Gengivite e periodontite: um bate-boca dentro do corpo
Estudos escancaram o elo entre a doença periodontal e males tão distintos como problemas cardiovasculares e quadros graves de Covid-19
Parece banal, mas está longe de ser. É democrática, porém pouca gente dá bola pra ela. E começa na boca, só que pode colocar o corpo todo em perigo. Estamos falando da doença periodontal, que se origina numa gengivite e atinge até 97% da população em seus diferentes níveis de gravidade em alguma fase da vida.
Tudo porque nossa boca é um antro de bactérias que nunca ficam contentes com o que já conquistaram. Se você der espaço, descuidando da higiene e das visitas ao dentista, elas vão pra cima. Despertam um processo inflamatório enganosamente inocente e indolor que, da gengiva, pode se alastrar para o tecido que sustenta os dentes, o periodonto.
E não para por aí! Na boca, a confusão se inicia com sangramentos. Depois não é incomum vir o mau hálito. E, se nada for feito, os dentes amolecem a ponto de cair, num processo que abala a autoestima e a capacidade de se alimentar.
Ocorre que cada vez mais estudos acusam a doença periodontal de semear a discórdia em outras paragens. Se não forem contidos, os micróbios e as substâncias inflamatórias produzidas em resposta a eles caem na corrente sanguínea e aprontam em lugares bem distantes da arcada dentária.
Esse enredo não é coisa rara. “A periodontite é a sexta doença mais prevalente da humanidade”, destaca o dentista Sérgio Kahn, presidente da Sociedade Brasileira de Periodontologia (Sobrape).
Enquanto para a gengivite praticamente não há escapatória — quase todo mundo vai enfrentá-la em algum momento —, a versão estendida e mais grave que ataca o periodonto afeta pelo menos 11% da população mundial, segundo estimativas. “É um problema de saúde pública diretamente associado à redução da qualidade de vida”, afirma Kahn.
E também tem tudo a ver com a desigualdade social e o acesso à informação e a serviços de odontologia. Em 2013, a Pesquisa Nacional de Saúde do IBGE investigou a proporção de brasileiros que já haviam perdido todos os dentes e chegou a uma constatação aterradora: quatro em cada dez cidadãos com mais de 60 anos estavam inteiramente banguelas.
Mas, enquanto o índice de quem havia perdido os dentes ficava em apenas 2% das pessoas com ensino superior completo, ele chegava a 23% dos brasileiros sem instrução ou que não concluíram o ensino fundamental.
Identificar que uma gengivite se instalou ou mesmo se transformou em periodontite não é uma tarefa exatamente simples.
“Pacientes e até profissionais de saúde muitas vezes se referem a tudo como gengivite, porque há inflamação e sangramento, mas não sabem se o dente apresenta mobilidade ou se há tecido ósseo comprometido”, explica a dentista Luciana Scaff Vianna, da Câmara Técnica de Periodontia do Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (Crosp).
Na maioria dos casos, a inflamação na gengiva começa devido ao acúmulo natural de biofilme, a placa bacteriana que pode mineralizar e virar tártaro.
O único jeito de conter esse processo é escovando os dentes e passando fio dental regularmente. Mesmo assim, as bactérias ainda conseguem montar acampamento, reforçando a necessidade de uma inspeção e uma limpeza na cadeira do dentista de tempos em tempos.
Se essa faxina não acontece de forma adequada, os micróbios desatam um círculo vicioso capaz de progredir para quadros severos. “A periodontite é silenciosa. Os sintomas, quando aparecem, já são sinal de que ela está avançada”, alerta Kahn.
A higiene bucal inadequada está indissociável da doença periodontal, mas o fato é que uma predisposição genética pode estar por trás de sua evolução.
Embora a ciência ainda não tenha concluído exatamente até que ponto o DNA determina os riscos de desenvolver a periodontite, recomenda-se atenção redobrada para as famílias em que a perda dental e problemas correlatos atravessam gerações.
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“Quem tem parentes de até terceiro grau que perderam os dentes de maneira precoce deve fazer exames preventivos com maior frequência”, orienta o dentista Giuseppe Romito, professor titular de periodontia da Universidade de São Paulo (USP).
Além dos genes, outras questões, hábitos e condições de saúde são associados à progressão da balbúrdia na boca. “O gatilho em si é a formação da placa bacteriana fora de controle, mas fatores como estresse, tabagismo e diabetes podem piorar as coisas em pacientes mais suscetíveis à doença periodontal”, conta Romito.
Uma vez instalada, a periodontite passa a representar uma ameaça não mais restrita aos dentes. Sem tratamento, sobra para diversos cantos do corpo.
Uma pesquisa recém-publicada no periódico American Journal of Cardiology constatou que pessoas com quadros severos encaravam um risco mais do que triplicado de ter problemas cardiovasculares na comparação com indivíduos com episódios leves.
Na Coreia do Sul, dois estudos populacionais avaliaram a correlação da doença periodontal com outros desagravos pelo corpo. O primeiro apontou forte associação entre a encrenca bucal e o declínio cognitivo em idosos, enquanto o segundo indicou um elo significativo com a osteoporose em mulheres na menopausa.
Viajando para Taiwan, encontramos outra análise recente que traz notícias nada alvissareiras para o sexo feminino. Mas o alerta agora é para as mulheres mais jovens: aquelas com periodontite nos dois anos anteriores a uma gestação enfrentaram uma propensão 11% maior de ter um parto prematuro.
Os especialistas pedem cautela ao se debruçar sobre dados como esses. Isso porque é difícil cravar que a culpa de tais desfechos recaia apenas no problema dental.
“O que temos hoje em termos de comprovação é que a doença periodontal tende a agravar condições sistêmicas. Não é que ela vá causar diabetes ou uma doença neurológica, mas pode piorar o controle desses quadros”, esclarece Luciana.
Trabalhos envolvendo idosos que perderam os dentes são um exemplo clássico da dificuldade de afirmar qual encrenca veio antes: eventuais limitações motoras ou cognitivas podem prejudicar a autonomia para escovar os dentes direito, acarretando a progressão da periodontite.
Mas existem situações em que a ciência tem provas contundentes da participação direta das bactérias bucais em danos a órgãos distantes.
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“O caso mais famoso é o coração. A bactéria pode chegar à corrente sanguínea e, em pacientes mais suscetíveis, causar a chamada endocardite bacteriana”, ilustra Romito. Trata-se de uma infecção que atinge as estruturas internas do músculo cardíaco. Requer internação e cuidados intensivos porque, em casos mais graves, pode levar à morte. E, veja só, tudo começa lá na boca.
Conexões pelo corpo
A doença periodontal já é ligada a uma lista de problemas pelo organismo
- Endocardite
As bactérias podem viajar pela circulação e atingir o coração, causando uma infecção grave no músculo cardíaco. - Infarto e AVC
Os micro-organismos e a inflamação da doença periodontal são capazes de agravar a formação e o rompimento de placas de gordura nas artérias. - Diabetes
A resposta inflamatória da periodontite destrambelha diversos processos no corpo. Um deles é o controle glicêmico. - Câncer
A inflamação sistêmica é acusada de contribuir para o surgimento de tumores. E certas bactérias liberam compostos cancerígenos. - Doenças respiratórias
Os micróbios bucais podem atingir os pulmões e causar problemas ali, principalmente em pacientes intubados.
Não é só a circulação dos micróbios que provoca repercussões perigosas pelo corpo. A própria resposta do organismo à doença periodontal também pode gerar complicações. “Ocorre um aumento nos processos inflamatórios, e isso não fica restrito à boca”, ressalta o professor da USP.
Os estudiosos acreditam que é justamente esse estado de inflamação crônica e sistêmica que interfere no equilíbrio da gestação ou no controle do diabetes — algo que não é exclusivo da periodontite, convém pontuar.
Em tempos (ainda) pandêmicos, esse fenômeno foi ligado até mesmo à Covid-19. Isso mesmo! Pesquisas ao redor do mundo relacionam a doença periodontal a um maior risco de desenvolver complicações pelo quadro viral.
No Catar, um levantamento com 568 pacientes indicou uma incidência até oito vezes maior de mortes naqueles indivíduos infectados que também tinham periodontite.
De novo, é difícil pregar uma relação de causa e efeito, mas os especialistas acreditam que a inflamação fora de controle seria a culpada pela piora da Covid.
Outra hipótese é que as bactérias bucais poderiam prejudicar, de alguma forma, o trabalho dos pulmões, dificultando as coisas para quem já tinha problemas respiratórios ao contrair o coronavírus.
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A periodontite é classificada numa escala de 1 a 4: quanto maior a nota, mais grave a situação. E, no geral, quanto mais severo o quadro, mais complicado fica para os dentes e demais redondezas do corpo.
Entre as conexões mais insuspeitas da doença com outras condições, os cientistas já examinam uma possível participação dela em cenários tão distintos como o ganho de peso e o aparecimento do câncer.
Em relação aos tumores, Luciana, do Crosp, pondera que não é que a periodontite cause o problema, mas, a exemplo do fumo e do álcool, aumenta o risco de desenvolvê-lo, sobretudo na cavidade bucal.
Hoje, um dos desafios dos dentistas é justamente prever quais pacientes com doença periodontal estão mais vulneráveis a uma evolução acentuada com o passar do tempo.
“Toda periodontite vem de uma gengivite, mas nem toda gengivite vai progredir para uma periodontite. Se a gente soubesse o que exatamente provoca essa piora, poderíamos ter um cuidado redobrado com essas pessoas, mas a doença é complexa e multifatorial”, relata Kahn.
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Sem tantas certezas, o melhor caminho, como o leitor deve intuir, é investir na prevenção. Já que tudo costuma ter origem no acúmulo do biofilme microbiano, é preciso eliminá-lo constantemente.
A principal orientação é realizar escovações ao menos três vezes por dia, em sessões de cerca de 2 minutos, com atenção para a parte traseira dos dentes da frente, que costuma ser esquecida e onde a placa bacteriana gosta de se depositar.
O fio dental é outro elemento que não pode faltar — o ideal é passá-lo após a escovação no espaço entre todos os dentes. “Por mais que haja propaganda de escovas que supostamente alcançam essa área, não adianta, só o fio limpa ali de verdade”, avisa Romito.
Já os enxaguatórios bucais são coadjuvantes no processo. Não garantem a limpeza por conta própria. Os dentistas comparam o uso isolado a jogar um balde com água e sabão no chão da cozinha — sem esfregar, não sai a sujeira.
Mesmo com a higiene em dia, a gengivite ainda pode despontar. Predisposição genética, alterações imunológicas, consumo de álcool, tabagismo… Muita coisa influencia.
Por isso, é prudente ficar de olho em algumas pistas de sua presença. “Gengiva não foi feita para sangrar. Se está sangrando, é o primeiro sinal de que existe um problema, que pode ser uma inflamação inicial ou já uma periodontite mesmo”, adverte o presidente da Sobrape.
Além das visitas regulares ao dentista para um check-up bucal, o sangramento emite o alerta para marcar uma consulta fora de época e verificar o que está acontecendo.
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“Muitas vezes, o paciente não procura o dentista porque a doença periodontal tem, na maioria dos casos, uma progressão lenta e indolor. A consulta periódica busca justamente pegá-la no início, quando o tratamento é mais simples”, justifica Romito.
A gengivite tem uma solução relativamente fácil, com a limpeza do acúmulo de biofilme superficial. A periodontite, no entanto, costuma exigir intervenções mais intensas, que envolvem de raspagem a cirurgia — isso sem falar na necessidade de implantes ou próteses para substituir os dentes que se foram. Para evitar que o problema se torne mais sério, não tem bate-boca: continue frequentando o dentista.
O básico da prevenção
Os cuidados para evitar o problema e frear sua progressão
- Escovação
Mantenha esse hábito pelo menos três vezes ao dia. Para limpar sem agredir, opte por escovas com cerdas macias e pasta com flúor. - Fio dental
É fundamental para tirar sujeira de áreas aonde a escova não chega. Passe diariamente, nem que seja antes de dormir. - Enxaguatório
É um coadjuvante: ajuda a retardar o crescimento inevitável da placa bacteriana. Prefira versões sem álcool, que não ressecam a boca. - Visita ao dentista
Consultas periódicas permitem detectar o problema precocemente. E a limpeza profissional, mais potente, desorganiza o biofilme. - Estilo de vida
Pesquisas sinalizam que álcool, cigarro, estresse e má alimentação depõem contra a saúde bucal. Mais uma razão para rever os hábitos.
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