Remdesivir: o que sabemos sobre a nova promessa contra o coronavírus
O antiviral remdesivir reduziu o tempo de internação por Covid-19, segundo resultados preliminares de um estudo. O uso foi liberado emergencialmente nos EUA
A FDA, agência que regula os remédios nos Estados Unidos, aprovou em caráter emergencial o uso do antiviral remdesivir no tratamento de casos severos de Covid-19, a doença provocada pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2). O medicamento, da farmacêutica Gilead, foi desenvolvido originalmente para combater o ebola, mas sem sucesso para isso.
A liberação em terras norte-americanas ocorre amparada por benefícios modestos demonstrados em um estudo com resultados preliminares. Até por isso, há a preocupação de que o remédio seja alçado cedo demais ao posto de solução contra a pandemia. E mesmo os dados disponíveis não permitem dizer que ele cura os pacientes.
“Ele está sendo liberado mais por causa da urgência do que por evidências concretas de sua eficácia”, comenta Renato Grinbaum, consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).
Vamos ao que há de disponível na ciência sobre seu potencial. Em uma investigação que incluiu 1 063 indivíduos com casos graves da doença, metade tomando o remédio e metade um placebo, o remdesivir diminuiu em 31% o tempo médio de internação. Ou seja, de 15 para 11 dias. Isso ajudaria a desafogar os sistemas de saúde, o que é bom.
Houve ainda uma variação na taxa de mortalidade nos grupos: 8% entre quem tomou a medicação e 11,6% entre quem não tomou. Mas muita atenção agora: essa diferença não possui valor estatístico — ela está dentro da margem de erro da pesquisa. Em outras palavras, nesse experimento, o remdesivir não reduziu o risco de morte, em comparação com o placebo.
O estudo foi conduzido pelo National Institute for Allergy and Infectious Diseases (NIAID), dos Estados Unidos. Ele não foi oficialmente publicado até agora. Os resultados, preliminares, saíram em um comunicado à imprensa, com comentários do diretor da entidade, o respeitado imunologista Anthony Fauci, que afirmou que o remdesivir poderia se tornar “o tratamento padrão” para a Covid-19.
Cabe destacar que, sem a publicação em um periódico científico, especialistas não podem checar de maneira aprofundada as qualidades e as limitações de um estudo qualquer.
Evidências controversas do remdesivir contra o coronavírus
A promessa da vez já demonstrou inibir a replicação do Sars-CoV-2 em células isoladas no laboratório e em animais. Além dos achados do NIAID, outras duas pesquisas em seres humanos com resultados conflitantes pautam as discussões atuais sobre o tema.
Uma, publicada no periódico científico The Lancet, também comparou o fármaco com um placebo. Nesse caso foram 200 voluntários chineses. Conclusão: o remédio não ajudou no tratamento. No entanto, a investigação foi interrompida por falta de pacientes, o que limita a análise dos resultados.
Outra pesquisa, financiada pela farmacêutica Gilead, fabricante do composto, reuniu 50 indivíduos de diversos países. E ela indica uma melhora em mais de 68% dos voluntários. Porém, não havia um grupo controle tomando outra droga ou um placebo, o que dificulta qualquer avaliação de eficácia. Os resultados foram publicados no periódico The New England Journal of Medicine.
“Precisamos de mais dados para tirar conclusões sobre o medicamento, que tipo de melhora promove e em que situações se aplicaria. Ou seja, devemos tomar muito cuidado antes de adotar qualquer decisão sobre seu uso”, comenta Natália Pasternak, bióloga e presidente do Instituto Questão de Ciência.
O estudo do NIAID pode trazer uma luz por ter duas características valiosas: um grande número de participantes e um grupo controle tomando um placebo. Mas será preciso vê-lo na íntegra e submetê-lo à revisão de outros cientistas para ter certeza disso. Em comunicado, a própria Gilead destaca que há poucos dados disponíveis sobre o efeito do remdesivir em humanos e não se sabe se ele é seguro e eficaz para o tratamento da Covid-19.
O Ministério da Saúde do Brasil também anunciou que está acompanhando testes clínicos com a droga. A Organização Mundial da Saúde (OMS), por sua vez, incluiu o remdesivir no Solidarity, uma megainvestigação internacional para encontrar um tratamento contra o novo coronavírus.
Como o remdesivir age
Testado pela primeira vez sem sucesso durante a epidemia de ebola que ocorreu entre 2013 e 2016, o remdesivir atua na multiplicação do Sars-CoV-2. “Ele inibe a enzima RNA polimerase, que transcreve e replica o material genético do vírus”, explica Fernando Spilki, presidente da Sociedade Brasileira de Virologia.
Apesar de ser considerado seguro em geral, há possibilidade de danos aos rins e fígado em algumas pessoas. “Mas o fato de os estudos só avaliarem pacientes em estado grave prejudica essa análise, porque a condição deles em si pode provocar essas reações”, destaca Spilki.
Como outros antivirais para outras enfermidades, é possível que o remdesivir seja mais eficaz no início da doença, antes que o agente infeccioso cause estragos pelo corpo. Mas isso é uma hipótese que carece de comprovação.
O medicamento é aplicado na veia, o que depende de uma ida ao hospital. No mais, ele ainda não é fabricado em larga escala. A Gilead anunciou a doação de todo seu estoque e das doses ainda em produção aos países que aprovarem o uso experimental do princípio ativo. Isso tudo seria o suficiente para o tratamento de 140 mil indivíduos.
Uma espécie de Tamiflu?
Mesmo que o remdesivir se prove eficaz, não resolverá sozinho o problema. “É importante ter em mente que um tratamento ideal não envolve só eliminar o vírus, mas também minimizar os danos que ele causa no organismo e a reação inflamatória desencadeada pela infecção”, realça Spilki. Para contornar essas consequências, aliás, estão sendo testadas outras classes de fármacos, como os anti-inflamatórios e anticoagulantes.
O virologista compara o remdesivir ao Tamiflu, famoso comprimido que atua contra o influenza, o vírus causador da gripe. “Quando ele surgiu, imaginava-se que não teríamos mais nenhuma morte por gripe, mas hoje vemos que o remédio não resolve 100% dos casos”, comenta.
Se realmente os benefícios dessa droga forem comprovados, é provável que, no futuro, ela integre uma espécie de coquetel contra a Covid-19. Cada remédio desse protocolo hipotético atuaria nas diferentes repercussões da doença, de acordo com sua gravidade e com características de cada pessoa.