Zumbido: ruído ao pé do ouvido
Quase 15% da população mundial sofre com esta perturbação frequentemente associada a perda de audição e capaz de abalar a saúde mental
Há uma década, um barulhinho começou a incomodar a vida da enfermeira Claudia Wolf, de 58 anos. Na época, o estresse do trabalho consumia seus dias e um apito incessante em seus ouvidos decidiu lhe fazer companhia.
Ele a seguia a todos os lugares e piorava quando mais precisava de paz. Outros sintomas se somaram ao quadro, que ficou insuportável. “Não tinha mais condições de trabalhar, fazer comida e, às vezes, nem de me levantar”, lembra a profissional de saúde de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo.
Claudia é uma dos 740 milhões de pessoas que lidam com o zumbido ao redor do mundo. Segundo uma revisão de estudos publicada no periódico científico JAMA Neurology, a condição afeta 14% dos adultos, sendo que 2% enfrentam formas graves.
No Brasil, calcula-se que 28 milhões de cidadãos são atingidos.
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Ainda de acordo com a pesquisa, o zumbido não distingue gênero: é igualmente prevalente entre homens e mulheres. No entanto, o envelhecimento é um de seus maiores fatores de risco.
Enquanto apenas um a cada dez adultos de 18 a 44 anos de idade apresenta o problema, a estimativa é de que cerca de um quarto daqueles com 65 anos ou mais sofra com isso.
O zumbido é tão comum e perturbador que até virou tema de filme: Tinnitus, do diretor paulistano Gregorio Graziosi, lançado em junho. O título é um sinônimo do sintoma e deriva do latim tinnire, que significa “tocar” ou “zumbir”.
O longa conta a história de Marina, uma atleta de saltos ornamentais que vê sua carreira e seus relacionamentos serem prejudicados por ruídos ao pé do ouvido.
Com liberdade artística, a obra explora bem os recursos sonoros para transmitir o desconforto causado pela condição, mas acaba extrapolando suas consequências no final dado à protagonista. Na vida real, não precisa ser assim.
O tal tinnitus é, a rigor, um sintoma bastante conhecido de médicos, cientistas e outros profissionais que lidam com entraves à audição. Para minimizá-lo, existem diversas opções de tratamento. Seguindo as orientações corretas, ele pode, felizmente, ter remissão.
Antes de chegar lá, primeiro é preciso ter em mente que o zumbido é sinal de algo errado no corpo, não uma doença em si. Assim como febre e dores podem ser manifestações para as mais diversas moléstias, o tinido também está atrelado a várias causas.
Por isso, ele soa um alerta que merece receber atenção e ser investigado. Antes que faça barulho demais na vida das pessoas.
O que é o zumbido?
O zumbido é definido como a percepção de um som que não possui fonte externa.
Ele pode ser ouvido por um ou por ambos os ouvidos e se apresentar de formas diversas. Alguns escutam apitos; outros, chiado. Há ainda quem o ouça como uma panela de pressão, um enxame de abelhas, um canto de cigarras, entre outros barulhos.
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A grande maioria dos casos de zumbido é subjetiva, ou seja, o som é ouvido apenas pelo indivíduo que o relata. Já em situações menos frequentes, o tinido pode ser escutado também pelo médico que o avalia. Chamado objetivo, ele geralmente está ligado a anormalidades vasculares e musculares.
Os quadros subjetivos aparecem quando o sistema auditivo passa a captar menos estímulos sonoros. Em geral, isso ocorre por causa de danos ao ouvido interno, que chegam a afetar estruturas como a cóclea e o nervo auditivo.
“Quando o cérebro percebe que a entrada de som está reduzida, ele se reorganiza para tentar compensar essa perda”, explica a otorrinolaringologista Patricia Ciminelli, chefe do Ambulatório de Otoneurologia do Hospital Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Causas do zumbido
A perda auditiva é, portanto, uma das principais causas de zumbido — e também um dos maiores riscos à saúde no futuro. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 2,5 bilhões de pessoas poderão ter algum grau de deficiência auditiva até 2050.
Claudia já faz parte dessa estatística. Ela foi diagnosticada com a síndrome de Ménière, distúrbio causado por excesso de líquido no ouvido interno. A condição provoca, além de ruídos e déficit auditivo, sintomas como vertigem e pressão no ouvido.
Dentro do número exorbitante de casos previstos pela OMS, até a pandemia de Covid-19 tem sua parcela de culpa no cartório. Isso porque a infecção também deixou sequelas auditivas em pessoas que contraíram o vírus.
De acordo com uma revisão de 24 pesquisas a respeito publicadas no primeiro ano da crise sanitária, a prevalência de vítimas que passaram a apresentar vertigem foi de 7,2%; deficiência auditiva, 7,6%; e zumbido, 14,8%.
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Investigações mais aprofundadas ainda são necessárias para entender o impacto do coronavírus — e de outros perrengues — nas profundezas do ouvido. Em paralelo, uma epidemia bem mais barulhenta também ameaça a saúde auditiva, principalmente a dos jovens.
A OMS prevê que quase metade dos indivíduos de 12 a 35 anos — o que corresponde a 1,1 bilhão de pessoas — corra risco de perder a audição por longa exposição a sons muito altos. O famoso fone de ouvido no talo!
O reumatologista Diogo Rossi, de 36 anos, sabe bem do que estamos falando. Em meados dos 2000, padeceu de uma crise de zumbido.
À época, ainda universitário, o morador de Tatuí (SP) foi a um bar com amigos e sentou-se bem de frente da banda de rock que se apresentava no local. Enquanto curtia a playlist nas alturas, começou a sentir um desconforto no ouvido.
“Era um tremor que logo virou chiado. Um ‘shhh’ bem parecido com aqueles de quando as antenas de TV não funcionam”, descreve. O sintoma persistiu por um semestre, desaparecendo após acompanhamento com otorrino e tratamento com remédios. Ufa!
Profissão como fator de risco
Vale dizer que o zumbido não discrimina gênero musical. Vários artistas já abordaram o assunto e confessaram padecer dele — quase um efeito colateral da profissão.
Entre eles estão Eric Clapton, considerado um dos melhores guitarristas da história; Barbra Streisand, ícone dos palcos da Broadway; Bob Dylan, voz do folk agraciada com um Nobel de Literatura; e Chris Martin, vocalista do Coldplay, banda de rock que oferece experiências táteis a pessoas com deficiência auditiva em seus shows.
Um estudo publicado em 2019 por pesquisadores da Universidade de Manchester, na Inglaterra, confirmou que profissionais da indústria da música têm praticamente o dobro de risco de desenvolver zumbido do que funcionários em carreiras mais silenciosas.
Outras profissões comumente associadas ao risco de desenvolvê-lo trabalham em construções, aeroportos, exércitos e bares.
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O ruído também é um problema comum entre educadores, ainda que a questão não receba a devida atenção pública. A professora aposentada Débora Kirklewski, de 57 anos, convive com apito nos ouvidos há 20 anos.
O sintoma surgiu enquanto trabalhava na área de educação especial — e não era exclusivo dela. “Muitas colegas tinham também. Elas faziam tratamento, mas não notavam melhora. Isso vai nos desanimando”, relata a docente paulistana, que acabou se acostumando com o barulho.
A otorrinolaringologista Tanit Ganz Sanchez, uma das pioneiras nos estudos sobre zumbido na América Latina, está acostumada a lidar com o sofrimento e a falta de perspectivas dos pacientes.
“Quando comecei a pesquisar nos anos 1990, ninguém sabia que havia tratamento. Hoje já falamos até em cura”, afirma a professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Atualmente, a médica gere um instituto especializado que leva seu sobrenome e se empenha em divulgar que há soluções para o problema.
Tratamentos para o zumbido
Ainda que estudos documentem a remissão de casos com idades, causas e durações distintas, convém deixar claro que não há uma receita única para a melhora. Como as causas do zumbido são diversas, os tratamentos também variam de um paciente para outro.
“Por muito tempo, o aparecimento do sintoma foi visto como um problema sem saída, mas a ciência avançou e não precisa ser mais assim”, garante Tanit, que cuidou do médico Diogo.
Diante da apresentação de chiados, apitos e demais formas do incômodo, o conselho número 1 é procurar um otorrino e, em muitos casos, também recorrer ao acompanhamento de fonoaudiólogos.
“Nosso papel envolve a avaliação da audição, a intervenção e a desmistificação do zumbido”, explica a fonoaudióloga Izabella Lima de Matos, doutoranda da Faculdade de Odontologia de Bauru da USP e criadora do Portal do Zumbido, que visa dar visibilidade ao assunto entre profissionais.
Para avaliar caso a caso, deve-se fazer uma inspeção física dos ouvidos e alguns exames audiológicos, que atestam se há perda de audição. Testes complementares para inspecionar a orelha adentro podem ser solicitados.
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Há até procedimentos que ajudam os profissionais a definir o zumbido relatado pelos pacientes. A acufenometria é o método em que o indivíduo é exposto a estímulos sonoros e informa ao especialista aqueles com frequência e intensidade semelhantes ao que costuma ouvir.
Uma vez diagnosticada a condição, e a provável causa, a equipe parte para o tratamento.
Entre as soluções mais convencionais e prescritas, destacam-se o uso de medicamentos e equipamentos de reabilitação auditiva, como aparelhos e programas que ajudam a “cancelar” o zumbido. Foram esses recursos que devolveram qualidade de vida a Claudia, diminuindo as crises rotineiras.
Isso porque, quando o sujeito volta a ouvir melhor, o ruído é “acobertado” pelos sons que voltam a ser captados.
Com um custo médio de 6 mil reais, no entanto, os dispositivos são caros e o paciente pode levar de meses a anos para conseguir o seu pelo Sistema Único de Saúde (SUS), a depender da cidade. Quando não há perda auditiva, como o caso de Diogo, esses aparelhos não são necessários.
Deve-se levar em consideração que, para além dos danos físicos ao ouvido, há também outros fatores que podem impactar as coisas.
Entre eles se destacam os musculares (tensões cervicais e apertamento dentário, por exemplo), metabólicos (como mudanças hormonais e questões alimentares) e emocionais (estresse, ansiedade e depressão).
“É um sintoma multifatorial e, portanto, pode necessitar de um tratamento multiprofissional”, afirma o otorrinolaringologista Fayez Bahmad Jr., professor da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília (UnB).
Os cuidados complementares podem envolver acompanhamento com psiquiatras e psicólogos, que auxiliarão a enfrentar o quadro, capaz de gerar frustração, tensão e perturbação no dia a dia. Além disso, sobretudo quem recebe o diagnóstico de perda auditiva precisa se readequar a um novo estilo de vida.
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Evitar espaços barulhentos, por exemplo, é uma orientação comum para se resguardar, ainda que a convivência social possa ficar limitada.
“Não é fácil, mas essa readapatação mudou minha vida. Hoje tento levar uma rotina menos estressante e mais calma, respeitando meus limites”, afirma a enfermeira Claudia.
Diogo também teve que se adaptar. Ele não perdeu a audição, mas foi diagnosticado com hiperacusia (hipersensibilidade auditiva). O médico suspeitava dessa tendência em sua vida, mas ela só ganhou nome após o susto do zumbido. “Hoje sempre saio com protetores auriculares, pois até o barulho do trânsito é incômodo.”
Outras abordagens terapêuticas mais recentes, como uso de laser, estimulações transmagnéticas e terapias sonoras para a diminuição do ruído, ainda precisam de mais evidências sobre eficácia, além de padronizações para a criação de protocolos.
Por sorte, vivemos em um dos países que mais pesquisam o assunto e, portanto, podemos esperar novas saídas ao tinnitus.
“Junto a Estados Unidos, França, Alemanha, Inglaterra e Japão, temos os principais centros de pesquisa para o tratamento de zumbido”, afirma Bahmad Jr., editor-chefe do The International Tinnitus Journal. “Desenvolvemos estudos clínicos de alto impacto, ajudando pacientes do mundo inteiro”, completa o médico.
Ter a comunidade científica mobilizada e orquestrada para levar informação e solução à população é ponto decisivo para silenciar essa sinfonia barulhenta que aflige milhões de pessoas. Que alívio!
Sem mitos
Por muito tempo, os mecanismos biológicos do zumbido permaneceram desconhecidos pela medicina, abrindo espaço para uma série de crenças, algumas bem antigas.
No século 19, o compositor alemão Robert Schumann passou a conviver com um ruído persistente que acreditava ter sido enviado por Deus. Na zona rural da Índia, ainda há pessoas que atribuem ao sintoma uma mensagem dos céus. E, por aqui, há quem o interprete como vozes do além.
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Por dentro do zumbido
Quais são os danos e as estruturas do ouvido envolvidos no surgimento dos ruídos
Pane nos vasos
Em casos raros, mudanças na circulação do sangue por artérias ou veias do pescoço, como entupimentos, podem causar um zumbido caracterizado por uma sensação pulsátil.
Tensão muscular
Disfunções das articulações temporomandibulares também podem estar associadas aos barulhos. Fisioterapia tende a fazer parte do tratamento nesse caso.
Danos internos
Em formato de caracol, a cóclea é preenchida por um líquido essencial à audição e ao equilíbrio. A estrutura está na zona do labirinto do ouvido interno — e lesões ali geram ruído.
Fios sensíveis
Dentro da cóclea, há cerca de 20 mil células nervosas que são excitadas por estímulos, enviando impulsos elétricos ao nervo que a conecta ao cérebro. Se tem problema ali…
Principais cuidados
Como manter a saúde auditiva preservada ao longo da vida
Teste da orelhinha
A triagem auditiva neonatal é realizada em até 48 horas após o nascimento do bebê para flagrar possíveis deficiências congênitas.
Ouça com moderação
Exposição prolongada a sons altos é um risco. Por isso, use fones no volume médio. Caso aumente, não ultrapasse uma hora de uso nesse modo.
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Bons companheiros
Vai se expor a locais barulhentos? Leve protetores auriculares com você. Eles podem evitar agressões ao ouvido médio e interno.
Aposente o cotonete
Hastes flexíveis podem empurrar a cera para dentro do ouvido e cutucar estruturas sensíveis. Use toalhas para secar a orelha.
Check-up
Recomenda-se ir ao otorrino uma vez ao ano, especialmente em casos com histórico familiar para condições como déficit auditivo.
Atenção à escala
Exposições a sons de até 80 dB não apresentam riscos. Sons mais altos que isso precisam ter a exposição controlada.