequada para seu problema de saúde.
+ Leia também: Tratamentos alternativos: fique atento aos riscos
Enquanto isso, os pesquisadores de lá ainda esbarram nos estigmas e em dificuldades burocráticas. O lobby vem aí, e vem forte: empresas gigantes, incluindo fabricantes de bebidas açucaradas, já estão investindo em produtos enriquecidos com CBD que seriam mais “saudáveis”. Já assistimos a esse filme antes, não?
Com o aumento da concorrência, o custo médio do tratamento tem caído, mas ainda é proibitivo para boa parte dos brasileiros. Como contraponto, as associações de cultivo oferecem, por meio de autorizações da Justiça, o extrato a preços mais baixos — hoje são 50 entidades no país.
Um dos desafios aqui é garantir a qualidade dos produtos oferecidos. Nesse sentido, a Abrace Esperança, uma das principais vozes da área, com 35 mil beneficiários, criou um sistema de controle próprio e se ajusta para fabricar o primeiro óleo certificado pela Anvisa.
“Todos os lotes são testados para garantir o teor dos canabinoides e a ausência de contaminantes”, aponta Cassiano Gomes, fundador da Abrace.
Para ele, contudo, a legislação para as associações poderia ser mais branda, como a das farmácias vivas do Sistema Único de Saúde (SUS), que permite no mesmo local o plantio, a extração e a dispensação de produtos vindos de plantas medicinais. Seja como for, a discussão precisa avançar, romper estigmas e se ancorar em ciência.
Só assim evitaremos que as promessas e o esforço de inúmeros pesquisadores e instituições sérias virem fumaça.
THC, mocinho ou bandido?
É essa substância que dá o efeito psicoativo da planta e, portanto, está associada a riscos pelo uso recreativo abusivo. Não à toa, acabou sendo menos estudada que o outro principal componente, o canadibidiol.
A tendência, contudo, é que isso mude com o tempo, porque, enquanto a ação do CBD é mais indireta, o THC atua diretamente nos receptores canabinoides do organismo.
Não é preciso atingir o estado “chapado” para obter benefícios, mas mesmo ele poderia ser menos demonizado. “A atividade psicoativa pode promover bem-estar e melhorar o desejo e o apetite. Ela deveria ser vista não como vilã, mas como uma qualidade a ser explorada”, diz o pesquisador Paulo Orlandi Mattos, da Unifesp.
Conheça a cannabis, uma das plantas mais consumidas no mundo
Formas de administração
Veja como ela é empregada de maneira terapêutica:
Solução oral: Com uma base de óleo, pode conter canabidiol, baixíssimas doses de THC e outros princípios.
Extrato artesanal: Parecido com a solução oral, mas extraído direto da planta. É o mais barato.
Cápsulas: Estão disponíveis, mas o aproveitamento no organismo é considerado mais baixo.
Cremes e loções: Um estudo recente mostrou que a qualidade da categoria deixa a desejar.
Vaporização: Aquecer a erva in natura parece um dos melhores jeitos de obter o efeito analgésico.
Tudo junto é melhor?
Ao conversar com um entusiasta da cannabis, você provavelmente vai ouvir falar do efeito entourage, ou comitiva. É uma suposta sinergia que acontece entre os canabinoides e demais compostos da planta, que permitiria o uso de doses menores e potencializaria os efeitos pretendidos.
Há até pouco tempo, ele era apenas uma hipótese, mas pouco a pouco surgem pistas mais concretas de sua existência. Um artigo publicado no periódico Scientific Reports avaliou o fenômeno em roedores e concluiu que, quando o canabidiol é administrado com o extrato da planta, sua concentração no sangue fica até 14 vezes maior do que quando usado isoladamente.
A confirmar se o mesmo se repete em humanos.
A situação regulatória
Em 2019, a Anvisa criou uma norma especial para aprovar o comércio de produtos derivados de cannabis sem indicação terapêutica específica, para indivíduos cujas opções convencionais já se esgotaram.
É uma norma de transição, que garante algum controle na qualidade e na distribuição, mas não exige estudos completos de segurança e eficácia. A próxima evolução legal deve envolver a liberação do cultivo controlado no país, defendido por muitos especialistas, tanto pelo potencial econômico quanto pelo farmacológico.
O Projeto de Lei 399/2015, que trata dessa questão, está parado na Câmara dos Deputados há anos.
O uso recreativo
Ele é amplamente difundido no Brasil e no mundo, mas não dá para fumar um baseado esperando obter benefícios terapêuticos. Primeiro porque não se sabe o nível de canabinoides presentes nas plantas vendidas ilegalmente.
Segundo porque fumar, seja tabaco, seja maconha, faz mal à saúde, como comprovam diversos estudos. Entretanto, falar de ampliação do uso medicinal sem discutir a legalização mais ampla da erva é ignorar todo um contexto social de violência justificada pela “guerra às drogas”, que tem custos à saúde pública, estigmatiza a planta, inclusive na ciência, e segue marginalizando populações, em especial as pessoas negras e pobres.
Fontes complementares: Rafael Pessoa, cirurgião geral e diretor médico da Cannect e Renato Anghinah, neurologista e diretor da HempMeds Brasil