Há 170 anos, os franceses cunharam a expressão “cancer à deux” (câncer a dois) para descrever os casos em que a mulher tinha um tumor de colo de útero e o marido, um de pênis, levantando a suspeita de que essas doenças poderiam ser contagiosas. A maioria dos episódios, como hoje se sabe, é causada pelo papilomavírus humano (HPV), transmitido por contato sexual. Ao longo da vida, a pessoa tem 80% de chance de pegar um dos tipos de HPV, inclusive os três mais associados a esses cânceres. Por isso, quando as vacinas contra o HPV surgiram, em 2006, despontou a esperança de erradicar esses dois tipos de tumor, mais comuns em países pobres ou em desenvolvimento, onde as estratégias de prevenção e diagnóstico precoce não funcionam bem.
O alvo da vacinação, porém, é um grupo extremamente vulnerável emocionalmente e que não costuma mais frequentar postos de saúde durante campanhas de vacinação: os adolescentes e pré-adolescentes. Por isso, as autoridades de saúde resolveram imunizar esses grupos nas escolas. Foi nesse ambiente, na cidade paulista de Bertioga, que 11 meninas da mesma escola foram hospitalizadas após receber a segunda dose da vacina em setembro de 2016, queixando-se de fortes dores de cabeça e dificuldades para andar.
Oito meninas receberam alta no mesmo dia, depois de uma avaliação neurológica concluir que não tinham sofrido dano físico e o problema havia sido causado pela enorme ansiedade quanto à vacina. O caso representava um exemplo de um fenômeno descrito na medicina como crise psicogênica em massa. Três outras permaneceram internadas. Foi o bastante para o fato ganhar as manchetes da mídia, com comentaristas questionando, inclusive, a segurança da vacinação.
Ao contrário do que muitas pessoas imaginam, doenças psicogênicas não são “fingimento”. Os sintomas, sejam dores, tonturas, cegueira, paralisia etc., são reais. Apenas sua causa não é um agente externo, como um vírus ou uma contaminação do ambiente, mas um estado emocional.
Qualquer indivíduo que já tenha ficado sem ar ou paralisado de susto sabe como os efeitos físicos de certos estados mentais são poderosos.
Essas crises são contagiosas (daí o termo “de massa”). Quando membros de um grupo que partilham de uma identidade forte — estudantes de uma mesma escola, por exemplo — veem um colega adoecer e sentem o clima de medo e apreensão, outros acabam sucumbindo. O alcance do fenômeno, é claro, pode ser amplificado pela mídia.
Os casos de “reação adversa à vacina do HPV” no Acre
Em 2015, um ano antes da situação em Bertioga, o mesmo fenômeno ocorreu no Acre sem muito alarde na grande mídia. E, diferentemente do que aconteceu em São Paulo, a saúde pública local não deu atenção ao caso. Muitas mães tiveram de ouvir que suas filhas estavam apenas fazendo cena, simulando ter convulsões. O Acre conta, hoje, com 82 desses casos, os oito mais recentes registrados nas últimas semanas.
A maioria dos episódios era semelhante aos que viriam a se manifestar em São Paulo, com queixas de dores de cabeça, dores nas pernas e desmaios. Alguns adolescentes apresentavam um quadro mais grave, com convulsões. E as famílias, espremidas entre a indiferença das autoridades e a realidade dos sintomas, adotaram o pressuposto de que suas filhas e filhos estavam com uma sequela neurológica provocada pela vacina.
Familiares passaram a ficar na porta de centros de vacinação, tentando convencer as pessoas que o imunizante contra o HPV era perigoso.
Vídeos das meninas em convulsão foram postados em redes sociais. Depois de vê-los, outras jovens passaram a apresentar os mesmos sintomas — e o caso ganhou destaque nos jornais e emissoras locais. O pânico foi se espalhando pela população ao longo dos quatro anos em que o fenômeno ficou sem explicação.
Procuradas pelas famílias, as quatro deputadas federais eleitas pelo Estado, Mara Rocha (PSDB), Jéssica Sales (MDB), Vanda Milani (Solidariedade), Perpétua Almeida (PC do B) e a senadora Mailza Gomes (PP) deixaram de lado as diferenças partidárias e pressionaram o Ministério da Saúde a encontrar uma resposta para o que estava acontecendo com os adolescentes. O governo encarregou o Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas, em São Paulo, de desvendar o mistério.
Acompanhados por suas mães, os 16 adolescentes com sintomas mais graves, entre eles um casal de irmãos, foram trazidos para a capital paulista, onde passaram por uma enorme bateria de exames, de ressonância magnética a testes de metabolismo, incluindo até exames de gravidez. E, o mais importante, realizaram uma vídeo-eletroencefalografia prolongada, em que o paciente é gravado enquanto o aparelho registra suas ondas cerebrais, ao longo de dez a 15 dias, por 24 horas.
O parecer dos especialistas sobre a segurança da vacina do HPV
Até o final de outubro, a equipe coordenada pelo psiquiatra Renato Luiz Marchetti, do IPq, tinha avaliado 12 pacientes. Apenas dois — aquele casal de irmãos — apresentava convulsões do tipo epiléptico, mas ambos são portadores de uma forma genética da doença, que justamente se manifesta na adolescência.
Os demais sofreram convulsões atípicas, não associadas à epilepsia ou outra doença fisiológica, mas que caracterizam doença psicogênica. Ou seja, disparada por um mecanismo psicológico.
“É uma doença funcional do sistema nervoso, que está associada a estresse emocional. Ela desencadeia uma reação psicológica automática do sistema nervoso”, explica o Marchetti.
Coordenador da Unidade de Vídeo-Eletroencefalografia do IPq, o psiquiatra José Gallucci Neto lembra que a história registra vários episódios de doença psicogênica em massa, como o das bruxas de Salem, que envolvia meninas adolescentes numa comunidade puritana apavorada com demônios. Ou casos de pessoas que se achavam contaminadas por antraz ou gás Sarin logo após o atentado das Torres Gêmeas, no 11 de setembro de 2001.
Os eventos de doença psicogênica relacionados a vacinas também não são incomuns. Em 1998, um menino desmaiou um dia depois de tomar uma injeção contra tétano e difteria numa escola da Jordânia. Quando os colegas souberam, outros 20 desmaiaram ou se queixaram de febre e falta de ar.
Depois que a história chegou à mídia, mais 55 alunos do mesmo colégio passaram mal. Outros 700, de outras escolas, também reclamaram dos mesmos sintomas.
“O fator que detona esse processo é a crença cultural em algo extremamente ameaçador”, conta Gallucci Neto. “Temos um cenário em que vem o crescendo o medo de tomar vacinas, por causa dessas campanhas absurdas que dizem que elas disparam autismo ou provocam a doença que se quer evitar”, completa.
O caso da Colômbia, também com a vacina contra HPV, é impressionante. Por lá, a vacinação começou em 2012 e atingiu 90% do público-alvo. Dois anos depois, na cidade de Carmen de Bolivar, 15 meninas da mesma escola foram hospitalizadas, entre 29 de maio e 2 de junho de 2014, após tomarem a injeção. Logo apareceram vídeos delas desmaiando e se contorcendo, dando entrada inconscientes no hospital local.
A viralização das imagens causou também a disseminação dos sintomas psicogênicos em toda a Colômbia, onde há registro de mais de 600 casos.
A importância do contexto social
A vacina contra o HPV vem acompanhada por vários mitos. O principal é de que estimula o início precoce da vida sexual — há estudos internacionais mostrando justamente o contrário.
Além disso, no caso específico do Acre, as meninas frequentam um ambiente socioeconômico frágil, agravado pela atual crise. “Elas também vêm de famílias disfuncionais, onde há alcoolismo, privações materiais, abusos físicos ou psicológicos em algum momento da vida”, enumera Gallucci.
Outro fator que pode ter pesado no surto de doença psicogênica do Acre são as condições adversas da vacinação. Diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), o pediatra Renato Kfouri explica que o ideal, especialmente em adolescentes, é administrar a vacina com o jovem sentado numa sala fechada com o vacinador.
“Adolescentes são extremamente influenciáveis. Se um desmaia porque está assustado, muitos dos que estão fila também vão passar mal e atribuir o fato aos componentes da vacina, e não ao estresse provocado pelo ato de tomá-la”, afirma. “Essa estratégia reduz os casos de doença psicogênica, mas nas escolas nem sempre há condições para isso”, reconhece.
Também há defensores de certas terapias alternativas que jogam com o estranhamento em torno do caso para ganhar notoriedade e promover “soluções” de pouco ou nenhum respaldo científico.
O caso mais notório é o de Maria Emília Gadelha Serra, que faz pós-graduação em perícia médica na Santa Casa e contesta o estudo realizado em São Paulo, alegando que as jovens foram contaminadas por chumbo e outros metais pesados que ela afirma — sem provas — estarem presentes na vacina. Ela prestou um depoimento na Assembleia Legislativa do Acre, onde sua fala teve grande repercussão.
Em suas redes sociais, Maria Emília dissemina teorias da conspiração sobre a vacina contra o HPV, principalmente baseadas nas ideias desacreditadas do médico americano Sin Hang Lee. Ela diz que as meninas do Acre devem ser “descontaminadas” antes de passar por tratamento.
A médica é uma promotora da ozonioterapia, considerada uma “Prática Integrativa e Complementar” pelo Ministério da Saúde brasileiro, mas que carece de base científica e é condenada pelo FDA, órgão de vigilância sanitária do governo dos Estados Unidos. Há registro de pelo menos cinco mortes e uma amputação causadas pela prática.
Orientações
A equipe do Hospital das Clínicas paulista fez uma série de recomendações ao governo do Acre e ao Ministério da Saúde, começando pelo acompanhamento multidisciplinar das adolescentes, com equipe de clínico geral, psiquiatra, psicólogo e neurologista, sem necessidade de medicação.
A outra recomendação é de um programa que combata as “fake news” e desinformação. Por causa do episódio, muitas mães estão relutando em levar os filhos para tomar as demais vacinas de que precisam.
Em novembro, um artigo publicado na revista científica The Lancet Oncology afirmava que, graças à vacina contra o HPV, o câncer de colo de útero pode vir a ser erradicado do planeta.
Este conteúdo foi publicado originalmente pela Revista Questão de Ciência