Até pouco tempo atrás, comida era apenas comida. Mas, hoje, comida é tudo menos “só comida”. Ela deixou de ser somente sustento para virar símbolo de ativismo, ética, posição política, bandeira de resistência e até motivo de discórdia entre tribos urbanas. As pessoas se sentem pressionadas a comprar e comer de forma sustentável, saudável e, acima de tudo, responsável. Muitos até defendem que “você vota com o seu garfo”.
E várias são as correntes contra a comida industrializada. O movimento “clean label”, por exemplo, prega que, para o alimento ser mais saudável, ele deve ter menos ingredientes – mas vale dizer que essa percepção não faz jus quando interpretada pela ótica da ciência.
Apoiados pelo discurso da sustentabilidade e melhor qualidade de vida, muita gente também defende que é melhor comer alimentos produzidos localmente, sem defensivos agrícolas e cultivados naturalmente. O discurso se baseia na defesa do pequeno produtor em detrimento ao grande e às cadeias de varejistas, ou melhor, ao “big business”.
Entendo que ninguém seja contra o consumo de alimentos cultivados localmente, nutritivos, seguros, de boa qualidade e com preços justos. Mas a questão que se coloca é: isso é possível para todas as pessoas do nosso planeta? Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), a população mundial deve atingir quase 10 bilhões em 2050.
E a concentração do crescimento da população global nos países mais pobres representa um desafio adicional para o cumprimento da Agenda de Desenvolvimento Sustentável para 2030, que preconiza a eliminação da pobreza e da fome, expansão dos sistemas de saúde e educação, igualdade de gêneros e redução da desigualdade.
Segundo a Food and Agriculture Organization (FAO), a produção de alimentos terá de aumentar 70% para dar conta de alimentar a população mundial. E como conseguiremos isso? Muitos especialistas concordam que teremos comida suficiente, mas não nos lugares certos.
Vale lembrar que muitos fatores influenciam na segurança alimentar. Além da questão técnica, a produção de comida envolve assuntos políticos, econômicos e de poder. Em paralelo, a fome e a desnutrição afetam de diversas maneiras as capacidades do ser humano, como o aprendizado, a produtividade e o bem-estar. Então, no âmbito mais amplo, a insegurança alimentar causa desigualdade social e violência, afetando profundamente toda população de uma nação.
Muitos ativistas criticam a agricultura intensiva e extensiva em detrimento da agricultura local e orgânica, mas todos nós sabemos que, sem a agricultura em grande escala baseada em tecnologia, não será viável atender a toda a população mundial. O importante é entender que a forma tradicional não elimina os métodos modernos. A tecnologia e a ciência serão imprescindíveis para vencer o desafio das mudanças climáticas, da restrição de água e de solo, além do aumento da demanda.
A urbanização continuará a avançar de forma acelerada, o aumento da renda por indivíduo irá alterar as exigências e preferências alimentares, passando a incluir mais variedade e maior valor nutricional na dieta da população.
Ao mesmo tempo, a sustentabilidade ganha cada vez mais relevância em todos os setores da economia. Na agricultura, o uso de práticas sustentáveis traz impactos e benefícios diretos. Uma fazenda sustentável é o resultado da união entre a produção de alimentos com o respeito ao meio ambiente e a lucratividade. Atingir esse equilíbrio envolve investimento, métodos e práticas sustentáveis na propriedade.
Biotecnologia, bioengenharia, genética, tecnologia da informação e bioquímica são algumas das áreas de estudo que deverão caminhar juntas e em convergência para melhorar a qualidade e a produtividade agrícolas. Parcerias público-privadas podem ser o modelo de negócios que ajudarão a melhorar os processos e desenvolver inovações na agricultura.
Os avanços no sensoriamento remoto, por meio de equipamentos hiperespectrais, softwares de análise de dados ambientais sobre clima, e amostragem do solo, permitem obter resultados significativos para uma agricultura de precisão.
Por meio de imagens, os equipamentos podem detectar, por exemplo, falhas nas plantações, áreas com falta ou excesso de água e locais em que é preciso utilizar defensivos ou suplementos agrícolas de forma muito mais precisa. Assim, reduz-se a quantidade de químicos aplicados e os recursos despendidos.
As soluções agrícolas inteligentes englobam ainda o monitoramento de rebanhos, acompanhamento dos ciclos de ovulação do gado, otimização do uso da água e de pesticidas, além de controle de pragas e doenças. O trabalho das agritechs e das foodtechs será fundamental para enfrentar o problema de alimentar o mundo.
Mudanças na cidade
Além da agricultura em larga escala, as fazendas urbanas ou verticais deverão ser uma realidade cada vez mais frequente em todo o mundo. Afinal, enquanto a maior demanda de alimentos está nos grandes centros urbanos, a produção de alimentos se localiza a centenas ou milhares de quilômetros de distância.
Problemas de logística, como custo do frete e desperdício por falta de conservação, são decorrentes dessas grandes distâncias. O conceito de fazendas urbanas permite que os alimentos possam ser cultivados dentro de grandes cidades.
E, melhor, produzidos de forma orgânica, sem agrotóxicos ou químicos, utilizando a aquaponia – que combina aquicultura, ou seja, o cultivo de peixes, e a hidroponia, que é o cultivo de plantas sem usar terra, só tendo raízes submersas na água.
Veja: os resíduos dos peixes fertilizam as plantas, as plantas filtram os nutrientes e a água volta limpa para os peixes, poupando, assim, 95% do líquido se comparado com a agricultura tradicional.
Sabemos que a agricultura urbana nunca conseguirá alimentar o mundo, mas o ponto importante é que os recursos naturais das cidades podem ser amplamente melhorados.
A questão do desperdício
Fora isso, toda a cadeia de suprimentos precisa ser reavaliada. Entre a hora que o alimento sai das fazendas e chega às nossas casas, ele passa por vários processos que compõem uma longa cadeia de suprimentos – e no meio desse caminho ocorre muito desperdício.
Entre todas as variáveis, há uma que chama a atenção e até pouco tempo atrás não era discutida. Estou falando das regras para a data de validade dos alimentos embalados. No Brasil, a regra é clara: se passou da data limite, o alimento não pode mais ser comercializado nem consumido.
Só que existem países que usam o “use by” (consuma até) e o “best before” (melhor antes). E poucas pessoas sabem a diferença entre essas duas maneiras de expressar a vida de prateleira de um alimento. Entenda:
• Use by: significa que o consumidor deve consumir o alimento até a data escrita na embalagem. Após essa data, os alimentos podem não estar mais próprios para consumo, mesmo que a aparência pareça boa. Após essa data a venda é proibida, pois os nutrientes podem se tornar instáveis ou ocorrer o acúmulo de bactérias.
• Best before: significa que é possível consumir o alimento após a data escrita na embalagem, pois os alimentos ainda estão próprios para o consumo. Desde que, é claro, se assegure que a embalagem esteja íntegra e em bom estado. E o alimento deve ter boa aparência e odor característico. Em resumo, essa data simplesmente indica que o produto pode perder um pouco de sua qualidade após esse prazo.
A modalidade best before propicia uma flexibilidade maior ao prazo de validade, porque passa para o consumidor a responsabilidade de analisar a qualidade do alimento a ser consumido. Entretanto, muitas pessoas consomem os alimentos considerando as duas modalidades (“use by” e “best before”) como sendo iguais, ou seja, como prazo limite para consumo, e isso acaba levando comida em boas condições para o lixo.
Alguns órgãos regulatórios internacionais já discutiram a alteração dessas regras e até mesmo chegaram a debater a eliminação do prazo de validade para muitos alimentos, como café, arroz, massa seca, geleias, picles, entre outros. Tudo para ajudar a reduzir o desperdício de alimentos próprios para o consumo.
Essas ações mostram que todos nós que trabalhamos com alimentos temos sempre que reavaliar comportamentos, conceitos, certezas, crenças, atitudes. Além de estarmos constantemente atualizando o conhecimento para informar corretamente os consumidores sobre as melhores práticas de consumo alimentar.
É possível que os próprios consumidores sejam capazes e estejam habilitados a avaliar se a sua comida está em boas condições de consumo ou não. Uma checagem simples, física e sensorial, usando o bom senso, já seria o suficiente. Ora, em última análise, se a comida parece estragada e cheira mal, com certeza será descartada.
Pensando nessas modalidades, será que não seria hora de começar a discutir esse tema por aqui também? Ou você é daqueles que pensa que se a validade venceu hoje, o produto estará estragado amanhã? Você já jogou algum alimento embalado vencido fora? Que atire a primeira embalagem quem nunca fez isso…
Empoderar o consumidor significa torná-lo mais consciente e responsável pela qualidade dos alimentos que consome. Essa pequena mudança de atitude pode ajudar a diminuir consideravelmente o desperdício de alimentos em bom estado e ajudar na sustentabilidade do nosso planeta. Dessa forma, também concordo que comer é um ato político.
*Márcia Terra é nutricionista e secretária-geral da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (Sban)