Como o Brasil virou o país da cloroquina?
Aposta em remédios ineficazes e outras soluções anticientíficas contribuiu para a morte de milhares de brasileiros durante a pandemia de Covid-19
No filme Feitiço do Tempo, o repórter Phil, interpretado por Bill Murray, passa a reviver o mesmo dia sem parar. Todas as noites, deita-se no quarto do hotel da cidadezinha onde estava para registrar o entediante Dia da Marmota, uma celebração local. E acorda sempre no mesmo lugar, data e hora para reviver os mesmos acontecimentos, com uma ou outra mudança — em geral, para pior.
Os brasileiros envolvidos no combate à pandemia de Covid-19, dos jornalistas aos profissionais de saúde da linha de frente, podem se identificar com esse sentimento.
Dois anos depois, a sensação é de estarmos repetindo os mesmos erros: a difamação das vacinas, a falta de comunicação e coordenação de órgãos públicos, a dificuldade em tomar medidas duras, mas rápidas e efetivas, para conter a disseminação do vírus — como a distribuição de boas máscaras, restrições de eventos e testagem em massa.
A lista é longa, mas um item se destaca pelo absurdo de sua persistência.
Estamos falando do “kit Covid”, ou “tratamento precoce”, termo genérico que engloba uma porção de remédios sem eficácia demonstrada em estudos — alguns com ineficácia comprovada — ainda sendo prescritos para tratar a Covid-19.
Entre abril de 2020 e março de 2021, foram 2,5 milhões de unidades de hidroxicloroquina e 81 milhões de ivermectina vendidas no Brasil, segundo o Conselho Federal de Farmácia (CFF). Fora azitromicina, prednisona, anticoagulantes, zinco, vitamina D, e por aí vai.
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Algumas receitas contemplam mais de dez medicações, uma mistura de fazer inveja às populares garrafadas da medicina alternativa. Tudo isso não funciona, claro. Estão aí nossos péssimos indicadores pandêmicos para comprovar. O Brasil tem 2,7% da população mundial e concentra quase 13% das mortes globais por Covid-19.
Mesmo assim, insistimos em ir na contramão do mundo ao apostar em falsas curas prescritas em teleconsultas ou distribuídas gratuitamente por convênios e prefeituras.
Mais do que isso: as transformamos em políticas públicas divulgadas no exterior. Na abertura da última Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em setembro de 2021, o presidente Jair Bolsonaro discursou: “Desde o início da pandemia, apoiamos a autonomia do médico na busca do tratamento precoce. Eu mesmo fui um desses que fez [sic] tratamento inicial”.
Sua fala e o fato de ainda tomarmos remédio contra piolho para combater um vírus, mesmo com tantas evidências contrárias a isso, seriam cômicos se não fossem trágicos.
Parece brincadeira de mau gosto dizer que o tratamento precoce funciona quando temos mais de 600 mil mortes por Covid-19 — até metade delas possivelmente evitável, se tomássemos as medidas certificadas pela ciência, que foram seguidas por outros países.
O assunto arrefeceu na mídia a partir de 2021, apesar do pico de interesse durante a CPI da Covid (que não deu em praticamente nada por ora), mas seguiu quente por baixo dos panos. Na virada de 2021 para 2022, tivemos um novo capítulo do nosso próprio dia da marmota.
Depois de meses de disputas internas, a Comissão Nacional de Incorporação de Novas Tecnologias (Conitec) passou a contraindicar oficialmente o uso de azitromicina, cloroquina, ivermectina e companhia.
O órgão, responsável por recomendar ou não a inclusão de medicamentos e procedimentos no Sistema Único de Saúde (SUS), é a maior referência sobre o assunto.
A decisão, contudo, foi derrubada por decreto por Hélio Angotti, à época secretário de Ciência, Tecnologia e Inovação (SCTIE), órgão ao qual a Conitec é vinculada. Angotti, desde junho de 2020, se movimenta para transformar o kit em protocolo terapêutico oficial do Ministério da Saúde.
Como justificativa, o secretário apresentou uma nota técnica assinada por ele mesmo (que é oftalmologista), em que afirma haver mais provas sólidas a favor da cloroquina do que para as vacinas — o que, obviamente, não procede.
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A politização de um tema tão sensível e técnico como a prescrição de remédios numa pandemia estarrece boa parte da classe médica e farmacêutica. E causa prejuízos ao bolso dos consumidores, que gastam dinheiro à toa ao se infectarem, e aos cofres públicos — prefeituras, estados e a própria União queimaram milhões de reais com drogas que não funcionam.
Mais do que isso, a insistência coloca todos em perigo: seja por impor uma falsa sensação de segurança, seja por retardar o atendimento médico que funciona de verdade.
No último ano, nós — uma jornalista e um farmacêutico — nos debruçamos sobre esta pergunta: Como nos tornamos o país da cloroquina? Conversamos com políticos, médicos, cientistas, psicólogos, sociólogos, pacientes, vítimas e advogados para entender esse pernicioso episódio.
A eles, perguntamos: haveria um kit Covid sem a forte atuação do governo federal? E descobrimos que, infelizmente, é provável que vivêssemos algo parecido. Ora, várias das bases do fenômeno fazem parte de uma cultura antiga no país, perpetuando-se diante de doenças crônicas para as quais nem sempre há tratamentos eficazes.
Temos uma classe médica corporativista, com formação científica deficitária; a penetração da pseudociência na política e nas universidades, que já havia sido notada com o escândalo da fosfoetanolamina, a “pílula do câncer” que, na verdade, não curava nada; nossa irresistível vontade de acreditar em algo mesmo quando evidências apontam o contrário; uma relação banalizada e quase religiosa com os remédios; a desinformação disseminada online; e, acima de tudo, o fato de ter muita gente lucrando com o engodo.
Essas razões serão discutidas em detalhes em um livro* que estamos escrevendo e será publicado nos próximos meses. Nessa obra de investigação e reflexão, pudemos entender e demonstrar como viramos uma nação que deu as costas à ciência. Falta as autoridades apurarem por que ainda estamos presos neste doentio feitiço do tempo. As provas dos erros estão por todos os lados.
* A realização do livro foi possível graças a uma bolsa para a produção de trabalhos jornalísticos em temas de ciência, a qual foi concedida para Chloé Pinheiro pela Fundación Gabo e pelo Instituto Serrapilheira, com o apoio do Escritório Regional de Ciências da Unesco para a América Latina e Caribe.
* Chloé Pinheiro é repórter de VEJA SAÚDE, com mais de dez anos na cobertura de temas ligados a saúde e ciência. Flavio Emery é professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP)