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Síndrome da feiura imaginária: conheça a dismorfia corporal

Quem tem transtorno dismórfico corporal vê defeitos onde não existem ou se incomoda demais com certas características na frente do espelho

Por André Bernardo
Atualizado em 8 nov 2019, 11h04 - Publicado em 8 nov 2019, 10h04
como tratar a dismorfia corporal
Usar maquiagem pesada para camuflar supostos defeitos é um dos indícios do transtorno. (Foto: Klaus Vedfelt/Getty Images / Ilustração: Eduardo Pignata/SAÚDE é Vital)
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O escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924) costumava se referir à própria aparência de maneira depreciativa. Para ter ideia do tamanho de sua autoestima, “miserável” e “desprezível” eram alguns dos adjetivos mais usados em seus diários. Às vezes, ele cismava com os “ombros caídos”. Outras, implicava com os “braços desajeitados” ou com a “postura encurvada”. “Tinha pavor de espelhos porque eles refletiam uma feiura inescapável”, escreveu, certa vez. Não por acaso, em sua obra mais famosa, A Metamorfose (clique para comprar), o protagonista acorda um belo dia e se vê transformado em um inseto asqueroso.

Seria Kafka tímido, vaidoso ou antissocial? Tudo leva a crer que ele enfrentasse o chamado transtorno dismórfico corporal (TDC), um distúrbio que hoje atinge 2% da população, cerca de 4,1 milhões só no Brasil. Em tempos de redes sociais e culto à aparência em alta, o quadro encontra terreno fértil para crescer.

Homens e mulheres são vítimas em igual proporção. No entanto, os jovens entre 15 e 30 anos sofrem mais. “Quem convive com o TDC apresenta preocupação exagerada com algum defeito imaginário em sua aparência física”, define o psiquiatra Táki Cordás, um dos organizadores do livro Transtorno Dismórfico Corporal — A Mente Que Mente.

“O indivíduo pode achar que tem um nariz tão grande que, se sair às ruas, vai assustar todo mundo. Ou, então, ficar paranoico por acreditar que todos estão olhando para ele por causa do seu queixo ou da sua orelha”, exemplifica.

No tempo em que Kafka se recusava a comprar roupas novas só para não ter que prová-las na frente do espelho, o TDC atendia pelo nome de dismorfofobia — ou medo patológico de ser ou se tornar deformado. A condição foi descrita pela primeira vez na literatura médica pelo psiquiatra italiano Enrico Morselli, em 1886. Quase um século depois, em 1980, a Associação Americana de Psiquiatria (APA, na sigla em inglês) reconheceu a condição e a incluiu na terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Distúrbios Mentais, o DSM.

Segundo o documento, considerado um guia da psiquiatria, o TDC leva o indivíduo a implicar com uma pequena característica (uma pinta no rosto ou uma cicatriz na testa) e a se preocupar a ponto de ter que camuflá-la para sair de casa. Às vezes, a cisma é com algo que nem existe, como uma barriga saliente.

“Prevenir o TDC não é fácil porque se trata de uma condição com múltiplas causas: hereditárias, psicológicas e sociais”, explica o psiquiatra Marcel Higa Kaio, do Núcleo de Atenção aos Transtornos Alimentares da Universidade Federal de São Paulo. “Tudo que afeta a autoestima de alguém, como trauma ou bullying, pode contribuir para o surgimento de percepções distorcidas de sua aparência física”, elucida.

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A rotina de quem tem dismorfia corporal e como diagnosticá-la

Os primeiros sinais de TDC não costumam ser detectados por psicólogos ou psiquiatras. São os dermatologistas e cirurgiões plásticos que, na maioria dos casos, atendem pacientes em busca de procedimentos estéticos ou intervenções cirúrgicas para corrigir as “falhas” que eles imaginam possuir.

Para muito além dos consultórios médicos, amigos, familiares e até colegas de trabalho devem estar atentos a alguns indícios. O principal deles é o comportamento obsessivo e compulsivo, semelhante ao de quem sofre de TOC propriamente dito.

No dia a dia, na hora de sair de casa, o sujeito com o distúrbio checa, repetidas vezes, seu suposto defeito. Consumido por uma feiura imaginária, tenta disfarçá-la com roupas largas, óculos escuros ou maquiagem pesada. Não convencido, ainda pergunta: “E aí, estou bem?”. Por fim, o medo de passar vergonha é tão devastador que, muitas vezes, ele desiste de sair e se isola.

“A preocupação excessiva com a aparência costuma ser indesejada pelo próprio paciente, mas ele tem dificuldade para controlar o que pensa e sente”, nota a psicóloga Rogéria Taragano, do Programa de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. “Essa situação ocupa várias horas do dia e gera intenso sofrimento, além de prejuízo nas relações pessoais e impacto na qualidade de vida”, completa.

Sintomas do transtorno dismórfico corporal

Preocupação patológica: o indivíduo mostra inquietação extrema com uma ou mais “falhas”. Elas podem ser reais (e imperceptíveis aos olhos dos outros) ou imaginárias.

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Pensamentos obsessivos: a pessoa costuma pedir a opinião dos outros ou tentar convencê-los de que o tal defeito existe. Quando se compara a terceiros, é normal se subestimar.

Comportamento repetitivo: o feio imaginário se olha no espelho várias vezes ao dia ou, em um único momento, por muitas horas. Na falta do espelho, vale tudo: celular, vitrine e até poça d’água.

Sofrimento exagerado: ter TDC dói. Para disfarçar sua “anomalia”, o portador usa roupas largas, óculos escuros ou maquiagem pesada. Às vezes, evita sair de casa.

Onde está a insatisfação nos homens e nas mulheres

Mulheres

Homens

  • Órgãos genitais
  • Cabelo
  • Massa muscular
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Ambos

  • Peso
  • Abdômen

Cerca de 2,5% das brasileiras acham que têm defeitos. Nas mulheres, a dismorfia corporal aparece mais entre 18 e 30 anos e a prevalência se mantém em alta até os 60. Já 2,2% dos homens brasileiros sofrem com o distúrbio. No sexo masculino, a situação é mais comum entre 18 e 21 anos, mas há uma queda progressiva à medida que se envelhece.

A dismorfia do Snapchat

Houve um tempo, não muito distante, em que as mulheres chegavam aos consultórios com fotos de modelos ou revistas de celebridades. O objetivo era mostrar aos cirurgiões como gostariam de ficar. Hoje, o padrão de beleza não é mais ditado pelas celebridades, e sim pelos filtros de aplicativo.

O alerta é de cientistas da Universidade de Boston, nos Estados Unidos, que publicaram recentemente um estudo que causou barulho. Segundo a análise, a nova geração quer fazer plástica para ficar parecida com a versão retocada de si mesma na tela do celular.

O fenômeno já ganhou até apelido: “Dismorfia do Snapchat”, em alusão ao primeiro app a disponibilizar recursos para afinar o nariz, clarear o tom da pele ou realçar as maçãs do rosto.

“Ainda há poucas pesquisas que associam o uso das redes sociais ao TDC”, pondera a psicóloga Grazielle Bonfim, de São Paulo, autora de uma revisão sobre o tema. “No entanto, o grande número de vídeos e fotos postados tende a levar as pessoas a se compararem umas com as outras, o que pode contribuir para o agravamento de suas preocupações com a imagem”, avalia.

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No Brasil, o primeiro a descrever a dismorfia corporal, coincidência ou não, foi um cirurgião plástico: o mineiro Ivo Pitanguy (1926-2016), lá em 1976.

Uma das pioneiras em dissecar pra valer o transtorno por aqui foi a médica Luciana Conrado, da Sociedade Brasileira de Dermatologia. Por volta de 2008, quando defendeu sua tese de doutorado a respeito do assunto, ela já ensinava mecanismos de identificação a outros colegas. Afinal, de cada 100 pacientes atendidos em consultórios de dermatologia, pelo menos 14 seriam portadores de TDC. Nas clínicas de cirurgia plástica, o número é ainda mais alarmante: 57.

“O dismórfico corporal, por mais tratamentos estéticos que faça, nunca está satisfeito. Quando o médico corrige um suposto defeito, ele logo arranja outro”, diz Luciana.

Por essas e outras, a médica aconselha: ao menor sinal de TDC, o indicado é buscar um psiquiatra. Na maioria dos casos, o tratamento alia terapia cognitivo-comportamental à prescrição de antidepressivos.

Enquanto a psicoterapia cria estratégias de enfrentamento gradual para situações de risco, como se olhar no espelho ou passear, a medicação ajuda a superar entraves como fobia social, ansiedade e síndrome do pânico. A combinação não resolve a distorção da autoimagem, mas atenua significativamente os sintomas.

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Quanto mais cedo o distúrbio for detectado, melhor. “Às vezes, a família só procura atendimento quando o quadro se agrava. Aí, há muito pouco a fazer a não ser internar o paciente”, informa a psicóloga Joana de Vilhena Novaes, do Núcleo de Doenças da Beleza do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

“Sem acompanhamento multidisciplinar, os dismórficos corporais podem cometer autoflagelo e até mesmo tentar o suicídio.” Na eterna briga com o espelho, o que faz bem mesmo é zelar pela mente.

Casos famosos

Além do escritor Franz Kafka, outras personalidades já mostraram sinais de dismorfia corporal. Quem não se lembra do cantor americano Michael Jackson (1958-2009)? Ele se submeteu a tanta plástica que seu rosto ficou irreconhecível. Entre outros procedimentos, afinou o nariz, clareou o tom da pele e alisou os cabelos.

O ator inglês Robert Pattison, de 33 anos, admitiu que, por se considerar franzino, odeia tirar a camisa em público ou ir à praia.

Na ala feminina, a socialite suíça Jocelyn Wildenstein, de 79 anos, estima já ter gasto mais de 4 milhões de dólares (o equivalente a 16 milhões de reais) em tratamentos estéticos e plásticas. E a ex-modelo inglesa Alicia Douvall, de 40, chegou a perder boa parte do movimento do rosto após se submeter a mais de 350 cirurgias.

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