A nitazoxanida, um vermífugo disponível há bastante tempo, protagoniza a mais nova polêmica envolvendo o tratamento precoce do coronavírus. Mesmo sem evidências de eficácia e segurança, há quem recomende seu uso para evitar o agravamento dos sintomas da Covid-19.
“Não existem estudos concluídos em humanos atestando esse benefício. Há apenas pesquisas em andamento”, aponta Sérgio Cimerman, infectologista do Instituto Emílio Ribas.
“Diferentemente da cloroquina, ela se mostrou segura em testes iniciais. Mas ainda não conhecemos sua eficácia contra a Covid-19 e mesmo sua segurança em estudos maiores”, comenta Ricardo Diaz, professor de infectologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Diaz e Cimerman estão conduzindo estudos que tentam verificar a ação da droga contra o coronavírus em gente como a gente. A primeira etapa — chamada de prova de conceito — já foi concluída. Segundo eles, os resultados preliminares sugeriram segurança em um pequeno grupo de voluntários. Mas os dados ainda estão sendo trabalhados (e precisam ser analisados por um grupo independente de especialistas).
De qualquer jeito, a equipe obteve recentemente autorização para iniciar um estudo de fase 3. Esse é um tipo de pesquisa que envolve muito mais voluntários e rigidez metodológica. Só depois dessa investigação que um remédio é considerado realmente seguro e eficaz contra uma doença qualquer. “O ideal é atestar o benefício antes de utilizar na população”, aponta Diaz.
O que é a nitazoxanida
É um composto utilizado há décadas para tratar diversos tipos de parasitas, como amebas e giárdias. Como age de forma ampla, ele passou a ser estudado contra diferentes vírus in vitro – isto é, em células isoladas no laboratório, onde não é preciso controlar dose nem há interferência de outros processos do nosso corpo.
Com a evolução das pesquisas em seres humanos, a nitazoxanida foi aprovada para tratar rotavírus e norovírus, causadores de diarreias. “Um estudo em humanos do tipo randomizado e controlado, considerado o mais confiável, mostra que ela pode diminuir a duração dos sintomas de gripe, indicando uma possível ação contra o influenza”, acrescenta Marcelo Polacow, farmacêutico e vice-presidente do Conselho Regional de Farmácia-SP.
“Existem ainda evidências positivas in vitro contra os vírus da dengue, febre amarela e chikingunya”, lista Edimilson Migowski, infectologista da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Evidências da nitazoxanida contra a Covid-19
O fármaco já demonstrou, de novo em células isoladas no laboratório, frear a replicação viral do Sars-CoV-2 e de um parente seu, o Mers-Cov. “Além disso, ele induz a produção de interferon nos humanos, uma molécula que impediria a entrada do vírus nas células”, aponta Dias.
Estudos anteriores em roedores apontam ainda que esse princípio ativo é capaz de frear a produção de interleucina 6, uma substância inflamatória com papel chave no agravamento da Covid-19. Mas os animais não estavam infectados pelo novo coronavírus.
As pesquisas conduzidas agora avaliarão se essas promessas observadas no laboratório se sustentam em pessoas que comprovadamente contraíram a Covid-19. Contudo, mesmo sem evidências científicas confiáveis, o medicamento vem utilizado por certos médicos brasileiros e inclusive recomendado por algumas prefeituras.
O caso de Volta Redonda
O médico carioca Edimilson Migowski, que há uma década estuda a nitazoxanida, é um dos que defende seu uso antes dos resultados dos estudos de fase 3 em seres humanos. Ele afirma ter tratado 320 pessoas com sintomas leves de Covid-19 em Volta Redonda, no Rio de Janeiro.
Todos começaram a tomar o remédio ao apresentarem os primeiros sinais da infecção, antes de receberem o resultado dos testes. “Ninguém teve reações adversas, precisou de internação ou recebeu oxigênio”, alega Migowski.
Nenhuma dessas informações foi incluída em um estudo registrado e com metodologia definida. De acordo com especialistas, nesse contexto fica complicado estabelecer a veracidade de tais afirmações e mesmo os possíveis benefícios ou limitações do protocolo empregado por Migowski.
Fora isso, nem todos os pacientes tinham diagnóstico confirmado de Covid-19. Só entre 30 e 35% deles, segundo Migowski, testaram positivo para o Sars-CoV-2 com o exame de RT-PCR, considerado o melhor método para isso. Ou seja, não dá pra saber se a maioria dos casos relatados possuía essa enfermidade ou outras encrencas que provocam sintomas parecidos.
Mais um ponto de atenção: não há qualquer comparação do remédio com um placebo. Para isso, um grupo de pessoas deveria tomar um comprimido sem qualquer princípio ativo. Essa é uma etapa fundamental das investigações farmacológicas. “Só assim é possível saber se a melhora ocorreu por causa do remédio ou não”, pontua Cimerman.
O problema em pular etapas
O rigor exige uma dose de paciência, mas é importante. “É nos estudos com humanos que identificamos se uma droga funciona mesmo e se há efeitos colaterais graves”, destaca Polacow. “Nunca recomendamos um medicamento sem comprovação científica de eficácia e segurança”, complementa o farmacêutico.
Até porque mesmo medicamentos já receitados com segurança para uma doença podem causar reações adversas em pacientes com outra moléstia. Polacow e Dias citam o caso da cloroquina, inofensiva para boa parte das pessoas, mas potencialmente perigosa nos portadores de Covid-19. Isso porque pode afetar o coração — e o coronavírus reconhecidamente aumenta o risco de males cardíacos por si só.
O ácido acetilsalícilico, amplamente utilizado na população como anti-inflamatório e analgésico, é outro exemplo. Especificamente em pacientes com dengue, ele eleva o risco de hemorragia.
Até o momento, não há indícios de que a nitazoxanida provoque problemas graves em gente com a Covid-19. Porém, só saberemos se isso é realmente verdade em estudos com milhares de voluntários. Foi dessa forma que alguns problemas mais sérios envolvendo a cloroquina foram identificados.
O tratamento precoce para Covid-19
A estratégia de Migowski está em linha com a proposta do Ministério da Saúde de iniciar um tratamento com medicamentos assim que quaisquer sintomas de Covid-19 forem identificados. Mas, no caso, o órgão recomenda outro medicamento: a hidroxicloroquina (em associação com a azitromicina).
“Não estou incentivando que a pessoa se medique sozinha, mas acho o tratamento precoce melhor do que uma eventual piora do quadro”, opina Migowski.
A Sociedade Brasileira de Infectologia, a Sociedade Brasileira de Pneumonia e Tisiologia e a própria Organização Mundial da Saúde discordam. Essas e outras entidades reforçam que não existe no momento um remédio capaz de conter o avanço do novo coronavírus. E, de novo, uma indicação sem evidência pode sujeitar pessoas a riscos desnecessários.
Mas por que então a maioria das pessoas que engole esse ou aquele medicamento melhora? “Ora, 80% dos casos da doença são leves e melhoram independentemente de você tomar um remédio ou não”, explica Cimerman.
No mais, não dá para atribuir a redução de mortes por coronavírus de uma cidade qualquer a um medicamento sem fazer pesquisas adequadas para justificar essa hipótese. É impossível saber se essa queda veio de qualquer outra medida adotada — ou mesmo se não é temporária ou resultado da falta de diagnóstico.
Além da autoprescrição e das possíveis reações adversas, o tratamento precoce sem comprovação gera uma percepção de segurança que pode não corresponder à realidade. Isso culminaria em atrasos na busca por tratamento adequado e mesmo na exposição a situações de risco. Ora, se eu acho que estou protegido com um medicamento, não precisaria usar máscara ou manter o distanciamento.
Veja Saúde recentemente fez uma reportagem que mostra o que é indicado pela ciência ao manifestar os primeiros sintomas da Covid-19.