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A anorexia nervosa pode ser comparada a uma rosa despedaçada

Especialista fala da mais letal das doenças psiquiátricas

Por Christina de Almeida dos Santos, psiquiatra*
Atualizado em 29 set 2023, 10h07 - Publicado em 2 jun 2023, 10h50
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Na anorexia nervosa, há uma noção distorcida da própria imagem: a paciente sempre se enxerga acima do peso. (Foto: storyset/Freepik/Divulgação)
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Para entender a anorexia nervosa, a mais letal das doenças psiquiátricas, costumo fazer analogia com uma admirável rosa, que, no auge de seu esplendor, em cor carmim, passa a se consumir, desfazendo-se em pétalas de uma vida perfeita.

Tal como a flor que esmaece, as meninas anoréxicas deixam a vida esvair num declive acentuado dos ponteiros da balança.

Essa funesta situação, mas também o emocionante processo de reconhecimento, tratamento e recuperação, é descrito no meu recente livro “Quando a beleza se torna obsessão”, publicado pela Escola de Saúde Pública de São José dos Pinhais (2021).

Um retrato da anorexia

A anorexia nervosa acomete de 0,5 a 1% da população, sobretudo adolescentes entre 12 e 15 anos. A maioria (90%) é do sexo feminino.

Quando o problema atinge as adultas, predomina naquelas com profissões que valorizam excessivamente a estética e o corpo. Falo de modelos, atrizes, dançarinas, jóqueis, ginastas e influenciadores digitais.

O termo anorexia vem do grego e significa algo como “sem fome”’. Mas, na verdade, ele está inadequado, pois as pacientes – pelo menos nas fases mais iniciais da doença – sentem fome, mas negam tal sensação, repelindo todas as formas de alimentação.

+ LEIA TAMBÉM: Transtorno alimentar grave é altamente genético

Assim, a anorexia nervosa é caracterizada pela redução drástica da ingesta alimentar (que leva ao emagrecimento extremo), pelo medo intenso de engordar ou manter o peso dentro da faixa da normalidade, além da distorção da imagem corporal (mesmo severamente emagrecidas, as anoréxicas se percebem como gordas, “balofas”).

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Em alguns casos, as pacientes podem apresentar episódios isolados de compulsão alimentar seguido de comportamentos purgativos para evitar o ganho de peso, como vômitos auto-induzidos e uso de laxantes, diuréticos e remédios para emagrecer.

Os principais sinais da anorexia nervosa

Na prática, pode-se reconhecer as pacientes com a doença devido a alguns comportamentos:

  • Dieta diferente: Evita-se alguns alimentos de forma progressiva e , posteriormente, grupos inteiros são excluídos (gorduras, carboidratos, carnes e derivados de origem láctea). Às vezes, a alimentação fica restrita a bebidas sem açúcar, gomas de mascar dietéticas e alguns tipos de frutas e verduras. A ingestão calórica diária pode ficar em torno de ínfimas 100 a 200 calorias.
  • Rituais alimentares: Os alimentos são divididos em pequenos pedaços e separados de acordo com a cor, o tamanho e a textura.
  • Excessiva lentidão para comer: A refeição pode durar até duas horas
  • Interesse por culinária: Muitas pacientes preparam pratos sofisticados e de alta densidade calórica para os familiares
  • Rituais de verificação: há medição e pesagem de forma frequente
  • Comportamento de disfarce: A pessoa costuma se esconder sob roupas largas

+ LEIA TAMBÉM: Livro aborda transtorno alimentar

O que está por trás da anorexia?

Não há uma única causa conhecida para o desenvolvimento da anorexia nervosa.

É provável que a doença seja causada por uma combinação de fatores biológicos, psicológicos e ambientais.

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Estudos sugerem, por exemplo, que a genética pode desempenhar um papel importante, já que as pessoas com parentes em primeiro grau com anorexia nervosa têm uma chance 10 vezes maior de desenvolvê-la.

Agora, como fatores de vulnerabilidade psicológica, vemos traços de inflexibilidade, perfeccionismo e rigidez.

As pacientes anoréxicas representam aquele estereótipo das garotas perfeitas: primeiras alunas da classe, melhores bailarinas, comportadas, organizadas e pontuais.

+ LEIA TAMBÉM: Restrição à mesa aumenta risco de transtorno alimentar

Já como fatores ambientais relacionados à gênese da anorexia podemos mencionar:

  • Fatores familiares: há valorização excessiva de questões relacionadas ao peso e à forma corporal, além de comportamento alimentar disfuncional (restritivo ou compulsivo)
  • Influência da mídia e das redes sociais: esses espaços glorificam padrões de magreza inalcançáveis como ideais de beleza e à base de imagens de corpos irreais, digitalmente manipulados através de filtros e edições. Dessa forma, a magreza é considerada sinômino de auto-realização e poder, um passaporte para o sucesso – certamente alicerçado em terreno arenoso .
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As complicações relacionadas à anorexia

A doença está associada a uma miríade de complicações clínicas, que podem ser decorrentes da desnutrição ou dos métodos compensatórios inadequados, a exemplo de indução de vômitos; uso de laxantes, diuréticos, remédios para emagrecer, insulina e hormônios da tireoide; amamentação com a intenção de perder peso, entre outros.

Podemos entender que, para garantir a sobrevivência, o corpo entre numa espécie de auto-canibalismo, passando a consumir os próprios músculos , ossos , massa encefálica e órgãos.

Como resultado, as pacientes com anorexia apresentam, entre outras complicações:

  • Redução da massa cinzenta do cérebro, com prejuízos cognitivos
  • Redução da densidade mineral óssea, podendo levar a osteoporose
  • Prolapso da válvula mitral do coração, com palpitações
  • Dor, fraqueza e paralisia muscular
  • Obstipação e retardo no esvaziamento gástrico
  • Cabelos finos e quebradiços
  • Pele seca, amarelada e recoberta por lanugo (fina camada de pelo sobre todo o corpo)
  • Alterações na fertilidade
  • Alterações nos níveis de sódio e potássio, podendo levar a arritmias cardíacas potencialmente fatais

Tais alterações costumam ser revertidas com a recuperação de peso e manutenção da melhora do estado nutricional.

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Anorexia nervosa pode ser fatal

Vale ressaltar que a anorexia nervosa é a doença psiquiátrica de maior letalidade – os índices de morte atingem avassaladores 18%.

Uma das principais causas é suicídio. Para ter ideia, as taxas são 18 vezes maiores do que na população geral. Aproximadamente 50% das pacientes adultas relatam ideação suicida, e até 26% tentam tirar a própria vida.

Complicações renais e cardiovasculares também são grandes responsáveis pela alta incidência de mortalidade nesse grupo.

Segundo a Academy of Eating Disorders, o risco de morte prematura de uma mulher com anorexia nervosa é de 6 a 12 vezes maior do que na população geral.

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A imensa maioria das pacientas (70-90%) apresenta ainda outros transtornos psiquiátricos, como depressão, transtornos ansiosos, TDAH, transtorno por uso de álcool e substâncias e transtornos de personalidade.

+ LEIA TAMBÉM: O desejo intenso e o vício por comida

Como é o tratamento da anorexia

Ele deve ser multidisciplinar, com equipe especializada em transtornos alimentares. O time deve ser composto por: nutricionista, psicólogos, psiquiatras, clínicos e educadores físicos.

A psicoterapia é um pilar fundamental, sendo que a terapia cognitivo comportamental (TCC) é indicada para adultos, e a terapia baseada na família (FBT) é voltada para crianças e adolescentes.

A ideia é normalizar o comportamento alimentar e melhorar a aceitação e satisfação com o peso e as formas corporais, valorizando aspectos da vida que vão além da aparência.

Muito importante também é a orientação nutricional, com intuito de auxiliar no processo de aceitação de todos os tipos de alimentos e monitorar a ingestão calórica adequada à recuperação e manutenção do peso.

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Algumas vezes, o tratamento medicamento também se faz necessário, sobretudo para tratar as comorbidades – como ansiedade e depressão.

O tratamento hospitalar está indicado para casos críticos, quando, por exemplo, o IMC (índice de massa corporal) está abaixo de 14, percebe-se comportamento suicida, há ciclos de compulsão e purgação incoercíveis e ocorrem complicações clínicas graves.

Por meio do reconhecimento e tratamento precoces, é possível devolver a vida às pacientes. O prognóstico costuma ser favorável: cerca 50% delas apresentam remissão completa dos sintomas.

Para 30%, há um curso flutuante – ou seja, elas oscilam entre melhoras e recidivas. E 20% evoluem para o curso grave e refratário da doença.

Diante disso, a mensagem que gostaria de reforçar é: cuide de sua essência, pois a aparência, no fim das contas, desvanece.

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*Christina de Almeida dos Santos é médica psiquiatra, membro da Academy for Eating Disorders e consultora Internacional de Transtornos Alimentares na Kusnacht Practice- Suíça

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