Cerca de 23 milhões de pessoas usam cocaína no mundo, segundo o último Relatório Mundial sobre Drogas, produzido pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC).
A dependência de cocaína é uma condição grave, associada a problemas físicos, psicológicos e sociais, incluindo a disseminação de doenças infecciosas. Conheça a origem da substância, os efeitos nocivos ao organismo, os riscos de overdose e as formas de tratamento.
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O que é cocaína?
A cocaína é extraída das folhas de uma planta chamada Erythroxylum coca, encontrada principalmente nas regiões da América do Sul, como a Colômbia, o Peru e a Bolívia.
Durante séculos (e até hoje), as folhas de coca foram mascadas ou consumidas como chás por populações nativas dessas regiões para aumentar a resistência física e combater a fadiga em altas altitudes, por propiciarem certa adaptação cardiorrespiratória quando usadas dessa forma.
No entanto, a cocaína na forma que conhecemos hoje é um extrato concentrado da planta, e seus efeitos são muito mais intensos e perigosos, como explica o farmacologista Lucas Gazarini, professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
“A cocaína é uma substância estimulante, que causa um aumento temporário na energia, concentração e euforia. É ilícita em grande parte do mundo e classificada como uma droga de abuso devido ao seu alto potencial de causar dependência. Ela já foi usada como medicamento, inclusive em pastilhas para dor de garganta, porque tem efeito anestésico local. Obviamente, esse uso é obsoleto atualmente”, resume o expert.
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Como a cocaína é utilizada?
A forma mais comum é a inalação do pó (cocaína na forma de sal), com absorção pela mucosa nasal.
“Ela também pode ser dissolvida e injetada na corrente sanguínea, como vemos mais comumente acontecer com a heroína. O uso injetável faz o efeito ser mais rápido, mas essa forma é menos utilizada porque exige um ‘preparo’ mais complicado. Outra maneira muito comum é fumar, na forma conhecida como ‘crack’“, detalha o professor.
Cada uma dessas formas de uso influencia a velocidade com que a droga faz efeito e a sua intensidade. Vale destacar que todas apresentam riscos graves para a saúde. O preço também varia: a cocaína isolada, na forma de pó, é muito mais cara que o crack, porque o isolamento a partir da planta é bastante trabalhoso.
“O crack, ao contrário, é um ‘intermediário’ da produção da cocaína pura, que contém a cocaína e uma série de outros compostos envolvidos no processo de isolamento e refino. Isso também faz com que o uso da droga pura seja mais comum em países mais ricos — ou por pessoas com mais dinheiro, mesmo no Brasil”, pontua Gazarini.
Como a cocaína atua no organismo?
A cocaína age principalmente no sistema nervoso central, afetando os neurotransmissores — substâncias que transmitem sinais no cérebro. O professor da UFMS detalha que os neurônios liberam esses neurotransmissores para transmitir informações entre células, mas acabam recaptando-os quando a sinalização não é mais necessária.
“Em particular, a cocaína bloqueia a recaptação da dopamina, um neurotransmissor ligado ao prazer e à recompensa. Isso faz com que os níveis de dopamina aumentem muito rapidamente, o que leva a sensações de euforia, energia e maior autoconfiança. Isso também gera uma resposta muito intensa de prazer, que justifica a intenção de uso repetido da substância”, explica.
O acontece no cérebro todo, mas esses efeitos “prazerosos” são especialmente gerados pelo aumento da dopamina no núcleo accumbens, uma região do cérebro conhecida como “área do prazer” ou “via da recompensa”, que faz parte do circuito emocional (sistema límbico).
Essa região é ativada por vários estímulos que naturalmente causam prazer, como se alimentar e fazer sexo. Por isso, a cocaína “usurpa” o sistema natural de recompensa, gerando uma sensação de prazer por meios artificiais.
No entanto, ao afetar também outros neurotransmissores (como a noradrenalina) a cocaína causa uma sobrecarga do sistema nervoso, aumentando a frequência cardíaca, a pressão arterial e a temperatura corporal. Isso pode resultar em sangramentos, arritmias e, em casos extremos, levar a infartos e acidente vascular cerebral (AVC).
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Quais são os efeitos da cocaína no organismo?
Os efeitos imediatos do uso da cocaína incluem aumento de energia, excitação, euforia e sensação de autoconfiança. A pessoa também pode sentir redução do apetite e aumento da atenção.
“A euforia costuma ser passageira e, em seguida, surge o ‘rebote‘, ou seja, a pessoa se sente cansada, irritada e deprimida. Freud chegou a considerar o uso de cocaína para ‘tratar’ depressão, por conta desse efeito euforizante, mas esse uso foi descartado justamente pelo efeito rebote que surge pouco tempo depois do uso”, afirma Gazarini.
Essa estimulação do sistema nervoso também pode resultar em psicose (perda de contato com a realidade), uma das causas comuns para os usuários buscarem atendimento em saúde.
Os outros efeitos imediatos costumam atingir o sistema cardiovascular, com aumento da pressão arterial e taquicardia.
“Por isso, mesmo o uso imediato pode causar complicações graves, como arritmias e convulsões, por excesso de excitabilidade do sistema nervoso e aumento da temperatura corporal, e até parada cardíaca, uma das formas mais comuns de morte por overdose de cocaína”, alerta Gazarini.
Os riscos do uso prolongado de cocaína e da dependência
O uso prolongado de cocaína pode trazer uma série de consequências graves para o organismo.
A pessoa pode desenvolver dependência, já que o cérebro se adapta ao excesso de dopamina, se tornando mais resistente aos efeitos desse neurotransmissor em quantidades normalmente presentes no organismo, um mecanismo conhecido como tolerância.
“Também por esse mecanismo de adaptação, o usuário pode desenvolver quadros de apatia e depressão, que são as consequências psicológicas mais comuns. Por isso, a pessoa precisa de doses cada vez maiores para sentir os mesmos efeitos prazerosos de antes, escalonando o uso da droga. Aí surge a fissura, que é uma necessidade absurda, uma compulsão, para usar a droga novamente”, frisa o professor.
O farmacologista destaca que o crack causa todas essas consequências de maneira mais rápida, devido ao início imediato dos efeitos, que também acabam em menos tempo, fazendo o indivíduo usar a droga com mais frequência.
Dependendo de fatores genéticos e ambientais, para algumas pessoas a cocaína pode, a longo prazo, servir como gatilho para o desenvolvimento de esquizofrenia, com quadros psicóticos duradouros ou permanentes.
No cérebro, além dos quadros depressivos e ansiosos, a droga pode impactar aprendizado e memória. As ações cardiovasculares podem resultar em hipertensão, arritmias, parada cardíaca e acidente vascular cerebral, mesmo em pessoas jovens.
O uso por aspiração ou fumo traz prejuízos às vias respiratórias. A versão em pó, quando inalada, pode causar lesões na região da boca e nariz, com perfuração do septo nasal e palato, sangramentos e infecções.
Quando fumada, a substância pode irritar as vias aéreas, causar danos aos pulmões e predispor doenças crônicas, como bronquite e doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC). “O usuário também pode se tornar imunossuprimido, com maior risco de infecções, em geral”, alerta o farmacologista.
O consumo da droga durante a gravidez pode provocar enxaquecas e convulsões, além de aborto espontâneo e parto prematuro. Crianças expostas durante a gestação geralmente nascem antes do tempo ideal, com baixo peso e menor circunferência da cabeça.
Por fim, talvez as consequências mais amplas sejam as sociais e pessoais, como os conflitos familiares, dificuldades no trabalho, problemas financeiros e, em alguns casos, questões legais.
“Nesse sentido, a cocaína é uma droga que traz grande impacto ao indivíduo, mas também a toda a rede social no entorno dessa pessoa, especialmente familiares e pessoas próximas”, conclui.
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Overdose de cocaína pode levar à morte
A overdose não se trata apenas do consumo de grandes quantidades, mas sim de volumes variáveis que sejam capazes de intoxicar ou tirar a capacidade de reação de uma pessoa.
Em geral, a overdose de cocaína envolve consequências como:
- Batimentos irregulares do coração
- Derrame
- Parada cardíaca
- Convulsões
- Dificuldade para respirar
- Acidentes relacionados à perda da capacidade de raciocínio
- Perda da consciência
Tratamento e reabilitação
Embora a cocaína apresente grande risco de causar dependência, ainda não existem protocolos clínicos para o tratamento farmacológico. No entanto, compostos têm sido estudados ao longo dos anos.
O anticonvulsivante topiramato, por exemplo, mostrou resultados iniciais contra a dependência química pela substância em trabalhos publicados nos periódicos The American Journal on Addictions e JAMA Psychiatry.
Em testes com animais, cientistas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) encontraram resultados promissores do uso do antibiótico doxiciclina no tratamento de transtornos por uso de substâncias.
Enquanto isso, a psicoterapia permanece na linha de frente do cuidado aos usuários.
A terapia cognitivo-comportamental (TCC) ajuda no desenvolvimento de habilidades críticas que apoiam a manutenção da abstinência. Reconhecer os principais gatilhos que levam ao uso, por exemplo, é uma forma de evitar essas situações.
Outra metodologia é o gerenciamento de contingência, também chamado de incentivo motivacional. Os programas envolvem a oferta de recompensas como vouchers ou prêmios para aqueles que mantêm a abstinência.
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