Quando fui convidada a integrar o time de colunistas de VEJA SAÚDE, não pensei duas vezes em aceitar. E logo me deram um desafio: “Cynthia, para você, que é tão ligada nas tendências, qual será o futuro da alimentação?” É um típico assunto “rapadura”: doce, mas não é mole, não!
É que falar do futuro da comida — ou da comida do futuro — traz à tona a nossa necessidade constante de adaptação. Mas vamos lá…
Nossas raízes ancestrais nos conectam à terra, à natureza e à sabedoria de uma alimentação nutritiva e sustentável. Há milhares de anos, nossos antepassados dependiam do extrativismo. Essa relação simbiótica com o meio ambiente moldou a cultura alimentar, mantendo o equilíbrio entre o ser humano, a fauna e a fora.
De repente, porém, demos um salto muito rápido, rompemos aquela antiga conexão e os problemas começaram a eclodir: pouca diversidade à mesa, excesso de processamento nos alimentos, globalização, desperdício, fome de um lado, obesidade do outro…
Sendo assim, acredito que hoje, mais do que nunca, ao buscar soluções para os desafios alimentares, é intuitivo olhar para trás: não de forma utópica, mas de uma maneira que nos permita captar algo que ficou pelo caminho, que nos faz falta agora. Ora, a alimentação anda ao lado da nossa história evolutiva.
Foi a descoberta e o uso do fogo que abriram caminho ao que somos. Ao aprendermos a cozinhar, passamos a ostentar mais cérebro e menos mandíbula. Em torno da fogueira, nos reunimos para contar causos, trocar afetos, consolidar o grupo. Isso nos tornou sapiens.
Outras revoluções vieram depois: com a agricultura e a pecuária, passamos a mudar o espaço em que vivíamos. Em outro salto de
milhares de anos, chegamos ao século 18 e à Revolução Industrial, uma linha divisória na nossa trajetória, agora cada vez mais urbana.
Na virada para 1800, já somávamos 1 bilhão de pessoas no planeta. E, aí, o visionário Thomas Maltus já prenunciava: vai faltar comida!
Embora controversa, essa ideia estava certa num sentido: a humanidade começou a crescer rápido demais; teríamos recursos suficientes para alimentá-la? Bem, já somos mais de 8 bilhões de pessoas, e não precisamos controlar a natalidade para a vida fuir. Ao menos eu não acredito nisso.
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Creio que a nossa espécie, sapiens como nenhuma outra, pode usar a inteligência para vislumbrar saídas e mesmo refetir sobre o que merece mudar de agora em diante. Portanto, a parte doce e instigante de pensar o futuro da alimentação está na imensidão de possibilidades que há tempos criamos para fazer com que essa conta feche.
E é aqui que comer se torna um ato, além de biopsicossocial, político. Há décadas, estamos repensando e adaptando hábitos para lidar com os contextos históricos, o que deixa claro quanto nosso paladar é flexível — o que não quer dizer que seja fácil de mudar.
Prova disso é que, embora as opções à base de plantas já estejam há anos no mercado, foi a partir das inovações plant-based, que simulam hambúrguer, carne moída e leite, que aumentamos o consumo. Também somos ávidos por novidades, não?
Os Jetsons não acertaram na previsão do futuro, ao menos se pensarmos nos banquetes em forma de cápsulas. Eu acredito, na verdade, que o porvir dependa de uma união entre tecnologia e natureza. Nesse horizonte, vejo hortas verticais urbanas, com irrigação contínua e luz artificial, plataformas que conectam o público a produtores e empreendedores antes isolados, aplicativos que ajudam a gerenciar alimentos próximos da validade e a evitar o desperdício, drones que podem mapear áreas desmatadas e lançar sementes e pólen para revivê-las; exames de nutrigenômica e técnicas de edição do DNA capazes de, no futuro, transformar a história dos alimentos transgênicos.
Com tanta tecnologia em curso, o futuro das proteínas também chegou: a carne de laboratório. Ela já é estudada em vários países, apesar de ser legalizada e comercializada apenas em Singapura por enquanto — um tipo de frango artificial sai por 18 dólares ali. Estima-se que
um hambúrguer feito a partir de células cultivadas custe cerca de cinco vezes mais que um convencional.
Mas vale lembrar que, há uma década, quem quisesse provar a iguaria experimental desembolsaria 300 mil dólares. Gostoso ou não, ético ou não, o bife de laboratório é uma realidade, vai ficar mais acessível e poderá ser um aliado à mesa no futuro.
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Para isso, no entanto, também terá de ser um aliado do planeta: a geração de dióxido de carbono atrelada à produção ainda é maior que a da versão animal. Mas, no quesito sustentabilidade, já estão em vantagem os alimentos chamados de análogos — o famoso “parece, mas não é”. Imitações de queijo, manteiga e bacon são feitos a partir da fermentação de fungos — os micélios são o ingrediente do momento.
Talvez a comida não vá mudar. O que vai mudar é a forma como ela é feita, cultivada, produzida… E comercializada. O prazer também joga junto nessa história. Até porque as novas gerações adoram explorar sabores diferentes.
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Costumo dizer que a comida é a nova música, e que os restaurantes são a nova Disney para os jovens. Mas aproveito a onda para cutucar: por que não aproveitamos, então, o incrível cardápio de espécies de grãos, frutas, verduras e PANCs da biodiversidade brasileira para enriquecer as experiências e a saúde dos novos e velhos consumidores?
Meu convite a você é desbravar — e ensinar os flhos e netos a desbravar — o que brota do nosso chão… e há muito tempo! Vamos saborear a castanha-do-brasil ou a de baru em vez de noz-pecã? Curtir a jabuticaba no lugar do morango? Substituir o chocolate belga pelos tabletes feitos do cacau da Região Norte?
E optar pelo pirarucu em vez do salmão? Isso é um comer futurista! Um futuro que valoriza os fatores que nos reconectam com a natureza sem abrir mão de uma jornada de descobertas e avanços propulsionados pela ciência e a tecnologia.
Talvez esse futuro vá nos levar de volta para casa, onde somos bem-vindos e sempre tem espaço para mais um à mesa.
*Cynthia Antonaccio é nutricionista e empreendedora, líder da consultoria Equilibrium Latam e coautora do livro Nutrição Comportamental (Manole)