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Racismo faz mal à saúde

O preconceito explícito e arraigado na sociedade aumenta o risco de pessoas negras desenvolverem problemas físicos e mentais. Como podemos curar essa chaga?

Por Maria Tereza Santos
Atualizado em 17 jul 2020, 17h30 - Publicado em 17 jul 2020, 16h20
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  • “Eu não consigo respirar!” A frase ficou mundialmente conhecida por ter sido a última proferida por George Floyd, um homem negro de 46 anos que havia acabado de ser preso na cidade de Minneapolis, nos Estados Unidos. Um policial branco o assassinou, no fim de maio, mantendo o joelho sobre seu pescoço por mais de oito minutos, enquanto ele estava algemado e de bruços no chão. A ocorrência foi gravada e o vídeo viralizou, gerando uma onda de protestos pelos EUA e o mundo em plena pandemia do coronavírus, como noticiou VEJA.

    Esse episódio lastimável reacendeu a luta antirracista e estimulou o posicionamento das instituições, inclusive na área da saúde. O respeitado periódico médico The Lancet publicou um artigo discutindo como o racismo afeta o bem-estar físico e mental da população negra e o classificou como “uma emergência de saúde pública”.

    “A raça é uma constituição social, e não biológica. Não é o fato de a pessoa ser negra que a coloca no lugar do adoecimento, mas é o preconceito que a leva a adoecer”, analisa a médica de família e comunidade Monique França, que atua no Rio de Janeiro. Mas como é que essa discriminação compromete a saúde? São várias vias, diretas e indiretas, que ajudam a responder. E a própria crise da Covid-19 traz o exemplo mais atual.

    Uma pesquisa do laboratório APM Research Lab mostra que, em terra americana, os negros têm morrido com o coronavírus quase três vezes mais que os brancos. A coisa não é diferente por aqui: pretos têm um risco 62% maior de falecer pelo Sars-CoV-2 em São Paulo, segundo a prefeitura da capital e o Observatório Covid-19. Já os pardos enfrentam uma possibilidade 23% maior. Juntos, os dois grupos compõem o que, de acordo com a classificação de raça/cor do IBGE, são os “negros”, e correspondem a 56% da população brasileira.

    “Esses dados podem ser explicados pelas condições a que essas pessoas já estão submetidas na sociedade”, interpreta Monique. Ora, não adianta pedir a alguém que não tem acesso a água encanada que lave as mãos com frequência nem que fique em casa quando exerce um trabalho informal — situações mais comuns entre os negros no país.

    “Precisamos ter em mente que 75% dos indivíduos mais pobres do Brasil são negros. A pobreza tem cor”, afirma a psicóloga Roberta Federico, integrante da Associação de Psicólogos Pretos dos EUA. Será que o problema se resume, então, à desigualdade social? Tudo leva a crer que não. “O brasileiro prefere falar que fulano é pobre a assumir que vivemos em um país racista”, opina Monique.

    Os reflexos do preconceito na saúde

    A discriminação em si pesa bastante no acesso a uma saúde de qualidade e reverbera até nas células do organismo. Sabemos que, por razões genéticas e ambientais, negros têm maior propensão a hipertensão, diabetes tipo 2 e anemia falciforme, por exemplo, mas o DNA sozinho não justifica por que eles sofrem mais com os impactos dessas doenças.

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    “O que me chama a atenção não é a população negra ter essas condições, mas não conseguir diagnosticá-las, não poder controlá-las e ir a óbito por causa delas, sendo que existe tratamento para todas”, avalia a médica da família do Rio. Isso tem a ver com os obstáculos para receber orientação e atendimento de saúde adequado, uma chaga que afeta até o momento das consultas.

    “Geralmente, médicos não me examinam direito ou não levam a sério o que eu falo. Dizem que os sintomas são ‘coisa da minha cabeça’ e que ‘dá para aguentar essa dorzinha’. Em hospitais, esquecem ou deixam de aplicar minhas medicações”, relata a paulistana Carolina (nome fictício), de 23 anos. Essa é uma história chocante entre tantas outras. De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde de 2013, dos brasileiros que já se sentiram discriminados por profissionais de saúde na rede pública, 13,6% mencionam o viés racial.

    “Uma vez quase vim a óbito. Cheguei ao consultório com o pé enfaixado devido a uma lesão que aconteceu com um prego enferrujado. O doutor mandou tirar a faixa do pé para avaliar. Ele olhou o furo no calcanhar e disse ‘O que você tem é virose, vá ao posto e toma um paracetamol, depois está liberada’. Eu não queria acreditar. Ele tinha acabado de ver o buraco no meu pé enquanto eu ardia em febre pela infecção”, descreve Carolina.

    O sociólogo Luiz Augusto Campos, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), explica que experiências do tipo são reflexo de uma ideia racista disseminada na sociedade e que se infiltra dentro de hospitais e consultórios. “A questão passa até pela perspectiva de que negros sentem menos dor, são mais fortes e têm tolerância a procedimentos mais duros”, elucida o professor. “A partir do momento em que a gente entende que a maior parte da categoria médica é branca e não reconhece que aquele outro corpo sente dor, falta empatia e sobra racismo”, complementa Monique.

    Tamanho preconceito mexe literalmente com o corpo. Um estudo da Universidade do Sul da Califórnia, nos EUA, indica que vítimas de preconceito racial tendem a ficar com o organismo mais inflamado, o que predispõe a uma série de doenças crônicas. A inflamação é provocada por uma resposta exacerbada a situações estressantes recorrentes, caso do racismo.

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    números racismo e saúde
    (Ilustração: Edson Ikê/SAÚDE é Vital)

    Violência em todos os sentidos

    O relato de Carolina expõe outros dois problemas mais vivenciados por mulheres negras: a violência e o machismo. De acordo com um levantamento da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), elas representam 65,9% das grávidas que sofrem violência obstétrica. E, segundo dados de 2015 do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde, são as principais vítimas de morte materna (53,6%), muitas vezes decorrente de doenças tratáveis, como a hipertensão na gestação. As dificuldades, porém, não se restringem aos serviços de saúde.

    O último Atlas da Violência, feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), aponta que 66% das 4 936 mulheres assassinadas em 2017 eram negras. Além disso, elas representavam 59,4% dos registros de violência doméstica da Central de Atendimento à Mulher — Ligue 180 de 2013. Monique França acredita que essas informações são importantes para entender e aperfeiçoar os mecanismos da Lei Maria da Penha, criada em 2006 para coibir esse crime. “É necessário repensar estratégias para chegarmos a quem está à margem dos direitos sociais. Mulheres brancas têm experiências diferentes das negras”, justifica.

    Preconceito institucionalizado, falta de acesso, violência… Dá pra imaginar que a cabeça da população negra padeça também. E realmente a prevalência de transtornos mentais é maior nesse grupo. Uma análise do Ministério da Saúde e da Universidade de Brasília (UnB) revela que, a cada dez jovens que se suicidam por aqui, seis são negros.

    Segundo Roberta, o racismo afeta o bem-estar psicológico de múltiplas formas, que incluem baixa autoestima por não se ver representado na mídia, distorção da autoimagem, retraimento social e traumas. São componentes que podem evoluir para um distúrbio mais sério. “Nos hospitais psiquiátricos, a maioria dos internados também é negra”, conta a psicóloga.

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    No livro Tornar-se Negro — As Vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em Ascensão Social (Editora Raízes), a psiquiatra Neuza Santos Souza traz exemplos de como o preconceito dentro da própria família negra ou mestiça leva à rejeição dos traços e à tentativa de se desfazer deles. Falamos de situações como alisar os cabelos, procurar cremes e outras formas de clarear a pele e até colocar pregador no nariz para afiná-lo. É um ingrediente que se soma a outros (como não ter educação, saúde ou moradia decentes) nesse caldo prejudicial. “Tudo isso desencadeia estresse e ansiedade”, diz Roberta.

    Maioria que é minoria

    Ser minoria entre psicólogos e psiquiatras — o que se aplica tanto ao paciente quanto ao profissional — também influencia. “Faço tratamento com um médico que é branco. Sei que minha baixa autoestima, ansiedade e depressão são, em parte, explicados pela cor da minha pele e tudo isso dificulta muito minha vida. Por exemplo, eu consegui entrar na faculdade só agora, com 24 anos, por causa de grana. Quando falei sobre isso, ele disse: ‘Acho que as pessoas exageram demais. Se você tivesse tentado antes, teria conseguido’. Ele minimiza minha dor e minha vivência. Disse que meus transtornos não têm a ver com as condições sociais em que estou inserida”, desabafa Júlia (nome fictício), de Belo Horizonte.

    É para atender às demandas desse grupo que surgiu a Psicologia Preta, abordagem nascida nos anos 1960 nos EUA durante a luta por direitos civis. “Ela não é uma versão ‘escurecida’ da tradicional. Começamos nossa história no Brasil em uma condição de desumanização. Tentar encaixar o sujeito negro no modelo europeu talvez não faça sentido”, explica Roberta. Essa vertente busca, por outro lado, um olhar para o equilíbrio mental que remeta às origens da própria população de matriz africana.

    Racismo tem cura

    O Brasil dispõe desde 2009, no âmbito do SUS, da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. “Ela exerce um papel fundamental: o reconhecimento do Ministério da Saúde de que existe racismo. Só que há uma dificuldade de fazê-la acontecer na prática”, comenta Monique. Roberta acredita que, pensando no bem-estar integral desses cidadãos, além do acesso a uma saúde melhor, é preciso investir e buscar melhorias em saneamento, transporte, educação e segurança pública.

    Se o governo não consegue resolver os problemas sozinho, iniciativas espalhadas pelo país se unem nessa batalha. É o caso do Instituto Sankofa de Psicologia, coordenado por Roberta e que oferece atendimento clínico e cursos no campo da psicologia africana no Rio, e do coletivo Negrex, formado por médicos e estudantes de medicina negros cocriado por Monique para acolher e engajar pessoas nesses debates.

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    Enfrentar o racismo e seus efeitos na saúde pública depende de que toda a sociedade reconheça que ele existe, se informe, converse a respeito e busque soluções (veja algumas atitudes bem-vindas no quadro ao lado). De acordo com o professor Campos, dicussões e saídas para a questão da raça não podem ficar restritas à população negra. A transformação no sistema convoca todo mundo a rever ideias, condutas e comportamentos. Que a comoção pela morte de George Floyd traga um novo fôlego para mudarmos de verdade.

    atitudes contra o racismo

    (Ilustração: Edson Ikê/SAÚDE é Vital)

    O DNA do brasileiro também é negro

    Não é de hoje que se sabe que pessoas negras são excluídas e negligenciadas em pesquisas médicas. Cerca de 80% das informações genéticas analisadas são de brancos com origem europeia. “Quando você faz estudos para produzir tratamentos com um grupo que não é representativo do nosso povo, não dá para saber como parte da população responderá a eles”, explica a geneticista Lygia da Veiga Pereira, da Universidade de São Paulo (USP).

    A professora coordena uma iniciativa que pretende suprir lacunas como essa, o projeto DNA do Brasil, criado pela USP com o suporte da Dasa. O trabalho vai mapear o genoma de milhares de brasileiros, incluindo os negros, e visa contribuir com dados sobre a predisposição deles a doenças e até terapias mais eficazes a esse grupo. “Com isso poderemos monitorar problemas mais cedo e aumentar as chances de cura”, diz Lygia.

     

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