Essa matéria faz parte do dossiê Tribunal da Comida, publicado na edição de outubro (508). Clique aqui para ler os outros conteúdos.
O ovo é um queridinho dos frequentadores de academia e dos vegetarianos preocupados com o aporte de proteína.
Mas vira e mexe ele leva um ataque. A presença do alimento no tribunal da alimentação é antiga. Tudo começou quando, nos anos 1970, a Associação Americana do Coração passou a pregar que as pessoas limitassem a ingestão de colesterol via dieta a 300 mg diários.
Ora, apenas um ovo tem 185 mg, mais da metade da recomendação! Pronto, instaurou-se o temor de que o produto da galinha patrocinaria infartos. Ocorre que a orientação da entidade partiu de um erro conceitual.
Antes de esclarecê-lo, convém sublinhar que, sim, é fundamental controlar os níveis de colesterol no sangue para resguardar o coração e viver mais. Ponto.
Mas vamos nos aprofundar melhor nesse detalhe. A molécula de colesterol em si exerce nobres funções no organismo, como a participação na síntese de hormônios e na absorção de vitaminas.
Não à toa, nosso corpo já fabrica colesterol no fígado! A questão é que, para fazer seu trabalho, a partícula precisa ser transportada por proteínas, as famosas LDL (associada ao colesterol “ruim”) e HDL (o “bom”). A dicotomia em si não existe: uma distribui colesterol, outra o carrega de volta das artérias para o fígado.
Acontece que a sobrecarga de LDL-colesterol leva à formação de placas capazes de entupir os vasos (o fenômeno por trás do infarto). Então, sim, é preciso domar os níveis circulantes pelo bem do sistema cardiovascular.
+Leia Também: O que é aterosclerose: tratamento, causas, sintomas e prevenção
Ok, mas e o ovo com isso? Bom, seria péssimo se dos 300 mg diários que você deveria consumir de colesterol mais da metade viesse apenas de uma omelete no café da manhã, né? Ainda bem que isso não acontece.
“O colesterol do ovo não é o problema, pois quase 80% do colesterol que o organismo utiliza é endógeno, ou seja, produzido por ele mesmo”, esclarece o cardiologista Andrei Sposito, diretor de pesquisa da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp).
“Na verdade, os estudos mostram que o acúmulo do colesterol ruim nas artérias está muito mais relacionado ao alto consumo de gordura saturada do que de colesterol exógeno em si”, acrescenta a nutricionista Valéria Machado, também da Socesp.
E a ciência, definitivamente, está do lado do ovo: um estudo publicado no periódico Heart, em cima de dados de meio milhão de chineses acompanhados ao longo de nove anos, constatou que quem consumia um ovo por dia encarava um menor risco de ter ataque cardíaco ou derrame.
Outra investigação, divulgada pelo The American Journal of Clinical Nutrition, desfez, por sua vez, a ideia de que pessoas com pré-diabetes ou diabetes tipo 2 não deveriam saborear o alimento: os participantes que mantiveram uma dieta saudável com 12 ovos por semana não viram o risco cardiovascular aumentar.
Mais recentemente, o médico Eder Quintão, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), publicou uma grande revisão de estudos com informações de mais de 5,5 milhões de pessoas pelo mundo — boa parte delas ingeria entre um e cinco ovos por semana.
Conclusão: o consumo de pelo menos um ovo por dia não foi associado a maior propensão a infarto e AVC. Na população asiática, com uma ingestão predominante de fontes de carboidrato (como arroz), o acréscimo de ovos à dieta chegou a baixar em 8% essa ameaça.
+Leia Também: Com o coração nas nossas mãos: aprenda a cuidar melhor dele
Se alguém precisa reduzir suas taxas de colesterol e quer blindar o peito, portanto, faz muito mais sentido prezar um menu equilibrado, exercitar-se e aderir ao tratamento prescrito pelo médico do que jogar pedra no ovo e aboli-lo da despensa.
E é aí que reside a questão: um levantamento encabeçado pelo Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, com dados de mais de 2 milhões de brasileiros, constatou que apenas 7% dos indivíduos que sofreram uma pane cardiovascular mantinham o uso regular de estatinas, medicações que comprovadamente diminuem o colesterol. E isso faz bem mais mal que consumir ovo.
Voltando a ele, Valéria destaca que é um alimento completo, porque é rico em proteínas de alto valor biológico, entrega vitaminas e minerais, além de ofertar colina, substância que contribui para a memória e a cognição.
Para a nutricionista da Socesp, ele pode ser um tremendo aliado da saúde, inclusive para quem nem sempre pode pagar por um bife ou um filé de peixe.
“Falar mal do ovo é tentar privar a população mais carente de comer uma fonte de proteína saudável e acessível”, concorda Sposito.
Diante das fartas evidências, a própria Associação Americana do Coração abandonou a orientação de restringir a ingestão de colesterol a 300 mg por dia. Só não devemos usar esse veredicto para abrir mão do bom senso. Na internet, tem gente postando que come mais de dez ovos por dia, entre as sessões de musculação.
Tudo que é de mais… Fora isso, mantém-se atual o conselho de priorizar preparos com menos gordura. Cozido é melhor que frito — sempre!
Clique aqui para continuar lendo o dossiê Tribunal da Comida