Vivemos a era da inveja
Dinâmica das redes sociais e mito do empreendedor radical colocam pessoas numa competição doentia pelo sucesso, reflete colunista
A inveja, sentimento temido e repulsivo, é tanto negada quanto latente em nossos dias. Pouco falamos sobre ela e, quando falamos, geralmente é na posição de vítima do mal olhado alheio. Mas quem nunca achou que a grama do vizinho era mais verde?
Verdade seja dita, em tempos de ostentação nas redes sociais, a inveja é um dos sentimentos mais secretamente nutridos neste mundo digital.
Não apenas pelas imagens idílicas compartilhadas em paraísos tropicais ou nevados que conhecidos e colegas de trabalho fazem questão de mostrar quando querem revelar o sucesso e o prazer de suas vidas. Ou tampouco apenas pelos corpos que desfilam nos feeds, exibindo curvas e formas que deixariam a própria Afrodite – deusa grega da beleza – enciumada.
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Fato é que os momentos são cuidadosamente escolhidos para projetar uma imagem de sucesso. Recortes de vidas que, sabemos, não são feitas apenas de glamour. Para além disso tudo, nossa inveja vai sendo também alimentada silenciosamente pela tão contemporânea ideologia do empresário de si mesmo.
Na lógica do empresário de si, o outro é cada vez menos visto como um semelhante, como alguém que também acorda todo dia e vai à luta, como alguém que pode ser uma boa companhia no processo de produção e distribuição das riquezas. Ele não está ali para compartilhar sua experiência e nos dar algum auxílio em nosso desenvolvimento laboral, como faziam os velhos artesãos ou os tradicionais mestres de ofício com seus aprendizes.
Não, na lógica do cada um por si do empreendedorismo radical, o outro é, ele próprio, outra empresa, algo alheio e ameaçador, posto que é um concorrente no mercado e, portanto, um adversário a ser batido, eliminado. Nesse sentido, a ideologia do empresário de si mesmo propõe um desafio decisivo às relações pessoais.
Mas essa ideologia possui também uma face terrível e pouco percebida. Ou, ainda, uma face que circula como um não dito que se revela em meio ao insucesso de milhares.
No fracasso, quem fica injustamente penalizado é o trabalhador. Solitário, nosso herói precarizado, diante do retorno pífio ao seu hercúleo esforço, muitas vezes culpa a si mesmo pela falência de seu empreendimento e é duplamente onerado: paga pelo prejuízo econômico e pela consequente baixa autoestima e sofrimento.
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As redes sociais compartilham e multiplicam com toda pompa a fraseologia do propósito, da marca pessoal e do empreendedorismo, mas, ainda assim, grande parte das pessoas não logra nem uma fração do sucesso e riqueza prometidos pelos gurus do mercado. Privatiza-se, então, a culpa do fracasso enquanto a inveja é socialmente fomentada nas mentes dos trabalhadores.
Mas o maior problema da inveja muitas vezes nem são os olhares ou as palavras do invejoso contra o invejado. A questão é que ela é mais do que um sentimento.
Conforme ensinaram os psicanalistas Melanie Klein e Wilfred Bion, ela é uma função psíquica destrutiva e inconsciente. Por essa razão, quase nunca nos damos conta de que quem sofre os maiores prejuízos de seu efeito somos nós mesmos.
Enquanto função psíquica, a inveja atua fragmentando o nosso mundo interno e aniquilando as nossas melhores potencialidades, como a criatividade, inteligência e capacidade de nos relacionarmos bem com os outros. Acaba transformando nossa maneira de sentir, pensar e enxergar o mundo, criando uma relação com a vida baseada no ressentimento, nas falsas premissas e no vício pela mentira.
Torna-se uma espécie de câncer que mata o que temos de melhor. Por fim, a inveja nos afasta de uma vida que encontra na experiência social as referências que nos ajudam a elaborar tanto as nossas frustrações a cada insucesso como a demasiada humana e espontânea inveja que nos acomete quando deparamos com indícios de que o outro também pode desfrutar de coisas boas.