Ao nascer, a Bela Adormecida foi alvo de uma maldição terrível. Uma fada invejosa disse que, quando fizesse 15 anos, a princesa sofreria um corte no dedo e, na sequência, dormiria sem interrupção durante o século seguinte. E assim foi: “Ela se espetou, caindo imediatamente num sono profundo […] E então tudo começou a adormecer: os cavalos no estábulo, as pombas no telhado, os cães no pátio, as moscas nas paredes…”, escrevem os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, numa versão da história datada de 1812. A praga sobre o reino só se desfez graças ao beijo que um príncipe deu na garota. Bastou esse ato para que todos ao redor do castelo acordassem e, como dizem os contos, vivessem felizes para sempre.
Curiosamente, vivemos em um mundo que é exatamente o oposto ao da Bela Adormecida. Na vida real de 2020, ninguém está conseguindo pregar os olhos. A causa, porém, é outra: quem nos assombra é um vilão de verdade, mas microscópico. O coronavírus que brotou na China no final de 2019 provoca a maior crise de saúde pública das últimas décadas, com milhões de casos e centenas de milhares de mortes. E, entre o medo do imponderável e tantas mudanças impostas à sociedade, a pandemia fez nosso sono ir para o brejo. Não sou só eu nem você ou nossos conhecidos que notamos isso. A ciência já percebeu.
Mas sejamos honestos: nossas noites já não iam tão bem antes de a Covid-19 virar pesadelo global. As estatísticas mostravam que ao menos um terço da população da capital paulista, por exemplo, não dormia adequadamente desde alguns anos atrás. No entanto, a situação se acentuou e ganhou tons dramáticos a partir de março de 2020. É o que comprova um novo levantamento do Instituto do Sono, em São Paulo, que colheu informações de 1 738 participantes. Os resultados, divulgados em primeira mão por VEJA SAÚDE, revelam que 55,6% dos respondentes alegaram piora na qualidade do sono ao longo desses meses de quarentena (92% fizeram isolamento social por algum período).
“Quando perguntamos os motivos, as respostas comuns foram o fato de ficar mais tempo em casa, uso excessivo de telas de computadores ou celulares e as preocupações com toda a situação”, contextualiza a psicobióloga Monica Andersen, diretora do instituto e uma das coordenadoras do projeto. Surpreendentemente, 8,9% dos participantes consideram que o descanso noturno melhorou depois que o coronavírus virou manchete. Entre as razões, destacam-se a rotina flexibilizada e a possibilidade de acordar um pouco mais tarde. Em toda regra há exceções.
Essa não é a única pesquisa a apontar tal tendência no país. A pedido da farmacêutica Takeda, o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) entrevistou 2 635 brasileiros entre os dias 16 e 30 de março. Utilizando o Índice de Pittsburgh, uma ferramenta validada cientificamente para avaliar o descanso noturno, a conclusão foi que 65% dos participantes apresentavam uma qualidade de sono comprometida. O problema se agravava entre as mulheres: 71% delas não estavam conseguindo se recompor como gostariam. “Vale destacar que os dados foram colhidos em março, quando a pandemia estava começando a evoluir no país, e as pessoas eram contaminadas por uma sensação de medo”, observa o cardiologista Luciano Drager, vice-presidente da Associação Brasileira de Medicina do Sono.
As crianças parecem ser um grupo particularmente afetado por esse caminhão de mudanças provocadas pela Covid-19. “Se compararmos os dados da população infantil, vemos que ocorreu um aumento muito grande nas alterações de sono”, relata a neurologista Magda Lahorgue Nunes, vice-diretora do Instituto do Cérebro da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Numa pesquisa conduzida pela médica em 2017, cerca de 25% das crianças apresentavam dificuldades para adormecer. Essa porcentagem praticamente dobrou nesses meses de 2020. “A perda da rotina e dos compromissos diários parece ser o principal fator por trás disso”, destaca Magda.
Pelos próximos minutos, pedimos a você que fique atento (e acordado), caro leitor: nos blocos a seguir, conhecerá em detalhes os principais inimigos da tranquilidade noturna e como desarmá-los. Se nos lembrarmos de todos os males causados pela privação do sono (de depressão a infarto), ficaremos também mais conscientes da importância de zelar pelo momento de botar a cabeça no travesseiro e sonhar…