Coringa e os dilemas da saúde mental
Ao recriar de maneira visceral o surgimento do vilão de Batman, filme desperta críticas, elogios e reflexões de especialistas em transtornos psiquiátricos
Quando topou interpretar o personagem-título do filme Coringa, Joaquin Phoenix, de 45 anos, encarou dois desafios: aparecer magérrimo em cena e criar a gargalhada do vilão. Quanto ao peso, moleza: o ator perdeu 24 quilos em apenas quatro meses. Tudo graças a uma dieta vegana prescrita por um médico. Quanto à risada, um dos traços marcantes do personagem, assistiu, por indicação do diretor Todd Philips, a vídeos de portadores de um raro transtorno neurológico chamado síndrome pseudobulbar. Mais que assistir, ele tentava reproduzir, na frente de um espelho, as risadas aflitivas e dolorosas dos pacientes.
“A síndrome pseudobulbar é caracterizada por choro ou riso fora de contexto e pode ser decorrente, entre outras razões, de maus-tratos na infância”, contextualiza o psicanalista Christian Dunker, coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da Universidade de São Paulo e coautor do livro O Palhaço e o Psicanalista: Como Escutar Pessoas e Transformar Vidas (clique para comprar).
O “palhaço do crime de Gotham City”, uma das muitas alcunhas do Coringa, foi criado em 25 de abril de 1940 por três cartunistas: Bob Kane (1915-1998), Bill Finger (1914-1974) e Jerry Robinson (1922-2011). Reza a lenda que uma das fontes de inspiração de Robinson teria sido o personagem Gwynplaine, interpretado por Conrad Veidt no filme O Homem que Ri (1928).
Quanto à origem do arqui-inimigo do Batman, há muitas versões. Uma das mais famosas é a da graphic novel A Piada Mortal, escrita por Alan Moore e desenhada por Brian Bolland. Nela, o Coringa é um ex-funcionário de uma indústria química que, sem conseguir arrumar emprego como comediante e com a mulher grávida de seis meses, resolve ajudar dois criminosos a roubar uma fábrica de baralhos. Durante o assalto, ele é perseguido pelo Batman e, por acidente, cai num tanque com substâncias químicas. Sai de lá, então, com a pele branca, o cabelo esverdeado e o sorriso maligno.
Da versão dos quadrinhos, Todd Phillips, coautor do roteiro do novo filme em parceria com Scott Silver, aproveitou muito pouco, quase nada. Seu Coringa chama-se Arthur Fleck, mora com a mãe, Penny, e, para sobreviver, trabalha como palhaço de aluguel. De dia, vive de bicos, como segurar cartazes de lojas ou fazer visitas a hospitais. À noite, tenta a sorte como comediante de stand-up.
Portador de transtornos mentais, Fleck faz uso de sete medicamentos, anota suas reflexões num diário — “A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse” é uma delas — e conversa esporadicamente com uma assistente social. A certa altura, porém, a prefeitura de Gotham City corta a verba e suspende tanto o atendimento psicoterápico quanto o fornecimento de remédios.
“O tratamento dele é ruim, burocrático, abaixo da crítica. Falta escuta clínica, por exemplo. A assistente social não interage com o paciente, apenas repete um padrão mecânico de perguntas”, analisa Dunker. “Quando você retira a escuta e a medicação, o sofrimento do paciente tende a evoluir”, completa.
Antes mesmo de chegar às salas de cinema, Coringa já levantou polêmica e causou apreensão. Foi classificado como “perigoso” pela revista Time e “irresponsável” pela Vanity Fair. Parentes das vítimas do massacre em Aurora, no Colorado, enviaram uma carta para a Warner pedindo que a produtora do filme usasse sua influência na mídia para dificultar o acesso a armas de fogo nos Estados Unidos.
É que, na tarde do dia 20 de julho de 2012, um atirador matou 12 pessoas e feriu outras 70 durante uma sessão do filme Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge. Encurralado no estacionamento do shopping, James Holmes, de 24 anos, tinha os cabelos tingidos de vermelho e, para os policiais que lhe deram voz de prisão, disse ser o Coringa.
“Uma das funções do cinema é provocar conversas difíceis sobre problemas complexos”, respondeu a Warner em um comunicado. “Não é intenção do longa, dos cineastas ou do estúdio tratar esse personagem como um herói”.
Por via das dúvidas, muitas salas de cinema americanas optaram por não exibir o filme. Outras proibiram os espectadores de assisti-lo vestidos como o vilão. Outras, ainda, solicitaram reforço no policiamento.
“O Coringa é sintoma de uma sociedade extremamente desigual”, observa o sanitarista Paulo Amarante, presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental e pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “Não é a loucura que é irracional. É a violência que a sociedade impõe aos mais fracos que é. No filme, Fleck sentiu-se completamente desamparado. Não tem emprego formal, não tem plano de saúde, não tem absolutamente nada. O que uma pessoa faz numa situação dessas? Entra em desespero. Nada justifica o crime, mas a gente entende a explosão do sofrimento”, avalia Amarante.
Não bastasse a acusação de apologia à violência, Coringa foi criticado também por reforçar o estereótipo de que todo portador de doença mental representa riscos para a sociedade. “Isso é uma completa ignorância!”, sentencia o psiquiatra forense Guido Palomba, da Associação Paulista de Medicina e da Associação Brasileira de Psiquiatria. “É preciso dizer que portadores de transtornos mentais não apresentam periculosidade maior que os indivíduos tidos como normais”, ressalta.
Mas, afinal, o que teria contribuído para Arthur Fleck se metamorfosear no Coringa? Os maus-tratos na infância, quando chegou a levar surra dos namorados da mãe, ou o bullying na fase adulta, quando era ridicularizado pelos colegas de trabalho?
“Em linhas gerais, bullying não é capaz de tornar uma pessoa cruel ou perversa. O máximo que consegue é deixá-la inadaptada socialmente”, analisa Palomba. “Quanto aos maus-tratos, lesões neurológicas são capazes, sim, de criar indivíduos com comportamento perverso e agressivo. Quanto menor a idade da criança que sofre o ataque, piores serão as consequências neuropsiquiátricas”, esclarece.
O longa-metragem de Todd Philips conquistou o Leão de Ouro, o prêmio máximo do Festival de Veneza, um dos mais prestigiados do mundo. Mês passado, tornou-se o filme com classificação indicativa para adultos de maior bilheteria de todos os tempos: são 849 milhões de dólares. Tem mais: Coringa é apontado como um dos favoritos para o Oscar 2020. Se depender da Warner, a produção deve concorrer em pelo menos 14 categorias, como melhor filme, diretor, roteiro adaptado, ator (Joaquin Phoenix) e ator coadjuvante (Robert De Niro).
“Cinema não é ‘junk food’. O espectador precisa refletir sobre o que está consumindo. Nesse aspecto, Coringa é um filme que requer do público um exercício de entendimento do que são os transtornos mentais. E, principalmente, do que pode acontecer quando eles são negligenciados”, afirma Dunker.