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Do veneno ao remédio: a jornada por um novo tratamento do câncer de mama

Molécula inspirada em toxina de uma cascavel brasileira avança em estudos e pode se tornar medicamento para tumores de mama mais agressivos

Por Diogo Sponchiato
Atualizado em 18 out 2022, 17h09 - Publicado em 18 out 2022, 13h27
outubro rosa
Pesquisas com novas soluções contra o câncer de mama passam pelo Brasil. (Ilustrações: Jonatan Sarmento e Rodrigo Damati/SAÚDE é Vital)
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A promessa de um novo medicamento contra o tipo de câncer de mama mais agressivo deve muito a uma espécie de cascavel que só existe no Brasil. Vem do veneno dessa serpente a inspiração para o desenvolvimento de um tratamento inédito mirando os tumores mamários triplo negativo, que correspondem a 15% dos casos da doença.

Cientistas sabem há anos que uma toxina da cascavel Crotalus durissus terrificus, a crotoxina, tem efeito antitumoral. Mas seu “bote” não se restringe às células do câncer − áreas saudáveis do organismo também podem ser afetadas. A sacada para driblar esse inconveniente e transformar a substância numa candidata a remédio ocorreu no interior de São Paulo.

“Conseguimos modificar a molécula original de forma a reduzir sua toxicidade e ainda potencializar seu efeito terapêutico”, conta o oncologista Eduado Braun, membro do Conselho de Administração da PHP Biotech, startup brasileira responsável pela criação e investigação da droga.

“A crotoxina foi testada no passado em estudos iniciais e demonstrou-se efetiva, porém não seguiu em frente devido à sua alta toxicidade”, contextualiza o médico. Agora a coisa muda de figura…

Primeiro porque a novíssima molécula, chamada por ora de 3-NAntC, é produzida de maneira sintética − o veneno da cascavel brasileira só foi a inspiração e o ponto de partida. Segundo porque ela acaba de passar nas provas dos experimentos feitos em laboratório com culturas de células.

“No momento, estamos desenvolvendo a formulação farmacêutica apropriada para carregar nosso medicamento até o alvo, as células tumorais. Em seguida, já iniciaremos os estudos com o primeiro modelo animal, que são os roedores. Tendo sucesso, e com eventuais ajustes de percurso, evoluímos para pesquisas em animais mais complexos, como primatas”, relata a biotecnologista Patrícia Bezerra, que conduziu os testes pré-clínicos.

A ideia é que toda essa etapa seja concluída até dezembro de 2023, quando começariam os estudos clínicos. A expectativa dos pesquisadores é alta. “Nossos resultados até agora são animadores. A molécula 3-NAntC tem mostrado capacidade antitumoral marcante para o câncer de mama triplo negativo nos ensaios in vitro. Em comparação com os tratamentos já utilizados para a doença, ela se iguala em termos de efeito ao mesmo tempo que não ataca as células saudáveis”, revela Patrícia.

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“Nossos estudos demonstram que a droga age induzindo a morte celular programada e parece impedir o desenvolvimento de metástase com um perfil de toxicidade aceitável”, resume Braun. Em outras palavras, ela estimula as células do câncer a se suicidarem e inibe a capacidade de a doença se espalhar para outros cantos do corpo.

foto de cascavel sobre folha de bananeira
Veneno de cascavel brasileira foi ponto de partida da nova droga. (Foto: GI/Getty Images)

+ LEIA TAMBÉM: Novos tempos no tratamento do câncer de mama avançado

Próximos passos

Moacyr Bighetti, CEO da PHP Biotech, conta que, devido à menor burocracia e à infraestrutura disponível, as novas etapas dos estudos, em animais e depois em humanos, serão realizadas nos Estados Unidos. “Estamos muito animados com as perspectivas, ainda mais tendo em vista quão descoberto do ponto de vista de tratamento está o câncer de mama triplo negativo e quanto as pacientes sofrem com a doença”, diz o executivo.

Se obtiver êxito nas pesquisas com animais, a molécula avança para a fase mais aguardada, o teste em gente como a gente. “O primeiro estudo clínico terá como principal objetivo determinar a segurança da molécula em humanos e avaliar como ela é absorvida, distribuída, metabolizada e eliminada do organismo. Também buscaremos determinar qual é a maior dose do fármaco para produzir o efeito desejado sem gerar uma toxicidade inaceitável”, expõe Braun.

A PHP faz parte do portfólio da MKM Biotech, empresa de investimentos em ciências da vida que auxiliará a healthtech em seu crescimento e estruturação até a chegada ao mercado.

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“Startups têm potencial de impacto não apenas por abraçarem a criatividade e a inovação, mas também porque têm menos amarras de governança e conseguem ser mais rápidas em tomar decisões, realizar testes e lançar soluções. Startups como a PHP Biotech não precisam aprovar orçamento com uma matriz ou entrar numa fila de espera para lançar um produto. Seu foco é única e exclusivamente a paciente com câncer de mama”, comenta o médico Carlos Zago, CEO da MKM.

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Doença desafiadora

Seguindo as estimativas do Instituto Nacional de Câncer (Inca), dá para projetar que quase 10 mil brasileiras são diagnosticadas por ano com o câncer de mama triplo negativo.

“Ele faz parte de um grupo de tumores mais agressivos, com maior chance de se espalhar pelo corpo, e mais comum entre pacientes mais jovens”, conta a oncologista Solange Sanches, vice-líder do Centro de Referência em Tumores da Mama do A.C.Camargo Cancer Center, em São Paulo. 

De acordo com a médica, a doença recebe essa denominação quando, por meio de exames de imunoistoquímica, não se encontram receptores em suas células para estrogênio, progesterona e a proteína HER2, algo que ocorre nos outros tipos de câncer de mama. “Mas sabemos que, do ponto de vista molecular, existem pelo menos seis tipos de tumores triplo negativo”, detalha.

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Diferentemente das outras versões da enfermidade, a família do triplo negativo tem opções de tratamento mais limitadas atualmente. “Como as células desses tumores não têm receptores hormonais, o tratamento é basicamente a quimioterapia“, aponta Solange.

Para os casos que podem ser operados, em que a doença não se disseminou, geralmente se prescreve a químio até mesmo antes da cirurgia. Tudo para minimizar a chance de o problema voltar, o que não é incomum.

A médica do A.C.Camargo explica que, se a doença está restrita à mama, o padrão hoje é aliar à químio a imunoterapia, estratégia que instiga as defesas do organismo a perseguirem o tumor. “Pacientes que fazem a imunoterapia com uma medicação chamada pembrolizumabe têm uma menor taxa de reincidência da doença quando comparadas às que só recebem quimioterapia”, relata Solange.

O problema, no Brasil, é o acesso a esse tratamento mais recente. De acordo com a especialista, a imunoterapia já é coberta pelos planos de saúde, mas, infelizmente, não está disponível no SUS.

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Para as pacientes que, no jargão médico, são chamadas de metastáticas, em que o câncer atingiu outras áreas do corpo, são duas linhas de tratamento: se o tumor apresentar uma proteína conhecida como PDL-1, prescreve-se uma combinação de um imunoterápico (pendralizumabe) com a quimioterapia; se não apresentar a tal PDL-1, parte-se apenas para a quimioterapia.

Uma terceira possibilidade, ensina Solange, se apresenta para casos de triplo negativo que também possuem a mutação genética do BRCA-1 e BRCA-2. Nessa circunstância, a paciente que não tira proveito da imunoterapia pode se submeter também a um tratamento com um medicamento chamado olaparibe, da classe dos inibidores de PARP − algumas pacientes com a doença não metastática e com presença dessa mutação genética seriam candidatas à mesma medicação após a cirurgia, mas a indicação não foi incorporada em bula no país.

A oncologista observa que há restrições de acesso a essas inovações no Brasil. O pendralizumabe não chegou ao SUS. E, apesar dos bons resultados nos estudos com câncer de mama, o olaparibe só é aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para o tratamento da doença no ovário.

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Esperança à vista

É nesse terreno complexo, repleto de nomes científicos, siglas, sofrimentos e desafios, que a molécula da PHP Biotech pretende aterrissar se passar com êxito por todas as fases de estudo até a aprovação pelas autoridades regulatórias. A missão número 1 é encorpar o arsenal terapêutico contra o câncer de mama triplo negativo.

“Nossos estudos nos levam a acreditar que a 3-NAntC também poderá ser usada em combinação com outros tratamentos ou ainda ser usada na fase de manutenção e controle da doença sem piora na qualidade de vida da paciente”, diz Braun. “Os dados iniciais são encorajadores, mas temos que passar por um rigoroso processo científico antes de poder levar a droga ao mercado”, ressalta o oncologista ligado à healthtech.

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A molécula da PHP poderá integrar uma nova categoria de medicações, os anticorpos conjugados à droga. Moacyr Bighetti explica que, para dar estabilidade à substância na corrente sanguínea e ela cumprir seu serviço, os cientistas pretendem acoplá-la a um anticorpo monoclonal, uma espécie de veículo para levá-la até as células tumorais.

Os anticorpos conjugados à droga têm sido destaque nos congressos de oncologia e vêm empolgando especialistas inclusive no contexto do câncer de mama triplo negativo. Solange Sanches conta que um desses fármacos, o sacituzumabe-govitecan, obteve resultados excelentes na contenção da doença. E outro representante da classe, o trastuzumabe-deruxtecan, aprovado no Brasil para o câncer de mama HER2 positivo, poderá engrossar o leque de opções contra os tumores triplo negativo.

Inovações à parte, a médica do A.C.Camargo sublinha a necessidade de ampliar o acesso aos novos remédios (de imunoterápicos a anticorpos conjugados) que estão chegando ao Brasil. O fato é que as mulheres com a doença dependentes do SUS muitas vezes não conseguem desfrutar das terapias de ponta.

Ainda há um longo caminho até a 3-NAntC poder marcar presença na luta contra os tumores mamários. A visão dos envolvidos com essa solução made in Brazil é otimista. “Como oncologista, na linha de frente na batalha contra o câncer, acompanho de perto o benefício que as novas drogas e tecnologias trouxeram aos pacientes nos últimos anos. E tenho a convicção de que tempos melhores estão por vir”, prevê Braun. 

Se tudo der certo, teremos boas notícias no tratamento do câncer − e mais um bom motivo para continuar preservando a nossa biodiversidade.

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