“Mas você leu a bula da vacina?” E você, leu a de um remédio comum?
A campanha de desinformação contra os imunizantes é uma oportunidade para conhecermos esse documento importante e pouco usado
É batata: basta postarmos um conteúdo sobre as vacinas contra a Covid-19 nas redes sociais de VEJA SAÚDE para aparecer uma chuva de comentários enfurecidos. Um dos argumentos mais recorrentes: “vocês já leram a bula da vacina da Pfizer, por acaso?”
A resposta é “sim, nós lemos” – e de outros medicamentos e vacinas também. E trazemos notícias: a bula de remédios rotineiros (como um simples analgésico) pode soar tão preocupante quanto a dos novos imunizantes. Não pelo teor do documento em si, mas porque entendemos muito pouco sobre ele.
Não deveria ser assim. “A bula é um documento vivo, atualizado constantemente, que fornece informações claras e acessíveis sobre como usar aquele produto e o que fazer em caso de uso equivocado. É um direito do cidadão saber o que está tomando”, aponta o farmacêutico Gustavo Mendes, gerente de medicamentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Ali, está listado tudo o que se sabe sobre os princípios ativos, desde os estudos pré-aprovação às análises de vida real. Por isso, a lista de eventos adversos costuma ser longa, e até incluir coisas que dificilmente vemos na prática.
Na bula do paracetamol, um dos analgésicos e antitérmicos mais usados do mundo, há reações como broncoespasmo e distúrbios sanguíneos, como anemia e queda de plaquetas. E o que isso quer dizer, então? Que não devemos mais usar nenhum remédio e voltar a viver como nos tempos medievais?
A resposta é um sonoro “não”. O que a bula demonstra é uma cautela da Anvisa e de outras agências reguladoras em promover o uso mais seguro de medicamentos possível. Ora, qualquer fármaco tem seus riscos, mesmo que pequenos, e eles devem ser conhecidos tanto pelo paciente quanto pelo profissional de saúde.
“Temos uma frase famosa no nosso meio que é: a diferença entre o remédio e o veneno é a dose. Qualquer substância que você ingere pode oferecer algum risco, porque as reações bioquímicas do organismo são muito complexas. Quando aprovamos um medicamento, nos certificamos de que o benefício é superior ao risco”, completa Mendes.
“Entre as atribuições da Anvisa está a de promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e consumo de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária. Assim, produtos autorizados para uso pela população foram considerados seguros pela Anvisa“, informa o Centro Brasileiro de Informação sobre Medicamentos do Conselho Federal de Farmácia (Cebrim/CFF).
Como é elaborada uma bula
Desde 2009, a estrutura básica das bulas é pré-determinada pela Anvisa. Elas estão divididas em seções, que informam os ingredientes da fórmula, indicações, contraindicações, reações adversas, riscos de interações medicamentosas, dose segura, o que fazer em caso de superdosagem, entre outros pontos.
Os fabricantes enviam os dados de segurança e eficácia demonstrados nos estudos, mas tudo é auditado pela agência. “Além disso, a bula é atualizada constantemente, por meio da farmacovigilância, um serviço de avaliação permanente, que continua depois da aprovação”, esclarece a farmacêutica Verônica Rennó, professora da Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo/SP.
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Isso porque algumas reações são extremamente raras, e só aparecem depois que muita gente tomou a substância em questão. No caso da vacina Comirnaty, que é um produto recém-lançado, a Pfizer tem a obrigação de enviar à Anvisa relatórios mensais de eventos adversos.
Se algo novo surgir, o evento é analisado em detalhes e, caso a relação seja plausível, incluído na bula. Isso acontece mesmo que o fato ainda esteja provavelmente (e não comprovadamente) relacionado ao medicamento – de novo, questão de precaução.
E se, em algum momento, o risco parecer maior que o benefício, o registro do produto é suspenso de imediato.
A cautela é tamanha que podem entrar inclusive efeitos que não foram detectados naquele medicamento em específico, mas em outros parecidos. “Se as moléculas forem semelhantes, é possível fazer essa extrapolação, mas isso também é esclarecido no texto”, diz Mendes.
“Não existem estudos sobre fertilidade e genotoxicidade”
Entre os alvos da desinformação, estão alguns pontos específicos da vacina Comirnaty, da Pfizer, presentes na versão da bula para profissionais de saúde.
Sim, existem dois modelos: um para pacientes, em linguagem mais acessível e com orientações sobre uso, e outro para médicos, enfermeiros e demais técnicos, com detalhes sobre mecanismos de ação e estudos conduzidos pré-aprovação.
Destacamos aqui dois trechos:
“Não se sabe se Comirnaty® tem impacto na fertilidade. Os estudos com animais não indicam efeitos prejudiciais, diretos ou indiretos, no que diz respeito à fertilidade feminina ou toxicidade reprodutiva” e “Não foram realizados estudos de genotoxicidade nem de carcinogenicidade”.
As informações sobre fertilidade, genotoxicidade (capacidade de interferir nos genes) e carcinogenicidade (potencial cancerígeno) são obtidas de estudos em animais, em células isoladas, e confirmadas depois, ao observar o efeito em humanos. “Não é ético fazer um estudo induzido sobre o assunto [pelo risco que seria oferecido conscientemente aos voluntários]”, aponta Mendes.
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Mas qualquer remédio ou vacina só é aprovado pela agência quando há um grau satisfatório de certeza sobre esses pontos, baseado nas evidências já disponíveis sobre o assunto. “Não significa que o produto é experimental ou que ainda há dúvidas sobre sua segurança”, pontua o gerente da Anvisa.
E, como sabemos, não existe base biológica para que um imunizante à base de RNA mensageiro interfira no DNA — um passa bem longe do outro nas células.
A própria ivermectina, vermífugo antigo, usado de forma abusiva como “tratamento precoce” da Covid-19 no país, também tem trechos semelhantes em sua bula para profissionais: “Não foram realizados estudos em longo prazo com animais para avaliar o potencial carcinogênico da ivermectina”.
Por que há tantas reações adversas na bula?
“Cada organismo responde de maneira diferente a qualquer substância ingerida, mesmo uma comida. Se existem centenas de milhões de pessoas tomando um medicamento, teremos reações das mais diversas, e isso é conhecido há muito tempo”, pontua Rennó.
Uma em um milhão de pessoas pode ter, para citar um exemplo, uma reação alérgica intensa desconhecida a um ingrediente da fórmula. “Até uma dipirona, que parece inofensiva, tem potencial para matar nesse cenário”, explica a enfermeira Mayra Moura, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
A bula lista o que já foi apresentado por pacientes no mundo todo e que pode estar associado àquele produto. “Para fazer a investigação de causalidade, olhamos minuciosamente qual é o histórico do paciente, se já existia uma predisposição a ter algo do tipo, e, depois, avaliamos a frequência de casos entre outras pessoas que fizeram uso do composto”, comenta Mendes.
Os efeitos colaterais estão listados de acordo com sua prevalência, de comuns (ocorrem entre 1 e 10% dos pacientes) a raros (entre 0,01% e 0,1% de prevalência).
“Mas então por que a Pfizer não se responsabiliza por reações adversas?”
Essa é outra desinformação recorrente. No contrato firmado com o Ministério da Saúde para a compra da vacina, existe uma cláusula de isenção de responsabilidade por parte da Pfizer. Traduzindo: uma garantia de que a empresa não será processada por eventos adversos graves.
Trata-se de uma medida já esperada e tomada por outros fabricantes, inclusive a Fiocruz, nos contratos mundo afora. Em uma situação de pandemia, com imunizantes novos sendo aplicados em milhões de pessoas, trata-se de uma proteção judicial compreensível.
É que qualquer coisa que acontece depois da vacina é considerada um evento adverso – como bater um carro, ou cometer suicídio. Já a reação adversa é aquilo que possivelmente está relacionado ao imunizante. Até provar que pato não é ganso…
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“O fabricante não pode ser responsabilizado por tudo que acontece depois que uma pessoa tomou a vacina, porque a grande maioria das coisas nada tem a ver com ela”, explica Moura. Por exemplo: se alguém tiver um derrame, pode tentar culpar a dose, mesmo que isso tenha acontecido por outros motivos, como uma hipertensão.
Mas isso não quer dizer que a fabricante não é responsável por problemas desencadeados por seus produtos. E, em teoria, o próprio Ministério da Saúde se torna responsável ao adquirir e distribuir um produto gratuitamente à população.
“Isso é uma questão contratual do Ministério que não afeta a Anvisa. Para nós, é obrigação da Pfizer e das outras empresas realizar ações de farmacovigilância e, assim que percebermos algo problemático, o produto é retirado do mercado, como já foi feito outras vezes”, comenta Mendes.
O CFF explica ainda que o assunto já foi discutido pela Justiça, que concluiu que os remédios e vacinas são produtos “de periculosidade inerente, em que os riscos são normais à sua natureza e previsíveis. Todavia, caso o medicamento não conste expressamente suas contraindicações na bula, admite-se a responsabilização do fabricante por danos materiais ou morais”.
Em caso de dúvidas
O que essa situação toda nos mostra é: precisamos entender melhor o que colocamos no corpo. Inclusive para fugir das mentiras espalhadas sobre determinado produto, afinal, são elas que de fato podem colocar em risco nossa saúde. “Para atingir o sonhado uso racional de medicamentos, a população precisa estar bem informada”, ressalta Rennó.
Existem serviços dirigidos por farmacêuticos para orientar sobre a bula, as reações adversas e o uso correto de qualquer remédio. “É um profissional muito acessível e preparado para sanar dúvidas. Pode ser encontrado nas farmácias, unidades de saúde e à distância, por meio de serviços como os Centro de Informações sobre Medicamentos (CIM)”, conta a professora.