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A viralização dos transtornos alimentares em tempos de coronavírus

Médica alerta para o risco de transtornos alimentares aparecerem ou se agravarem em meio à pandemia. E elenca medidas para minimizar esse risco

Por Dra. Christina de Almeida dos Santos, psiquiatra*
24 abr 2020, 13h21
coronavirus transtorno alimentar
O isolamento pode bagunçar nossa relação com a comida. (Foto: Tomás Arthuzzi/SAÚDE é Vital)
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O periódico médico The Lancet publicou recentemente uma revisão feita por cientistas do King’s College de Londres sobre o impacto psicológico da quarentena decorrente do coronavírus. Após se debruçar sobre 24 estudos, eles concluíram que a maioria das análises revela repercussões negativas como sintomas de estresse pós-traumático, raiva e confusão.

Os principais fatores por trás do estresse diante da pandemia são o medo da infecção, a duração da quarentena, perda financeira, estigma, frustração, tédio, suprimentos inadequados e informações contraditórias. Crianças e adolescentes parecem estar particularmente em maior risco de estresse pós-traumático.

Mas e os distúrbios alimentares? Como a pandemia afeta suas manifestações? Pessoas com transtornos alimentares têm um alto risco de voltar a encarar o quadro ou ver sua gravidade piorar em uma situação de quarentena e carência de tratamento psicológico e psiquiátrico devido à pandemia.

As mudanças emocionais advindas do estresse das circunstâncias atuais se refletem no comportamento alimentar. As manifestações variam: desde comer excessivamente através do aumento da frequência da alimentação (os beliscadores) ou ter compulsão alimentar até impor restrição calórica severa.

Em pessoas com transtornos alimentares e outras condições concomitantes — como depressão, transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno pós-traumático e transtorno por uso de substâncias —, a ruminação, a preocupação e a ansiedade desencadeadas pela Covid-19 podem acentuar a severidade do distúrbio paralelo, o que interage negativamente com o próprio transtorno alimentar.

O medo tende a aumentar a sensação de não estar no controle, que, em pessoas com distúrbios alimentares, normalmente é gerenciado com um aumento de restrições alimentares ou outros comportamentos extremos de controle de peso. Não bastasse agravar quadros de anorexia nervosa, esse comportamento se revela uma frustrada tentativa de permanecer no comando da situação.

Além disso, é importante ressaltar que pessoas com distúrbio alimentar e baixo peso têm maior risco de complicações médicas associadas à desnutrição. Embora não tenhamos dados a respeito ainda, é possível que elas se exponham a maiores complicações da infecção pelo coronavírus.

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Por outro lado, sabemos que o estresse da pandemia e da quarentena ocupam um papel preponderante na degeneração de hábitos alimentares anteriormente saudáveis — a despeito de se conviver com um transtorno ou não. Mas, para quem tem a condição, o distanciamento social e as restrições do isolamento podem, de fato, manter ou piorar o problema.

E isso se dá por algumas razões: menor possibilidade de se exercitar, o que amplia o medo do ganho de peso ou, no ângulo oposto, favorece o acúmulo de gordura corporal; estocagem de alimentos não perecíveis, o que leva a exposição massiva a bolachas, salgadinhos, pratos congelados, refrigerantes e afins, um potencial gatilho para episódios de compulsão alimentar; redução do relacionamento com outras pessoas ou, na contramão, maior tensão devido ao convívio com outras pessoas da casa; solidão como fator para os assaltos à geladeira e orgias alimentares.

O peso do estresse

O estresse desempenha um efeito poderoso sobre o apetite. E o que é ingerido durante o isolamento devido à Covid-19 pode ajudar ou piorar seu manejo. Tem gente inclusive chamando o ganho de peso durante o período de confinamento de “quarentena 15”, que seria o aumento correspondente a 15 libras (ou quase 7 quilos).

Sabemos que o estresse crônico, independentemente da pandemia, está associado a uma maior preferência por alimentos ricos em energia, com alto teor de açúcar e gordura. Um experimento da Universidade Yale, nos Estados Unidos, descobriu que, sob ameaça (estresse), até gafanhotos, que em geral se alimentam de proteínas vegetais como gramíneas, passam a comer mais plantas açucaradas.

Tanto para os insetos como para nós, seres humanos, açúcar significa combustível rápido para alimentar o corpo e estar preparado para situações de briga, fuga ou risco.

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Transpondo para nossa realidade, fica mais fácil entender por que muitas pessoas preferem pizza, batata frita e chocolate na quarentena. Preocupado ou assustado, o indivíduo procura açúcar, carboidrato e gordura para suprir a energia. Daí esses alimentos funcionarem também como uma espécie de tranquilizante natural.

Mas o que parece uma solução no curto prazo se transforma em problema no longo prazo. Esse ciclo alimentar que busca conforto para o estresse na comida de pior qualidade abre caminho a desafios físicos e emocionais. Aumenta o risco de obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares, ao mesmo tempo que favorece crises de ansiedade e depressão.

Na regência do estresse, o cérebro funciona como um estilingue interno, bombeando um coquetel de hormônios como adrenalina e cortisol para a corrente sanguínea. Também ocorre liberação de glicose estocada no fígado e nos músculos. Ou seja, o combustível é queimado. Quanto maior o uso da glicose pelo corpo em reação ao estresse, mais intenso será o apetite após a situação estressora. E o ciclo se perpetua.

Uma grande carga de cortisol circulando resulta na fissura por alimentos gordurosos e açucarados e esse desejo propicia depois culpa e mais estresse. O abuso frequente nas calorias também acaba em mais armazenamento de gordura e danos ao organismo. Sem contar os “pneuzinhos” ou “dobrinhas” que tanto abalam a autoestima (outra fonte de estresse).

A pandemia pelo novo coronavírus é perigosa do ponto de vista da saúde física e mental porque coloca muitos indivíduos em situação de alarme ativo 24 horas por dia. E o corpo humano não foi projetado para viver em estresse crônico — nem para usar os alimentos como conforto.

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Para interromper esse círculo vicioso, é imprescindível encontrar atividades que controlem a tensão — e aqui me refiro a exercícios físicos feitos em casa, sessões de ioga e meditação… — e cuidar do cardápio.

Cuide da mente e das refeições

Reúno abaixo algumas sugestões práticas, baseadas em ciência, para que o estresse não impacte negativamente a alimentação — e vice-versa.

Priorize alimentos nutritivos: um corpo bem nutrido tem um escudo mais resistente contra o estresse e quedas na imunidade. Dê preferência a alimentos ricos em fibras e massas e grãos integrais, que são digeridos mais lentamente e ajudam a estabilizar os níveis de açúcar no sangue. E traga mais à mesa fontes de ômega-3, gordura que protege o coração e nos defende da depressão leve. Peixes, frutos do mar, sementes, oleaginosas e óleos como o de canola fornecem essa gordura.

Fique atento ao tamanho das porções: quando o indivíduo está em casa, pode ser mais prático comer e beber diretamente das embalagens. Contudo, o ato de não medir e visualizar os alimentos tende a aumentar a quantidade ingerida, o que favorece o estresse e o ganho de peso. Em vez de comer ou beber das próprias garrafas, caixas ou pacotes, recomenda-se fazer as refeições em um prato ou tigela. Estudos mostram que o uso de pratos menores leva a comer menos.

Pratique uma alimentação consciente: a ideia é incorporar conceitos do mindful eating. Isso inclui evitar se alimentar enquanto executa outras atividades, tratando as refeições como uma atividade singular e com valor próprio. Sentar-se, comer devagar e mastigar algumas vezes antes de engolir, apreciando texturas, aromas e sabores, o que é bem-vindo inclusive para a digestão e o corpo processar a sensação de saciedade (o que evitará excessos).

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Repagine o estoque alimentar: pesquisas mostram que cercar-se de alimentos saudáveis aumenta a probabilidade de comer de forma adequada. Quando alguém está estressado, o apetite se concentra no que está à sua frente. Por isso, substitua os estoques de guloseimas e junk food por opções mais nutritivas e equilibradas (frutas, castanhas etc.)

Evite o “comer emocional”: é preciso desassociar o alívio das tensões com o conforto da alimentação. Em vez de descontar o estresse na comida, procure minimizá-lo com outras atividades mais eficientes e saudáveis. Passeie com o cachorro, jogue um pouco de videogame com as crianças, converse virtualmente com um amigo, ouça uma música relaxante, tome um banho quente…

Exercite o autocuidado: além da nutrição adequada, a boa saúde se fundamenta na manutenção de padrões de sono adequados e exercícios físicos regulares. Procure respeitar horários regulares de sono (no mínimo 8 horas por noite) e adequar uma rotina de atividade física ao ambiente doméstico.

Busque ajuda profissional: uma vez percebida a dificuldade em normalizar os padrões alimentares ou a incapacidade de gerenciar o estresse, convém procurar ajuda profissional com médico, psicólogo, nutricionista e/ou outros profissionais de saúde, de forma presencial ou remota. Não perca tempo.

Em períodos como este, lembre-se de que a esperança existe ao lado do desespero. E ela é igualmente acessível.

* Dra. Christina de Almeida dos Santos é médica psiquiatra, secretária da Comissão de Transtornos Alimentares da Associação Brasileira de Psiquiatria, membro da Academy for Eating Disorders, professora de medicina da Faculdade Pequeno Príncipe, em Curitiba, e coordenadora da residência médica de psiquiatria de São José dos Pinhais (PR)

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