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Cientistas Explicam

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Erguendo a bandeira da divulgação científica, um seleto grupo de pesquisadores se une para esclarecer, debater (e se divertir com) os temas mais complexos e polêmicos da biologia e da medicina

A semente da discórdia: existe mesmo alimento natural?

Nossa colunista desmistifica as técnicas de melhoramento genético empregadas para alimentar boa parte do planeta

Por Dra. Natalia Pasternak Taschner*
Atualizado em 18 fev 2018, 16h21 - Publicado em 18 fev 2018, 16h21
o que significa transgênico
Alimento natural, hoje?! Difícil de encontrar... (Ilustração: Jonatan Sarmento/SAÚDE é Vital)
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Um dia fomos todos caçadores-coletores nômades. Nessa época, há mais de 10 mil anos, vivíamos literalmente do que a terra dava. Tudo o que consumíamos na nossa alimentação era, de fato, natural.

Não se sabe exatamente como e quando, mas o fato é que o ser humano começou a domesticar plantas e animais. Dessa longa história chegamos aos dias de hoje: quase nada do que consumimos atualmente pode ser considerado realmente selvagem. Sim, nenhuma das principais culturas agrícolas (arroz, milho, trigo, soja, algodão…) cresce livremente na natureza nem é capaz de sobreviver em grande escala sem a interferência humana.

É estranho falar em plantas domesticadas, mas, para entender o conceito, pense nas raças domesticadas de cães. Temos um grande número de raças caninas criadas e moldadas pelo homem. Elas só existem devido à ação humana. O mesmo processo ocorreu com as plantas, e também com outros animais de criação.

Desde o início da agricultura, as plantas vêm sendo selecionadas artificialmente pelo homem, de acordo com as suas características desejáveis. Essa seleção provavelmente originou-se de modo inconsciente e espontâneo. O trigo e a cevada selvagens, por exemplo, apresentam sementes na ponta do caule, que se estilhaçam naturalmente e, ao cair no solo, passam a germinar. É assim que a planta se reproduz. Uma mutação genética que impeça a quebra do caule não se mostra interessante na natureza, pois impede que as sementes caiam e deem origem a novas plantas. No entanto, essa mesma mutação é muito interessante para o agricultor, que poderá colher as sementes mais facilmente no caule e escolher, ele mesmo, onde irá plantar o cereal. É assim que ele controla o cultivo e a produção.

Esse processo foi implementado pelos nossos antepassados há milhares de anos, sem grandes preocupações com um “melhoramento genético”, mas simplesmente porque facilitava a plantação e a colheita.

Desde então, com o acúmulo de conhecimentos e observações, os agricultores passaram a selecionar as plantas maiores, mais suculentas, de melhor sabor, aptas a sobreviver a doenças e pragas… e começaram a plantar suas sementes. As plantas, digamos, inferiores eram descartadas. Eis a chamada seleção artificial!

Com o desenvolvimento da agricultura, tais processos se tornaram cada vez mais sofisticados, incluindo não somente a seleção de características desejadas e a preservação das sementes, mas também técnicas como obtenção de híbridos, propagação por mudas e estacas e métodos com nomes meio complicadinhos, como indução de mutagênese e diploidia — mais sobre eles logo, logo —, além, é claro, da produção de organismos geneticamente modificados (OGMs), mais popularmente conhecidos por aí como transgênicos.

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Entre o natural e o artificial

Um dos fenômenos que acompanhou a mecanização e a industrialização da agricultura foi o êxodo rural, quando um grande volume de gente saiu do campo e foi viver em cidades. Como era esperado, essa mudança demográfica teve uma repercussão: longe da zona rural e do processo produtivo, a maioria das pessoas simplesmente desconhece as diversas técnicas de melhoramento usadas há anos, inclusive na agricultura orgânica. Criou-se, com isso, o mito de que tudo o que a terra dá é 100% natural.

Da mesma maneira, boa parte da sociedade não está habituada a perceber como os organismos geneticamente modificados estão presentes em nossas vidas há décadas — e não somente por meio de plantas transgênicas.

Bactérias geneticamente modificadas produzem a insulina humana desde 1976. Sorte dos diabéticos, que antes disso dependiam do hormônio extraído do pâncreas de porcos ou vacas, uma molécula que não é exatamente igual à humana e que podia gerar intolerância e reações alérgicas com o passar dos anos.

A fabricação de queijo também se vale dos OGMs. Na produção do alimento, a caseína presente no soro do leite precisa ser “coalhada”. Para isso se utiliza a renina, enzima que, até 1990, era colhida do estômago de bezerros ou filhotes de ovelha e cabra. Hoje, ainda bem, essa enzima vem de bactérias geneticamente modificadas — elas portam um gene clonado para sintetizar a tal da enzima. Esse processo reduziu dez vezes o custo da obtenção dessa matéria-prima e tornou desnecessário o abate de filhotes.

Hormônio do crescimento, usado no tratamento de algumas disfunções, é outro exemplo de medicamento produzido com bactérias geneticamente modificadas. Muitas vacinas modernas, por sua vez, também se valem dessa tecnologia.

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Mas voltemos às plantas. Saiba que existem técnicas de modificação genética largamente empregadas que não envolvem os OGMs. Elas são utilizadas até na agricultura orgânica e são capazes de alterar de forma significativa o DNA. Isto é, a rigor, geram cultivares que nada têm de natural.

Vamos explorar um pouco esses métodos:

Hibridização: é a polinização forçada entre espécies diferentes, gerando um ser híbrido com características desejadas de ambos os “pais”. O surgimento de um híbrido não tende a acontecer espontaneamente na natureza, suas sementes não são reutilizadas e o agricultor deve comprar as sementes todo ano. A semente híbrida não é estéril, mas gera uma planta de nível inferior.

Mutagênese induzida: agentes químicos como etil-metano sulfonato (EMS) ou radiação gama são utilizados para induzir mutações nas sementes. Plantas mutantes com as características desejadas são então selecionadas e propagadas. Nossas laranjas-pera foram selecionadas por esse método, gerando plantas mais produtivas. A coloração mais vermelha na grapefruit americana também é resultado de mutação induzida. Essa prática também é permitida na agricultura orgânica.

Fusão de protoplastos: trata-se da manipulação de células vegetais sem parede celular (os protoplastos) para fundir ou transferir características entre espécies. Também é uma forma de gerar híbridos. Tomate, laranja e orquídeas são exemplos dessa técnica (orgânicos inclusive).

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Poliploidia: é a seleção de organismos com cromossomos triplicados ou quadruplicados, que geram plantas mais vigorosas, com frutos e sementes maiores. Em geral, foram selecionadas por seleção artificial convencional, como é o caso da banana e da batata. Em alguns casos, como da melancia sem sementes, beterraba e alguns tipos de mandioca, a poliploidia foi induzida pelo uso de colchinina, que é um inibidor de mitose – ou seja, um elemento que impede a divisão celular. Apresentam baixa fertilidade e necessitam de propagação vegetativa, por mudas e estacas, resultando em populações com baixíssima variabilidade genética. Nem preciso dizer que todos esses possuem variedade orgânica, né?

Já deu para perceber que os alimentos que consumimos e diversos produtos e medicamentos usados no dia a dia são geneticamente modificados, certo? Então por que tanto medo dos OGMs?

Decifrando o transgênico

Um OGM é obtido pela introdução artificial, em laboratório, de um gene que não pertence normalmente àquela planta. Pode ser da mesma espécie, de outra espécie de planta, ou ainda de uma bactéria ou vírus. A técnica utiliza uma bactéria comum de solo que naturalmente infecta células vegetais. Trocas gênicas entre espécies são comuns, e não é novidade as plantas apresentarem genes de bactérias ou de vírus. As diversas técnicas de melhoramento genético também alteram o DNA das plantas, e de maneira muito menos pontual e controlada do que em um OGM.

Quando um OGM é construído, apenas o DNA de interesse é manipulado. O resto do genoma fica intacto. Sabemos exatamente o que mudou e onde está a mudança. Quando induzimos uma mutação com radiação ou agentes químicos mutagênicos, e selecionamos o resultado desejado, não temos controle de outras alterações que podem ocorrer no DNA da planta. Assim, características indesejadas podem ser selecionadas em conjunto.

Isso pode acontecer até na seleção artificial convencional. E aconteceu no nosso exemplo dos cães de raças. Ao selecionar características desejadas como tamanho e coloração do pelo, não raro acabamos selecionando também características indesejáveis como propensão a doenças, displasia e surdez.

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Como as técnicas convencionais não são submetidas a nenhum tipo de teste, algumas vezes os produtos finais não dão certo. O aipo ou salsão é um exemplo de seleção artificial que não deu muito certo. Muitas plantas apresentam defesas naturais contra predadores, como a liberação de toxinas. O aipo produz um composto tóxico chamado psoraleno, que o torna resistente a insetos predadores.

Agricultores selecionaram um cultivar com alto teor de psoraleno, aproveitando essa característica. No entanto, trabalhadores rurais desenvolveram uma alergia severa durante a época de colheita. Como o produto final não foi testado antes de ser colocado no mercado, ninguém sabia desse efeito adverso. E esse aipo não era transgênico, era um aipo selecionado por melhoramento genético convencional.

Isso não quer dizer que a técnica de seleção artificial e hibridização não é segura. Assim como a técnica de transgenia. São apenas técnicas. O que deve ser avaliado para o consumo é o produto final, e isso deve ser feito caso a caso. Não se pode culpar a técnica ou bani-la por causa do mau uso que porventura pode ser feito dela. Se um produto mostrar-se deletério, aí sim, deve-se tirá-lo de cena, seja ele resultado de transgenia, seja de métodos convencionais.

Outro argumento frequentemente usado contra os OGMs é que eles são monopólio de algumas poucas multinacionais, que têm por objetivo criar sementes resistentes a produtos que eles próprios comercializam. Será que isso é totalmente verdade?

O arroz dourado é um OGM que foi modificado para produzir beta-caroteno, um precursor de vitamina A. Estima-se que o arroz represente 80% da base da alimentação diária de 3 bilhões de pessoas. Em algumas regiões do planeta, principalmente países pobres da Ásia, o arroz é quase a única fonte de alimentação. Nessas regiões, a Unicef estima que 124 milhões de crianças apresentam carência nutricional de vitamina A.

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Essa carência, normalmente associada a problemas de visão, acomete também o bom funcionamento do sistema imune. Um estudo da Organização Mundial de Saúde (OMS) demonstra que aproximadamente 250 a 500 mil crianças ficam cegas por ano, e metade desse número morre de infecções, por falta de vitamina A. A suplementação com vitaminas sintéticas seria uma solução óbvia, mas é muito cara.

Um estudo publicado no American Journal of Clinical Nutrition demonstrou que 50 gramas do arroz dourado por dia suprem 60% da necessidade diária de vitamina A. O arroz dourado foi desenvolvido, de maneira independente, pelo IRRI (Internacional Rice Research Institute – Instituto Internacional de Pesquisa do Arroz), com apoio financeiro da Fundação Bill e Melinda Gates e Fundação Rockefeller. Seu uso é destinado a países emergentes e não tem fins lucrativos.

Em 1990, as plantações de mamão papaia do Havaí foram assoladas por um vírus. O papaia foi quase extinto nessa região, deixando diversos fazendeiros à beira da falência. Alguns anos depois, um pesquisador havaiano, Dennis Gonsalves, da Universidade Cornell (EUA), desenvolveu uma variedade transgênica que carrega um gene do vírus, conferindo imunidade ao OGM. As sementes foram distribuídas gratuitamente para os fazendeiros locais. A produção retomou o ritmo perdido.

O arroz mergulhador é uma variedade transgênica que resiste mais tempo submerso. Apesar de o arroz ser o único cereal que é cultivado em terrenos inundados, a maior parte dos cultivares morre se ficar muito tempo submerso. Há uma variedade que tolera até 14 dias submerso, mas tem baixo rendimento e sabor ruim.

Durante anos, agricultores tentaram em vão obter um híbrido que tolerasse a inundação e mantivesse o sabor e o rendimento. Isolando o gene que confere essa tolerância, pesquisadores da Universidade da Califórnia (EUA) conseguiram introduzir esse gene em variedades comerciais de arroz, que possuem o mesmo sabor e rendimento de suas espécies parentais, mas que resistem a 14 dias de inundação. Essa capacidade também pode ser utilizada no controle de ervas daninhas, diminuindo o uso de herbicidas.

A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) desenvolveu um feijão resistente ao vírus do mosaico dourado, usando uma técnica parecida com a do mamão papaia no Havaí. Essa variedade também diminuiu o uso de defensivos agrícolas normalmente usados para combater a mosca branca, agente transmissor do vírus. Uma plantação acometida pela doença pode perder até 100% de sua produção.

Esses são apenas exemplos de cultivares que já foram aprovados. Vários outros estão em desenvolvimento em universidades e instituições independentes.

O principal objetivo dos OGMs sempre foi a diminuição do uso de agrotóxicos e a biofortificação nutricional. Com a redução do uso de defensivos, também diminuímos a quantidade de combustível necessário para transporte e pulverização e a emissão de poluentes. O aumento no rendimento permite usar menos terra e gastar menos água, contribuindo para uma agricultura mais sustentável. Muitos advogam que a biofortificação não é necessária. Mas, ao mesmo tempo, suplementamos nosso leite e iogurte com vitamina D, nossa água com flúor e nosso sal com iodo.

Devemos lembrar que a realidade não é a mesma para todos os locais do planeta, e que nem todos têm acesso a uma alimentação balanceada e saudável. Em um mundo ideal, nenhuma suplementação seria necessária, assim como nenhum uso de defensivo agrícola. Mas em um mundo ideal também não deveríamos ter 7 bilhões de pessoas para alimentar. Um mundo complexo pede soluções complexas. Que a ciência nos ajude.

* Dra. Natalia Pasternak Taschner é bióloga, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, coordenadora científica do Planetário de São Paulo, responsável pelos projetos Cientistas Explicam e Pint of Science no Brasil e uma das idealizadoras e colaboradoras do blog Café na Bancada

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