Há alguns meses, escrevi uma extensa reportagem sobre o perigo das terapias alternativas sem comprovação científica. Entre elas, o reiki. Não porque ele em si seja perigoso (afinal, trata-se de uma imposição de mãos), mas porque apostar em algo do tipo pode impedir o acesso a um tratamento que realmente funcione.
Imagine a cena: a pessoa tem uma dor de estômago que julga ser psicossomática ou desencadeada por estresse. Aí faz umas sessões de reiki e melhora por conta do efeito placebo, que realmente libera substâncias capazes de diminuir a dor. Meses depois, a dor volta – e pior. Era, na verdade, um câncer, que poderia ter sido diagnosticado mais cedo.
Além disso, gasta-se dinheiro público com a “terapia”, tanto oferecendo-a no Sistema Único de Saúde (SUS), quanto tentando provar que ela tem alguma utilidade. A mais recente empreitada do tipo vem da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Sim, a mesma que salvou vidas na pandemia ao apostar na ciência.
A pesquisa, divulgada via comunicado de imprensa e não disponível em periódicos científicos, foi realizada na Escola Nacional de Saúde Pública, entre março de 2020 e dezembro de 2021. Diante da pandemia, a ideia era avaliar os efeitos do reiki à distância, pelo celular, combinado a uma escuta terapêutica, em oito mulheres com depressão diagnosticada.
No fim do período, os autores concluíram que a intervenção levou a melhora do sono, do bem-estar, das relações familiares, além de diminuição da ansiedade e da tristeza. Algumas pacientes chegaram, inclusive, a deixar de tomar as medicações psiquiátricas.
Ótimo, né? Só que tem um monte de problemas no estudo. Em primeiro lugar, se faltam evidências de que seja possível trocar energias por meio da imposição de mãos, imagine com a emanação à distância? Ou seja, a pesquisa parte de um pressuposto que não faz muito sentido.
Outro ponto é o tamanho da amostra e a metodologia do estudo. Ele foi feito com apenas oito voluntárias, um número muito pequeno para tirar qualquer conclusão. Também não havia um grupo controle, aquele que recebe um placebo ou nenhuma intervenção para fins comparativos.
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E havia um componente crucial para a melhora: o terapeuta não apenas fazia reiki, mas oferecia uma escuta acolhedora às pacientes. Isso, como vários estudos sérios mostram, é crucial no tratamento de desordens psiquiátricas.
Mesmo diante disso, os autores concluem: “Como análise crítica, recomendamos que é necessária a oferta de reiki para um maior número de usuários atendidos pelos serviços de saúde mental e a longo prazo para que a efetividade dos resultados possa ser melhor estabelecida”.
Aí, fica a pergunta: um estudo como esse é o suficiente para chegar a uma conclusão deste porte?
Se faz bem ao espírito, por que não?
Na maioria das vezes, e dentro da própria lógica do SUS, a ideia dessas estratégias é buscar algum tipo de bem-estar e alívio emocional. Ou seja, não atacar o problema fisiológico em si, mas cuidar da pessoa como um todo.
É o apelo das terapias holísticas, que têm crescido em popularidade por atender a essa dimensão “espiritual” do indivíduo.
Verdade que estudos mostram que trabalhar a espiritualidade pode ter resultados positivos no desfecho de doenças, e essa é uma demanda antiga dos pacientes. Minha intenção não é atacar ou desmerecer as crenças de ninguém; cada um é livre para escolher terapias e buscar conforto mediante um problema de saúde.
O problema é alçar os rituais ao status de tratamentos.
Fora que, com definições tão distintas e disputadas por diversas correntes, espiritualidade é hoje um significante vazio: algo que pode significar tudo e acaba não significando nada.
Por isso, se tornou uma espécie de guarda-chuva onde cabe qualquer coisa, incluindo picaretagens sem comprovação científica. O advento da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) é um exemplo disso.
Hoje abrangendo quase 30 práticas, a PNPIC garante que o município contrate, com verbas públicas, profissionais para fazer de leitura de íris à constelação familiar, passando pelo próprio reiki. A política é alvo de críticas por falta de critérios técnicos na escolha e na aplicação dessas estratégias, boa parte delas pseudociências.
Medicalização da espiritualidade pode ser perigosa
Por coincidência, o estudo do reiki chegou até mim quando estava lendo um livro fora da minha área de cobertura. Como jornalista de saúde, tenho certa facilidade em ler estudos e navegar pelas ciências biológicas. Mas quando o assunto são as ciências sociais… Esquece!
Por isso, foi um baita desafio encarar Espiritualidade Incorporada (Zouk), do antropólogo Rodrigo Toniol, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A obra, recém-lançada, analisa a transformação da espiritualidade em dimensão da saúde humana, uma tendência crescente no Brasil e no mundo.
Durante o século 20, diversos movimentos levaram a essa nova definição, incluindo muito lobby de diferentes religiões, e o aspecto espiritual do ser humano passou a constar em protocolos da Organização Mundial de Saúde (OMS) e políticas de saúde pública.
Na disputa pela conquista desse novo filão, diversas práticas têm se tornado mais frequentes em centros de saúde pública e privada, mesmo sem estudos de qualidade sobre seus benefícios para a saúde.
Toniol passou sete anos pesquisando o assunto, com diversas incursões em campo, observando na prática como essas terapias são aplicadas e seus efeitos. Seu olhar de antropólogo acrescenta uma camada importante nessa discussão, que não pode ser entendida somente sobre o “preto no branco” da medicina e das ciências biológicas.
Na entrevista a seguir, ele compartilha conosco alguns de seus aprendizados:
VEJA SAÚDE: O que você pensa dessas tentativas de conferir benefícios clínicos ao reiki, como foi feito nesse estudo?
Rodrigo Toniol: Os estudos que existem sobre o reiki são frouxos, como esse, e provam muito pouco sobre eficácia. Tudo que existe é muito obscuro e controverso. Mesmo assim, o que acaba acontecendo é que eles legitimam o reiki.
Não que ele não tenha seus aspectos positivos, uma vez que oferece uma forma de escuta e atenção ao paciente, então você consegue dar uma atenção primária sem medicalizar questões emocionais. E de um jeito barato.
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Mas essa conversa muda quando estamos falando de políticas públicas. Não se trata de uma escolha individual, o que vemos é a prescrição de algo que não tem legitimidade.
E o interessante é que, a despeito disso, esse tipo de prática tem sido cada vez mais corrente, sem levantar nenhuma polêmica ou questionamento da sociedade. Isso indica que há uma aceitação imensa das terapias alternativas no Brasil.
Na minha visão, parece que o reiki e outras práticas são meio que uma tentativa de dar uma cara “terapêutica” a uma prática quase religiosa. Você pensa dessa maneira também?
Faz todo sentido isso. O reiki, apesar de ter uma história dentro do campo religioso, se apresenta de uma maneira laicizada. A minha sensação é que, a partir do momento em que se consolidou a ideia de que todos têm espiritualidade e que ela é uma dimensão da saúde humana (o que a OMS afirmou em 1985), a palavra virou uma espécie de carta branca para tudo.
Além disso, a espiritualidade se consolidou com uma imagem de algo não religioso, mais associado a experiências individuais e fenômenos biológicos. O reiki, por estar há décadas no repertório dos terapeutas holísticos, conseguiu emplacar como essa solução não religiosa para atender à “nova” dimensão da experiência humana, cujas próprias origens também são debatíveis, né?
A espiritualidade tem sido muito estudada por médicos, e práticas como o reiki são cada vez mais ofertadas nas redes públicas e privadas. A que se deve essa ascensão?
Acho que há dois aspectos. Um é o de oferecer uma espécie de antídoto a práticas religiosas perigosas, que levam a pessoa a abandonar tratamentos, e oferecer um espaço de acolhimento para essa demanda que vem dos pacientes.
Em um dos casos que trato no livro, um diretor de um hospital oncológico me contou que, antes de implementar o reiki, pastores iam até a fila de atendimento dizer para as pessoas: “sua saída não está aqui, está na minha igreja”.
O outro jeito de olhar isso é como só mais um capítulo da medicalização da vida. Os médicos se tornam os grandes especialistas de uma dimensão que ainda não haviam explorado, porque oferecer conforto espiritual era uma coisa de capelão, e agora está virando especialidade médica.
Tem outra coisa que chama minha atenção nesse movimento, e que você destaca no livro, que é uma “universalização” da espiritualidade como algo do corpo humano, diferente da religião, que é um fenômeno cultural e coletivo. Você menciona que há um vínculo entre esse movimento e o neoliberalismo [doutrina político-econômica que prega intervenção mínima do estado sobre o mercado]. Pode explicar melhor?
Eu diria que a gente vive um momento na medicina em que a relação do paciente com a própria doença tem um traço neoliberal: o sujeito é responsável pela sua própria doença e pela cura. É uma espécie de psicologia positiva, onde os segredos para a cura estão dentro de você ou se você tem um câncer, por exemplo, é porque somatizou alguma emoção.
É um discurso individualizante muito perigoso, porque você exclui fatores sociais e desconsidera o ambiente no qual o indivíduo adoeceu. E as PICs se beneficiam disso, porque pregam essa ideia de que a possibilidade de cura está dentro do sujeito.
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Dá até para fazer uma brincadeira: a palavra holístico, usada pelos terapeutas, vem de holos [todo]. Só que é como se esse todo fosse o limite da pele da pessoa. O holístico não tem a ver com meu bairro, com minha comunidade, não importa se a pessoa mora numa favela, numa cidade poluída, trabalha sob condições precárias…
E quais são as consequências da ascensão das práticas integrativas e complementares sob essa justificativa de atender à espiritualidade?
A minha sensação é que abre um flanco muito pouco regulado. Por exemplo: quem pode oferecer reiki no SUS? Como é que você vai fazer um concurso para reiki? Vai ser formado um sindicato ou um conselho dos reikianos? Qual é a linha de corte para que tipo de prática deve ser considerada e qual deve ser excluída, uma vez que não há estudos?
Essa desregulação me soa quase como oportuna, porque é “bagunçado” o suficiente para caber qualquer coisa que alguém queira vender. Tanto que o número de PICs no SUS só cresce. Quando comecei a pesquisar, em 2006, eram menos de dez, agora são 29.
Naquela época, eu até justificaria isso como uma coisa boa, uma tentativa de abraçar nossa pluralidade. Mas, agora, com a pandemia e o estrago feito com a história da cloroquina, sabemos o buraco ao qual isso pode nos levar.