A manipulação da ilusão de cura em pacientes graves
Advogada discute até que ponto é válido não contar a verdade para pacientes e interferia nas suas expectativas
Em 2015, quando muitos pacientes queriam receber a chamada pílula do câncer, a fosfoetanolamina – substância que se dizia curar a doença, sem nunca ter sido testada –, muitas decisões judiciais disseram que seu acesso consagraria um direito decorrente da dignidade humana do paciente. Ministros do STF chegaram a afirmar que, se um paciente está em estágio terminal, ele tem direito de tentar qualquer coisa para se salvar.
Mesmo sem qualquer evidência científica de que possa existir, um dia, um único remédio que elimine mais de uma centena de doenças diferentes que respondem pelo nome de câncer, milhares de pessoas com seus diversos tipos da doença receberam decisões judiciais favoráveis ao fornecimento da fosfoetanolamina.
Uma lei que obrigaria esse fornecimento chegou a ser aprovada em tempo recorde e houve grande comoção social a respeito do assunto, visto de um lado como charlatanismo e, do outro, como um milagre divino.
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O fato de que a fosfoetanolamina não era sequer considerada um medicamento e de que sua distribuição não atenderia a requisitos mínimos de segurança elevou o contexto do fornecimento judicial de drogas oncológicas a um patamar absurdo, mas não suficiente para transformá-lo em algo realmente novo.
Desde muito antes e mesmo sobre drogas efetivas e seguras, conforme agências reguladoras confiáveis mundo afora, o que está em jogo é, geralmente, a mesma coisa: a manipulação da ilusão.
Só que ilusão é o contrário de dignidade. Dignidade tem a ver com autonomia, com possibilidade de escolha – algo que pressupõe o conhecimento das opções disponíveis. Acho estranho relegar a morte a um tabu sobre o qual quase ninguém quer falar, e ao mesmo tempo elevar a dignidade a princípio máximo, especialmente no que diz respeito a assuntos de saúde.
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A consequência prática dessa inequação é que se considera aceitável – e até recomendado – iludir pessoas com doenças graves de que não estão próximas do fim da vida, para, supostamente, manter a sua dignidade. Mas, como eu disse, dignidade é o oposto de ser iludido.
É algo como dizer que alguém deve entrar no mar se não quiser se molhar. É ilógico, não faz sentido.
Mas como raramente se reflete sobre o que significa dignidade, ela acaba servindo de pretexto para qualquer coisa, para pensamentos e reflexões opostas.
Citando Kant, podemos dizer que, se a minha dignidade depende do respeito a minha capacidade de ter meus próprios fins, então eu preciso ter condições de conhecer as minhas opções e de escolher dentre elas. E, se não é possível fazer escolhas sem saber o que cada uma pode levar, então não é possível ter dignidade dentro da ilusão.
Isso é especialmente relevante quando nos deparamos com o diagnóstico de uma doença grave, com mau prognóstico. Escolher o que fazer com o resto de nossas vidas, durem elas quanto tempo durarem, depende do tempo que achamos que temos. O amanhã é sempre uma suposição – ninguém tem certeza de que estará vivo daqui a cinco minutos. Mas essa suposição pode ser muito provável, como quando se está saudável e em segurança, ou muito improvável.
Em um artigo publicado em 2012, uma pesquisadora chamada Jane Weeks e seus colegas afirmaram que muitos “pacientes com câncer avançado aceitariam tratamentos tóxicos por até mesmo 1% de chance de cura, mas não aceitariam o mesmo tratamento por um aumento substancial na expectativa de vida sem a cura”.
Em outras palavras, muitas pessoas estariam dispostas a lidar com altas doses de sacrifício e sofrimento mesmo pela menor chance de cura. Mas não aceitariam a mesma coisa, ainda que por benefícios consideráveis, se isso não significasse a cura.
Essa afirmação foi feita com base em estudos anteriores que os autores compilaram e, claro, não é definitiva. Existem, também, pacientes que se submeteriam a tratamentos, mesmo diante da certeza científica de que eles não poderiam curar a sua doença, mas poderiam aumentar um pouco o seu tempo de vida, e existem aqueles que aceitariam medicamentos que não farão nem uma coisa nem outra apenas pela necessidade de tentar alguma coisa.
Mas não é a legitimidade dessas escolhas que está em jogo. A questão aqui é se essas escolhas realmente são escolhas; se o paciente que se submete ao tratamento entendeu a gravidade de seu prognóstico e a falta de perspectiva de cura ou longevidade.
A falta de compreensão sobre isso é frequente. E isso significa dizer que milhões de pacientes deixam de fazer escolhas todos os anos, sem saber disso. E que milhares de pacientes têm a sua dignidade suprimida todos os dias, mesmo que a maior parte de nós acredite no contrário.
Muitos médicos usam uma falácia para justificar a forma como manipulam informações para pacientes graves. Eles dizem que devemos nos preparar pelo pior, mas esperar pelo melhor. Em outras palavras, alegam que o melhor é uma possibilidade, mesmo quando não é – a não ser que considere possível um milagre. Mas um milagre é o que é: independente da ciência e da intervenção médica.
*Cynthia Araújo é escritora, advogada e pesquisadora. Sua tese, “Existe direito à esperança? Saúde no contexto do câncer e fim de vida”, foi indicada pelo programa de pós-graduação da PUC-Minas ao prêmio Capes de Teses 2020. É autora do livro “A vida afinal – Conversas difíceis demais para se ter em voz alta (clique para comprar), lançado recentemente pela editora Paraquedas.