A difícil arte de perdoar
No Dia Nacional do Perdão, nosso colunista reflete sobre esse ato que pode fazer bem à alma, à saúde e à sociedade
Vinicius de Moraes disse, no clássico “Água de beber”, composto em parceria com Tom Jobim, nunca ter feito coisa tão certa quanto entrar para a escola do perdão.
Pensar o perdão como uma atividade que marca uma escola é propor o perdão como algo a ser aprendido. Essa ideia pode ser de extrema utilidade, sobretudo – e isso talvez o poetinha não vislumbrasse – em um país tão cindido e extremado.
No Brasil, já há algum tempo, ouvimos falar dos inúmeros casos de famílias divididas pela política, das manifestações agressivas e da intolerância que se abateu sobre a vida social. Atravessamos tempos de relações despedaçadas e convivências interrompidas.
O ressentimento é a marca de um cenário que, para muita gente, ainda não apresenta um horizonte passível de reparação.
O perdão, nesse contexto, se apresenta como um problema complexo, pois provoca conflitos internos nas mentes e corações das pessoas, além de toda ordem de cobranças morais e religiosas.
O perdão talvez seja um dos artifícios civilizatórios mais antigos que existem. Enquanto habilidade de convívio, é anterior às religiões e à artimanha da culpa imperdoável pelo pecado original.
Perdoar é uma arte de aperfeiçoamento da nossa humanidade. Quando exercida, eleva espiritualmente tanto aquele que concede o perdão quanto aquele que é perdoado.
Ela expande a nossa capacidade de simbolização com as frustrações da vida, assim como em relação às nossas faltas com os outros e as faltas dos outros para conosco.
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Além de tudo isso, alguns autores vêm ressaltando uma espécie de efeito terapêutico que a arte de perdoar exerce sobre nós, reduzindo o estresse, auxiliando na regulação da pressão arterial, atuando na melhoria da qualidade do sono e favorecendo sentimentos positivos de paz e felicidade.
Mas, diante dos acontecimentos que testemunhamos nos últimos anos em nosso país, o conhecimento de todos os benefícios que o perdão propicia parecem insuficientes para convencer muita gente a se lançar neste trabalho tão profundo, propondo questionar se existiria, ou não, um limite para o perdão.
Seria possível, por exemplo, perdoar a barbárie e o nazismo?
Em livro recentemente lançado, intitulado Perdoar, uma loucura do impossível (7 Letras), o psicanalista Victor Maia discorre sobre a temática elencando os obstáculos para a concessão do perdão.
Em certa passagem, o autor lembra que para o filósofo Vladimir Jankélévitch não se pode perdoar aquilo que interrompe a história. Não se pode “deixar para lá” ou esquecer certas coisas.
O perdão não é sinônimo de esquecimento, mas justamente o seu contrário. Ele só pode ser concedido mediante a lembrança do erro, à atualização, no presente, daquele mal do passado.
E não há o que perdoar quando o que está em jogo é aquilo que Hannah Arendt chamou da irreversibilidade do mal. Ou seja, diante daquilo que é da ordem do inominável, que extingue a história, que aniquila a dimensão humana da existência. Políticas de extermínio de povos ou mesmo de negligência com a vida se enquadram neste caso.
São exemplos disso o holocausto, a suspeita de genocídio de povos indígenas que pesa sobre o Brasil e, até mesmo, poderíamos dizer, o descaso e o deboche com os cuidados relativos à saúde durante a pandemia.
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Talvez um dos grandes desafios para a reparação de parte das relações abaladas pela sanha odienta dos últimos anos teria sido convencer aqueles que financiaram a barbárie a pedir perdão.
Tarefa impossível, posto que uma das marcas do radicalismo é a incapacidade de considerar a dignidade daquele que é tachado como diferente. O processo do perdão, e de seu pedido é, por outro lado, uma abertura total à alteridade.
A certeza, ou a promessa, de que não repetiremos os erros do passado pode ser o primeiro caminho para o perdão. Neste sentido, do ponto de vista social, o clamor da massa que grita não à anistia não se dá por vingança, mas por reparação histórica: o esforço de barrar a repetição do mal.
Mas e do ponto de vista das relações pessoais?
A reparação das relações fraternas e familiares nunca esteve tão dependente da nossa capacidade de reparação histórico-institucional, tão ameaçada pelo radicalismo financiado que opera sub-repticiamente. Mas também depende daquilo que cada um de nós vai conseguir extrair do que Vinícius de Moraes poeticamente nomeou como a escola do perdão.
Ou seja, a difícil arte de transitar pelos nossos limites morais e humanos para criar sentidos de continuidade entre o tolerável e o intolerável, o crucial e o trivial, o principal e o acessório.
Quando o que está em jogo são as nossas relações pessoais, vale sempre lembrar que a história só existe porque existe o perdão.