A monotonia que alimenta o colapso do planeta
Às vésperas da COP30, novo livro traz evidências do impacto do sistema agroalimentar no ambiente e defende que uma transição é possível
Nosso modo de produzir e consumir comida é uma das principais causas da crise ambiental, considerada o maior desafio já enfrentado pela humanidade, que vai além das mudanças climáticas: inclui danos ao solo, à biodiversidade, ao fornecimento de água e à saúde humana.
E não se trata de um problema só da agricultura, da indústria alimentícia ou das escolhas que fazemos à mesa. Essas coisas estão conectadas, em uma complexa teia batizada pelos cientistas de sistema agroalimentar.
Mudar esse cenário exige, então, ações integradas nessas três frentes. A mais importante delas é combater a chamada tríplice monotonia do sistema. É o que defende o recém-lançado livro Caminhos Para a Transição do Sistema Agroalimentar: Desafios para o Brasil (Editora Senac – Clique para comprar).
Organizada por Arilson Favareto e Ricardo Abramovay, ambos pesquisadores da Cátedra Josué de Castro, da Universidade de São Paulo, a obra mostra evidências científicas da insustentabilidade do modelo atual de produção de alimentos.
Em entrevista à VEJA SAÚDE, Favareto, que também é o atual professor titular da Cátedra, destaca os pontos principais sobre a transição:
VEJA SAÚDE: O que é a tríplice monotonia apresentada no livro?
Arilson Favareto: A primeira dimensão é a produção de grãos, com uma área cada vez maior dedicada à monocultura de poucas espécies, principalmente soja, com efeitos significativos na qualidade do solo e na biodiversidade.
E boa parte dessa soja não é produzida para consumo humano direto, o que nos leva à segunda monotonia, a da produção de animais. São milhares de animais, todos iguais, confinados em pouco espaço, o que gera sofrimento e facilita a propagação de doenças. Como eles têm uma genética muito parecida, a vulnerabilidade de um é a vulnerabilidade de todos.
E a terceira é a monotonia alimentar. Essa produção toda baseada na homogeneização se traduz numa oferta cada vez mais limitada de alimentos saudáveis e um consumo maior de ultraprocessados, com uma série de consequências para a saúde humana.
Que consequências são essas?
Para aumentar a produtividade, o sistema agroalimentar se distanciou das suas bases naturais nas últimas décadas. Ele apostou fortemente na artificialização, com consequências ambientais muito grandes. E ele se afastou também da saúde humana.
Ou seja, a oferta de alimentos aumentou, mas não necessariamente de alimentos que fazem bem. Então a gente tem ao mesmo tempo uma diminuição da fome e um aumento da obesidade e de doenças crônicas não transmissíveis comprovadamente associadas ao padrão alimentar.
Além disso, hoje o modelo de produção animal exige o uso cada vez maior de antibióticos, e a Organização Mundial da Saúde tem a resistência antimicrobiana como uma das suas principais preocupações. Porque o risco disso transbordar e virar contaminação de humanos é grande.
E todo mundo já ouviu falar alguma vez de doenças virais que começaram em criações animais, como a gripe suína, gripe aviária, etc. Então nós estamos ficando cada vez mais vulneráveis e expostos a esse risco, que tem muito a ver com a maneira como se cria animais para abate.
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Se diz que o sistema atual é necessário para alimentar a todos. Isso faz sentido?
O principal argumento usado para manter esse padrão é dizer que o mundo vai continuar crescendo e que precisamos aumentar a oferta de alimentos. Mas não é bem assim.
A população mundial está crescendo em uma velocidade muito menor do que no século passado, e deve se estabilizar em torno de 11 bilhões de pessoas. Se no século passado quase quadruplicou, nesse não vai sequer dobrar. Ou seja, nós vamos ter praticamente a mesma quantidade de gente para alimentar, mas a capacidade de produzir alimentos não vai parar, ela só aumenta.
Então, é como se eu tivesse uma mesma quantidade de pessoas para comer um bolo, mas o bolo vai continuar crescendo. O problema não é mais quantidade, e sim a distribuição e a qualidade deste bolo. Já temos comida suficiente para todos, mas ela não chega a quem precisa, ou porque as pessoas não têm acesso, ou porque está mal distribuída.
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O livro aponta que o modelo atual é insustentável. Baseado em que evidências?
Nós temos dados muito claros sobre isso. Se a gente colocar na conta todos os custos diretos e indiretos do sistema agroalimentar, eles já são maiores do que o valor de tudo que é produzido. Há relatórios da ONU e estudos conduzidos por cientistas ambientais mostrando que a conta não fecha.
Além disso, os dados mostram que o uso de fertilizantes, agrotóxicos e antibióticos cresce muito mais rápido do que a produção. Ou seja, estamos entrando num ponto de inviabilidade: para manter os mesmos resultados, precisamos usar quantidades cada vez maiores desses insumos. Os produtores estão sendo asfixiados por esse aumento dos custos.
Alguns autores dizem que a gente tem nove limites planetários, que são sensíveis para que o ecossistema global continue prestando aqueles serviços que são fundamentais para a vida humana. E nós já ultrapassamos sete desses limites. Para todos esses, a contribuição do sistema agroalimentar é muito grande.
O resultado é que o sistema está se tornando insustentável ambientalmente, sanitariamente e economicamente.
Se é assim, como esse modelo se sustenta a ponto de ser visto como única alternativa?
Porque os custos são transferidos de maneira oculta para a sociedade, por meio de subsídios e gastos que o governo tem para reparar problemas gerados pela forma como produzimos, problemas de saúde humana, etc.
Mas o maior componente é o peso político, porque o poder econômico [do agronegócio e da indústria alimentícia] é convertido em poder político. A gente tem uma disputa muito grande e desigual sobre as regras do jogo.
E há ainda uma disputa dentro da própria ciência. Existem setores que tentam relativizar os impactos do sistema agroalimentar, falando, por exemplo, em “ultraprocessados do bem” ou atacando a classificação NOVA [que cunhou o termo ultraprocessados]. Mas as evidências estão cada vez mais do lado dos críticos do modo de produção atual.
Mesmo assim, é importante notar que o Brasil está na vanguarda global da nutrição graças aos estudos sobre ultraprocessados. E conseguimos avanços como o Guia Alimentar para a População Brasileira e as discussões sobre a rotulagem de alimentos. Já há também adesão a práticas agrícolas mais sustentáveis, como os bioinsumos, mas elas ainda não são predominantes.
Quais são os principais danos do modelo atual para o meio ambiente? E qual a relação com a crise climática?
A relação é direta. Sempre que se fala em mudança climática, a primeira coisa que vem à mente é a transição energética, mas o sistema agroalimentar também é central. Ele é responsável por quase um terço das emissões globais de gases de efeito estufa.
No Brasil, essa proporção é ainda maior: cerca de três quartos das nossas emissões estão ligadas direta ou indiretamente ao sistema agroalimentar.
Além das emissões, há os impactos sobre a biodiversidade, a contaminação dos solos e da água com o uso excessivo e crescente de fertilizantes e agrotóxicos. É uma corrida contra a natureza em que todo mundo perde.
Soluções tecnológicas, como a carne de laboratório ou carne “plant-based”, são viáveis para aumentar a oferta de proteína e reduzir os impactos da pecuária?
Em primeiro lugar, é preciso cuidado com essa ideia de que a gente tem que aumentar indistintamente a oferta de proteínas, em especial as de origem animal. Primeiro, porque não existe déficit proteico global, como se costumava dizer. A maioria das populações já consome proteína suficiente.
Segundo, porque essas tecnologias estão inseridas na mesma lógica de ultraprocessamento da comida e já estão nascendo controladas por grandes corporações, então podem intensificar a desigualdade social, que é outro grande problema.
Terceiro, os custos de produção da carne de laboratório são muito altos e tendem a continuar sendo altos por um tempo, inclusive o gasto energético.
Por fim, não acho que devemos apostar nisso porque existem outras tecnologias que são mais promissoras do ponto de vista dessa reconciliação entre o sistema agroalimentar, a saúde e o meio ambiente.
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