Saúde privada: sem união não tem solução
Saúde suplementar vive seu pior momento no Brasil e precisará de esforços conjuntos para superar a crise pós-pandemia
A saúde privada brasileira enfrenta atualmente uma de suas crises mais agudas.
A pandemia de Covid-19 deixou como herança um sistema em franco desequilíbrio, cujos custos assistenciais crescem de forma acelerada, sem que as receitas operacionais consigam acompanhar.
As dificuldades começam nas operadoras de planos e seguros de saúde e se espraiam por toda a cadeia de prestação de serviços, como hospitais e laboratórios de medicina diagnóstica.
As cerca de 700 operadoras de planos de saúde médico-hospitalares privados em atividade no país são a porta de entrada de um gigantesco sistema, dedicado a cuidar de 50,8 milhões de pessoas.
São elas que pagam os prestadores pelos atendimentos ministrados aos paciente, repassando quase 90% do que recebem de seus associados na forma de mensalidades: 83% das receitas dos principais hospitais privados e 61% da dos laboratórios provêm das transferências feitas pelos planos.
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Ocorre que os planos de saúde experimentam seu mais difícil momento desde que o setor passou a ser regulado no país, 25 anos atrás.
Desde o começo de 2021, portanto há mais de dois anos, convivem com uma dura realidade, com suas contas persistentemente no vermelho. O conjunto das despesas com o tratamento de seus beneficiários vem superando em muito a receita que os associados pagam a título de mensalidade pelos planos contratados: já são R$ 18,7 bilhões de prejuízo operacional acumulado.
Numa situação assim, medidas que resguardem o caixa das operadoras se fazem necessárias, ou melhor, obrigatórias, a bem de toda a cadeia de prestação de serviços de saúde privada.
É o que os planos têm feito, por exemplo, ao examinar gastos que podem ser indevidos ou superfaturados e atuar para melhorar a gestão dos recursos. E, também, ao dedicar enormes esforços para combater fraudes e diminuir desperdícios, numa cruzada que, felizmente, começa a envolver mais camadas da sociedade.
Segundo diferentes estimativas, tais perdas podem equivaler a cerca de 10% das receitas totais da saúde suplementar.
A verdade é que estamos vivenciando mais um sintoma de uma febre maior e mais generalizada, que há tempos tem sido apontada pela Fenasaúde, entidade representativa dos principais grupos de operadoras de planos de saúde do país: a alta pronunciada, excessiva e às vezes abusiva dos custos de saúde.
Todos os elos da cadeia perdem com esta escalada. Exceto um: os fornecedores de insumos e medicamentos, cada vez mais caros. Eis um problema que deveria merecer a atenção de todo o sistema de saúde brasileiro, a começar pelo Ministério da Saúde.
Em grande medida, a situação dos planos de saúde vem se deteriorando nos últimos tempos devido a alterações de regras que não levaram em consideração seus respectivos impactos financeiros.
Isso aconteceu no âmbito do Legislativo, do Executivo e do Judiciário, mas também em função de medidas determinadas pelo órgão regulador do setor, a Agência Nacional de Saúde Suplementar – por exemplo, a incorporação de novos e caríssimos medicamentos e o fim de limites de sessões para certos tipos de terapias.
É sempre bom lembrar que a saúde suplementar permitiu a realização de 1,8 bilhão de procedimentos em 2022, com a cobertura de mais de R$ 200 bilhões em despesas assistenciais realizadas em cerca de 129 mil estabelecimentos de saúde.
Movimentamos cerca de 3% do PIB e constituímo-nos num dos principais empregadores do país, com quase 5 milhões de colaboradores, dos quais 420 mil são médicos que atendem o setor privado com exclusividade ou dividindo seu tempo com o SUS.
É a sobrevivência de toda essa rede de assistência que ora está sob risco.
Quando o calo aperta, como agora, todos querem seu pirão primeiro. É o que temos visto, por exemplo, em parte dos hospitais privados. Mas não vamos chegar a um melhor lugar se agirmos assim, divididos.
A saúde privada brasileira só terá salvação se buscarmos soluções conjuntas, que mobilizem e envolvam todos.
Para começar, as respostas passam por mudar a forma de remunerar os prestadores, exigindo-lhes resultados na forma de melhores desfechos clínicos para os pacientes, e pelo estabelecimento de controles e fiscalizações mais abrangentes que abarquem todos os elos da cadeia. Hoje, apenas as operadoras estão submetidas ao escrutínio da regulação.
É crucial uma reflexão conjunta da sociedade, com especial atenção das esferas governamentais, sobre a urgência e a gravidade da situação.
Especial cautela deve ser dirigida à discussão sobre a nova legislação que irá regular os planos, em substituição à lei n° 9.656/1998, ora em tramitação na Câmara dos Deputados sem a devida discussão à altura.
Passos em falso podem determinar o fim da saúde privada no país tal como a conhecemos hoje, com efeitos danosos também sobre a saúde pública, que, sem condições e sem orçamento, teria de absorver uma enorme demanda adicional.
Mais que nunca, a hora é de união, e não de divisões.
* Vera Valente, diretora-executiva da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde)