Desafios na construção do Plano Nacional de Demência
Avanços legais abrem caminho para a elaboração de um política pública de cuidado destes pacientes, mas ainda é preciso superar algumas barreiras
A recente promulgação da Lei nº 14.878/24, que estabelece a Política Nacional de Cuidado Integral às Pessoas com Doença de Alzheimer e Outras Demências, representa uma conquista significativa por melhores condições aos brasileiros e brasileiras com demência.
A legislação, oriunda do esforço do senador Paulo Paim, com a participação de entidades como a Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz), a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) e a Federação Brasileira das Associações de Alzheimer (Febraz), constrói uma resolução crucial para a implementação do Plano Nacional de Demência, uma estratégia extensa que visa não apenas diagnosticar, mas apoiar os mais de 1,8 milhão de pessoas que vivem com algum tipo de demência — o Alzheimer é uma delas — e outros 2,2 milhões com algum grau de déficit cognitivo, além de oferecer suporte aos cuidadores e familiares.
Esses dados, que refletem o tamanho do desafio no país, provêm do Estudo Longitudinal Brasileiro sobre o Envelhecimento (ELSI-Brasil), conduzido em 70 municípios nas cinco regiões geopolíticas, abrangendo cidades pequenas, médias e grandes em áreas urbanas e rurais.
Entre os obstáculos identificados no cuidado prestado às pessoas e suas famílias, aproximadamente 800 mil habitantes podem ter demência sem nem sequer receber o diagnóstico. Esses indivíduos enfrentam perda da qualidade de vida e da independência, enquanto as famílias e os cuidadores que os apoiam ficam sob enorme pressão, sofrendo com problemas de saúde e muitas vezes incapazes de manter seu emprego.
Nesse sentido, a legislação tornou-se uma pedra angular na construção do imprescindível Plano Nacional de Demência, que possibilitará um futuro em que o bem-estar dos pacientes com demência e o apoio aos seus cuidadores sejam priorizados.
Por meio do monitoramento participativo e da integração de múltiplas áreas de atuação, o Brasil está estabelecendo um precedente de inovação e cuidado no tratamento das demências, alinhando-se com as melhores práticas internacionais e reforçando seu compromisso com os direitos humanos e a dignidade de todos os cidadãos.
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A abordagem integrada da lei, envolvendo saúde, assistência social, respeito aos direitos e acesso à tecnologia, inaugura a participação do poder público na atenção às pessoas com demência, algo que, até o momento, é uma função assumida exclusivamente pela família e pelos profissionais de saúde que as acompanham.
A lei nos conduz a uma sociedade mais inclusiva e preparada para lidar com as complexidades das demências. O engajamento entre governo, sociedade civil e organizações sociais será fundamental para o sucesso dessa empreitada, garantindo que a voz de brasileiros e brasileiras seja ouvida e que as soluções sejam construídas de forma colaborativa.
A conformidade com as diretrizes mundiais é um componente essencial ao fortalecimento da resposta a essas questões desafiadoras em saúde pública. O Plano de Ação Global de Saúde Pública da Organização Mundial da Saúde (OMS) destaca a importância de estabelecer objetivos precisos e mecanismos de avaliação. Essas medidas não só traçam um caminho para o avanço mas também fomentam a transparência e a responsabilização necessárias para o progresso na área.
Demência, um problema em crescimento
Um relatório recente de entidades internacionais, apoiado pela Alzheimer’s Disease International (ADI), projeta um aumento significativo na prevalência global de demência nas próximas décadas. Até o ano de 2030, espera-se que a incidência dessa condição cresça em torno de 50% nos países de alta renda e 80% nas nações de baixa e média renda, caso do Brasil.
A doença torna-se uma provação não apenas pelo impacto direto aos pacientes, mas também pela sobrecarga emocional e financeira imposta aos cuidadores e familiares. Estudos indicam que 60% dos cuidadores de pessoas com demência sofrem de estresse grave, enquanto 42% apresentam ansiedade e 40%, depressão. Essa realidade ressalta a necessidade urgente de apoio e recursos adequados a essa comunidade.
O Estatuto do Idoso estabeleceu, há alguns anos, um marco legal para a proteção e atenção integral à população acima de 60 anos no Brasil.
No entanto, apesar desses progressos, a legislação não especificou de maneira adequada os critérios para a determinação das carências, deixando uma lacuna significativa no suporte estatal às pessoas idosas necessitadas, entre elas as que possuem demência. Diante disso, a nova legislação cobre parte da lacuna com a lei do Cuidado Integral às Pessoas com Doença de Alzheimer e Outras Demências.
A sociedade brasileira permanece nos vislumbrando como o país do futuro, porém não se conscientizando plenamente das transformações em curso.
As questões relativas ao envelhecimento populacional são obscuras para a maioria — poder envelhecer é um avanço e tanto, mas também um processo que pode vir acompanhado da maior propensão a doenças crônicas com prejuízos individuais e sociais. Assim, a lei recém-sancionada promove um relevante destaque à questão da demência no Brasil, e deverá resultar na implementação do tão sonhado Plano Nacional de Demência, como já recomendado pela OMS.
Esse plano de ação trará uma abordagem mais ampla, humanizada e apta a sanar pontos sensíveis do diagnóstico e do acesso ao tratamento — um desafio em si, ainda que estejamos na expectativa do desenvolvimento de remédios mais efetivos contra o Alzheimer e outras enfermidades que abalam a cognição.
O plano também chamará a responsabilidade do Estado para a implementação de uma verdadeira política de cuidado, um aspecto que o Brasil deve considerar para aprimorar seu próprio sistema de apoio às pessoas idosas.
*Celene Pinheiro é médica geriatra e presidente da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz). Rodrigo Schultz é médico neurologista, professor da Universidade Santo Amaro (SP) e ex-presidente da ABRAz.