A cera de ouvido, tão atacada por cotonetes (e por alguns dedinhos), na verdade merece respeito. Além de proteger as estruturas responsáveis pela audição, o chamado cerume poderia inclusive facilitar o diagnóstico do câncer, segundo um novo estudo da Universidade Federal de Goiás (UFG).
A pesquisa foi realizada dentro do Laboratório de Métodos de Extração e Separação (Lames), ligado ao Instituto de Química da universidade. Os resultados, promissores, foram publicados no periódico Scientific Reports.
Os cientistas coletaram amostras de cera de ouvido de 52 portadores de câncer de diferentes tipos e estágios, que poderiam ou não ter passado por tratamento, e de 50 voluntários sem tumores. Em um primeiro passo, o cerume foi congelado e mantido em um recipiente a 20 graus negativos. A partir daí, passou por um processo de aquecimento, o que faz substâncias batizadas de metabólitos orgânicos voláteis virarem um gás — da mesma forma que a água evapora quando ferve.
Esse vapor, então, foi recolhido por meio de uma seringa e colocado em um equipamento chamado cromatógrafo a gás, capaz de separar diferentes moléculas.
Já divididas, elas foram inseridas em um outro dispositivo, o espectrômetro de massas, que revela qual a composição exata de cada amostra.
“Nós observamos que esses perfis [de substâncias] eram diferentes entre os voluntários. Com base nessas diferenças, conseguimos dizer se uma pessoa está ou não com câncer, inclusive em estágio inicial. Isso é importante, já que há maiores chances de cura quando a doença é diagnosticada nas fases iniciais”, explica, em comunicado à imprensa, o químico Nelson Roberto Antoniosi Filho, coordenador geral do Lames.
Na pesquisa brasileira, 100% dos indivíduos com câncer foram reconhecidos pelo exame de cera de ouvido. Embora ainda longe dos hospitais e consultórios, a técnica chamou a atenção dos especialistas pela inovação e praticidade.
O que a cera de ouvido tem a ver com câncer
A bioquímica Vilma Martins, superintendente de Pesquisas do Hospital A.C.Camargo Cancer Center, em São Paulo, explica que os tais metabólitos orgânicos voláteis — aqueles retirados da cera durante o processo de aquecimento — indicam a presença de radicais livres e defeitos no DNA em células do organismo. E essas alterações são indícios de um tumor maligno.
Dito de outra forma, os metabólitos serviriam como biomarcadores (moléculas que mostram a situação da nossa saúde). Isso não é uma novidade: atualmente, os profissionais de saúde já recorrem a biomarcadores sanguíneos para tentar captar células cancerosas em circulação. A esse procedimento se dá o nome de biópsia líquida.
“Essa abordagem com sangue já é empregada na prática clínica para acompanhar o tratamento de alguns tipos de câncer”, informa Vilma Martins. A novidade foi usar a cera — e usá-la para fazer o diagnóstico primário da enfermidade.
Aliás, Vilma conta que existe uma corrida científica em busca de formas de identificar biomarcadores no corpo para substituir técnicas mais invasivas, como a biópsia tradicional. “A detecção de biomarcadores que denunciam doenças está sendo explorada em suor, lágrimas, fezes, urina, ar exalado e, agora, no cerume”, exemplifica a bioquímica do A.C.Camargo.
De acordo com a especialista, é possível que cada uma dessas secreções contenha biomarcadores que ajudem na identificação de diferentes tumores. Por isso, é necessário explorar todas as possibilidades.
“Especificamente com relação ao cerume, existem poucos dados na literatura ligados ao câncer. Daí o interesse nesse trabalho brasileiro”, comenta Vilma.
O que falta para a descoberta chegar aos hospitais
Com o novo teste, daria para verificar em cinco horas se o paciente tem câncer ou não. “É bastante vantajoso, porque, além de não ser invasivo, praticamente todas as universidades brasileiras possuem a tecnologia adequada e a instrumentação necessária para fazer esse tipo de análise”, pontua o coordenador geral do Lames, ainda em comunicado.
Para o químico, outra vantagem da cera de ouvido é que, em uma pequena quantidade de amostra, há uma alta concentração de compostos. “A análise do cerume consegue identificar 158 substâncias metabólicas. Dessas, 27 discriminam a ocorrência de câncer”, completa.
Na contramão, Vilma Martins lembra que a cera não foi capaz de apontar o tipo de tumor e em qual órgão ele se encontrava. Ou seja, outros exames seriam necessários para confirmar o local de origem do câncer e outras particularidades que influenciam no tratamento.
“Outra crítica importante é a falta de comparação entre o material obtido de pacientes com câncer e o de indivíduos com algum processo inflamatório, que também aumenta a concentração de vários metabólitos orgânicos”, acrescenta.
É por essas e outras que mais pesquisas são necessárias. “Os estudos ainda são preliminares e necessitam de validação”, pondera a bioquímica. Mesmo que tudo dê certo, o uso de um teste à base de cera de ouvido deve demorar alguns anos para chegar aos centros médicos, dependendo do investimento.
Mas, ao que tudo indica, ajuda é o que não vai faltar. Em Goiás, o Hospital Araújo Jorge deseja firmar parceria com a UFG para ampliar as investigações. Em São Paulo, o próprio A.C.Camargo deseja se unir ao trabalho da universidade.