O cenário da dor
Fernando Pessoa já admitia: “O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente”. O famoso escritor português condensou, nesses quatro versos, a mais aflitiva e democrática manifestação de que algo não vai bem no corpo humano. Uma experiência pela qual todo mortal irá passar e que, tantas vezes, se torna um suplício crônico. Pois saiba que não é exagero poético afirmar que a humanidade, mais precisamente os brasileiros, anda cada vez mais dolorida. Que o diga um levantamento inédito feito pela área de Pesquisa e Inteligência de Mercado da Editora Abril em parceria com a empresa MindMiners, encomendado por SAÚDE.
Mais da metade dos 700 participantes do estudo reclama de dores constantes nas costas ou na cabeça. “Estamos falando de uma condição com enorme repercussão para o indivíduo, a sociedade e a economia”, analisa a anestesiologista Fabíola Peixoto Minson, do Centro Integrado de Tratamento da Dor, em São Paulo. Que fique claro: uma coisa é sentir dor depois de um esforço físico ou uma pancada. Outra, bem diferente, é esse martírio se perpetuar por meses ou anos. “Por motivos ainda desconhecidos, na dorcrônica o organismo continua emitindo informações de que algo está errado”, explica a bióloga Camila Dale, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP).
A saída comum para abreviar o sofrimento são os remédios – na pesquisa, 62% disseram engolir comprimidos antes de consultar o médico. Ora, boa parte de analgésicos e anti-inflamatórios pode ser comprada sem receita na farmácia. “Só que o uso incorreto dessas drogas pode mascarar sintomas de um problema grave e causar danos em rins, fígado e coração“, alerta a anestesiologista Alexandra Raffaini, da Sociedade Brasileira de Médicos Intervencionistas em Dor. Segundo a consultoria IMS Health, quatro dos dez fármacos mais vendidos no Brasil são justamente para tratar a dor. Numa parcela dos casos, porém, ela não vai embora.
Além dos remédios
Lamentamos informar, mas a maioria dos remédios não funciona a contento quando a dor é do tipo corriqueiro. Esse fracasso foi escancarado por uma nova revisão do Instituto George para a Saúde Global, na Austrália. Os experts avaliaram dados de 6 mil voluntários incluídos em 35 trabalhos com o propósito de testar o poder dos anti-inflamatórios. A conclusão mostra que só um em cada seis sujeitos obtinha algum alívio. “Passei 20 anos prescrevendo fármacos e nunca consegui uma resposta sustentável. Entramos agora numa era em que a medicina está mais focada no estilo de vida equilibrado”, contextualiza o neurologista Pedro Schestatsky, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Se comprimidos, sozinhos, não silenciam as manifestações dolorosas de uma vez por todas, onde deveríamos depositar nossas esperanças? A aposta recai sobre um esforço conjunto entre médicos, fisioterapeutas, psicólogos, educadores físicos e nutricionistas. A ideia é lançar mão de diversas técnicas e mudanças na rotina que, juntas, farão as pontadas atenuarem ou sumirem. “Hoje não dá pra imaginar o combate às dores crônicas sem o auxílio de vias não medicamentosas, ajustes na dieta e prática de exercícios“, atesta o reumatologista José Eduardo Martinez, da Sociedade Brasileira de Reumatologia.
Atenta a essa tendência, uma equipe liderada pelo Centro Nacional de Saúde Complementar e Integrativa dos Estados Unidos (NCCIH, na sigla em inglês) investigou quais terapias alternativas (massagem, acupuntura, meditação…) apresentavam o maior impacto na redução das dores mais prevalentes: nas costas, na cabeça, no pescoço e nos joelhos. “Esses quadros são a razão mais comum de se buscarem novas formas de tratamento. Daí a importância de saber quais estratégias dão certo”, diz o epidemiologista Richard Nahin, principal autor do documento. Você confere mais abaixo as estratégias que demonstraram provas sólidas de eficácia.
Tratamento integrativo
As terapias alternativas, como as analisadas pelo NCCIH, têm uma vocação para atuar no cérebro e em sua rede de nervos e reequilibrar o bem-estar mental. Assim, aplacam o estresse além da conta, um dos gatilhos e alimentos da dor crônica. “Mais do que isso, esses métodos alteram a fisiologia do sistema nervoso, a fabricação de hormônios e a frequência cardíaca, fatores que influenciam na intensidade dos desconfortos”, explica a fisioterapeuta Juliana Barcellos de Souza, diretora da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor.
É lógico que, para o tratamento ser útil, o diagnóstico correto torna-se imprescindível. “O médico precisa avaliar o paciente, esquadrinhar sua história clínica e, se necessário, pedirá exames para apurar melhor a causa da dor“, conta o reumatologista Sebastião Radominski, da Universidade Federal do Paraná. Até porque existem muitas doenças por trás de uma espetada frequente e limitante – pense em um tumor comprimindo os nervos da coluna, por exemplo. Só uma investigação detalhada conseguirá flagrar a encrenca e orientar a escolha do tratamento ideal – no caso de um câncer, de nada adiantaria fazer ioga, massagem ou meditação sem apelar a recursos específicos contra a enfermidade.
No rol das mudanças de estilo de vida, a alimentação vem ganhando papel de destaque. Em primeiro lugar, ajustes no cardápio promovem a perda de peso, e a obesidade, por si só, eleva os níveis de substâncias inflamatórias e patrocinadoras da dor na circulação sanguínea. Em segundo lugar, os quilos extras sobrecarregam as juntas. “Perder 5% do peso já derruba em até 90% a progressão de males nas articulações”, calcula Radominski. Por fim, a qualidade da comida que ingerimos também regula a flora intestinal, o conglomerado de bactérias que habita o aparelho digestivo e ajuda a manter nossa saúde em dia. “Sabemos que uma dieta desequilibrada estimula os micro-organismos a secretarem toxinas que agravam o quadro”, diz Schestatsky.
Diminuindo o incômodo
Convém esclarecer que os comprimidos contra a dor não devem ser relegados ao esquecimento. Dentro de um programa integrado e com acompanhamento, os remédios têm hora e vez. “Eles servem para tirar o paciente da crise e permitir que ele exerça suas atividades”, ressalta Fabíola. Além dos anti-inflamatórios e dos opioides, duas das classes medicamentosas mais populares, antidepressivos e anticonvulsivos, podem ser prescritos para calar casos mais difíceis de controlar. O objetivo dos médicos é combinar e potencializar a ação das drogas e utilizá-las pelo menor período possível. Preste atenção: a indicação e a manutenção do tratamento dependem do doutor. Nada de se automedicar.
Mesmo quando esse arsenal falha, ainda há meios de atenuar a aflição. Diversas cirurgias corrigem ossos, tendões e cartilagens. Procedimentos minimamente invasivos instalam eletrodos para bloquear ramos do sistema nervoso que entraram em parafuso. Aliás, a ciência evolui a passos largos e dá pistas de que teremos boas notícias no futuro. Além de novos princípios ativos, técnicas como a estimulação transcraniana, que joga feixes eletromagnéticos em áreas específicas do cérebro, e aplicações de laser para conter o processo inflamatório vêm sendo aperfeiçoadas nos últimos anos.
A única coisa que não tem cabimento é viver sofrendo. Algumas análises indicam que as pessoas demoram, em média, cinco anos para procurar ajuda especializada. É tempo demais! “Qualquer sintoma que desorganize sua vida merece ser investigado para acharmos uma solução”, reforça Martinez. Lembra o poema lá do início do texto? Fernando Pessoa segue em frente: “E os que leem o que escreve/ Na dor lida sentem bem/ Não as duas que ele teve/ Mas só a que eles não têm”. Entender a razão de existir de uma dor e aprender a melhor forma de silenciá-la permanece o conselho mais moderno para vencer esse mal que assombra tanta gente – no corpo e na alma.