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Pãodemia: a atividade do momento

Na quarentena, o mundo redescobriu a magia de preparar pães em casa. E você, já botou a mão na massa? Render-se a essa prática nutre o corpo e a mente

Por Regina Célia Pereira
19 jun 2020, 08h56
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A mania de fazer pão pegou durante a quarentena. (Foto: Katrin Ray Shumakov/Getty Images)
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Entre tantas “façanhas”, o novo coronavírus tem conseguido mesclar o passado com o que existe de mais moderno. Enquanto cientistas buscam vacinas por meio de biologia molecular e manipulação genética, uma medida que se destaca pela eficiência em estancar o avanço da Covid-19 é o distanciamento social, método usado pelo menos desde a Idade Média. A mistura de tecnologia de ponta com o que é vintage também marca a alimentação. Para alguns, basta um clique em aplicativos de celular para ter comida à mesa. Outros preferem botar a mão na massa. Literalmente. O preparo do pão nosso ganha, a cada dia, novos adeptos. É o que se apelidou por aí de “pãodemia” — ainda que muitos reprovem a alcunha, justamente por se tratar de um alimento que tem um quê de sagrado. Mas a verdade é que os fornos andam aquecidos nos quatro cantos do planeta. Inclusive, há relatos de que certos itens essenciais à panificação sumiram das prateleiras do mercado.

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(Ilustrações: Letícia Raposo/SAÚDE é Vital)

Aqui no Brasil, uma pesquisa da Nielsen, do mês de março, já indicava um aumento de 31% na busca da cesta de commodities, que engloba produtos como arroz, feijão e… farinha. Ora, com a modificação da rotina trazida pela quarentena, houve a redescoberta da cozinha. “Antes, na correria do cotidiano, eu recorria à praticidade da máquina de pães. Agora, tenho investido na fermentação natural, que requer dedicação”, relata a nutricionista Maristela Strufaldi, da Sociedade Brasileira de Diabetes.

Embora exista uma enorme variedade nas receitas, há consenso entre os experts de que o tempo é o ingrediente principal. “Com pressa fica mais difícil alcançar bons resultados”, avisa a chef Marta Carvalho, da Martoca Padeira, no Rio de Janeiro. Marcos Carnero, da Miolo Padaria Artesanal, na Serra da Cantareira, em São Paulo, concorda: “Para fazer pão, é preciso paciência, concentração e equilíbrio, quase como uma oração”.

Acompanhar o processo com tranquilidade é, no mínimo, a garantia de belas experiências. A começar pelo contato com a massa durante a sova, passando pela visão do alimento crescendo no forno e pelo aroma que invade a casa. O que dizer do barulho do corte da faca que revela a crocância da casca? E, finalmente, a degustação, que traz à tona todas as nuanças da receita. Em momento tão difícil, o tempo passa mais ameno.

Paciência na jornada

Tranquilidade: o pesquisador paulistano Luiz Américo Camargo, que dá aulas sobre pães, faz questão de frisar que, em primeiro lugar, é fundamental divertir-se com a atividade. “Faça para você, e não para postar a foto perfeita”, orienta. “Tenha atenção com os processos, treine e saiba que o primeiro pão nunca vai ficar perfeito”, completa.

O segredo é insistir. Outra dica é observar os horários. “Não significa que precisa estar de olho o tempo todo, aprisionado. Basta intervir nos momentos certos”, aconselha o expert.

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Pitadas de experiência: “Organização é indispensável a qualquer padeiro, do iniciante ao mais experiente”, ensina a chef carioca Marta Carvalho. Conforme se ganha bagagem, dá para arriscar com diferentes níveis de hidratação da massa, além de apostar na incorporação de farinhas diferenciadas e de outros ingredientes que deixam a preparação mais rica — em termos de sabor e nutrição. Ao adquirir segurança, as experiências tendem a ser mais certeiras, e cai o risco de ver a massa desandar.

Passando de fase: Quem anda satisfeito com seus resultados já pode investir em utensílios profissionais, como o banneton. Trata-se de um cestinho onde a massa é colocada para crescer entre a sova e a modelagem. Nessa etapa avançada, há maior domínio da arte da fermentação natural, mais habilidade para trabalhar os níveis de acidez e, dessa forma, modificar texturas e o perfil de sabor do pão. “É fundamental ter em mente que o aprendizado nunca terá fim”, salienta Luiz Américo.

Do Egito antigo para os dias de hoje

O surgimento do pão, da forma parecida com a que conhecemos, se deu no antigo Egito, há pelo menos 6 mil anos, por pura sorte. Conta-se que alguém esqueceu ao relento um pouco de papa de trigo com água. Milagrosamente, micro-organismos produziram reações químicas que provocaram um inesperado crescimento daquela massa. Se a história foi mesmo assim, ninguém conseguirá provar.

O certo é que os egípcios ficaram empolgados com a novidade. Criaram fornos específicos, feitos com tijolos de lama, e chegavam a reunir um grande número de pessoas ao redor deles, esperando o processo mágico. Mantinham os olhos fixos, ansiando pela transformação, que achavam ser obra dos deuses.

Agora, com o confinamento, é possível testemunhar de perto todas as etapas do procedimento. “Dá até para intercalar com outras tarefas”, diz a nutricionista gaúcha Irany Arteche. Ela, por exemplo, se lançou ao desafio de aprender a fazer o fermento de batata que sua avó Eugênia usava no início do século passado. “O processo é simples e traz resultados belíssimos”, comemora.

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Segundo Irany, que é professora de gastronomia, o que conta mesmo é a observação, a intimidade com o alimento. Batizado de “fermento da nonna”, o preparado leva o tubérculo espremido, farinha de trigo comum e água. Embora seus pães não sejam assados no fogão a lenha, o perfume vindo do forno a transporta para a cozinha de dona Eugênia, em Caxias do Sul (RS).

Ao criar seu fermento, a fotógrafa mineira Nani Rodrigues também aproveitou para fazer uma homenagem: batizou de Maria, nome de suas avós. Foram muitas tentativas até a mistura vingar e crescer. “Carregava Maria dentro de um pote de vidro decorado com glitter nas viagens entre São Paulo, Belo Horizonte e o interior de Minas”, conta. Sua persistência, aliada a livros e cursos, resultou em pães incríveis que enfeitam seu Instagram.

“Vi o número de seguidores multiplicar com a quarentena”, comenta. Muitos pedem dicas e Nani, generosamente, ensina em vídeos. “Um dos segredos é eleger uma receita e testar infinitamente”, sugere.

O nutricionista João Motarelli, do Departamento de Nutrição da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp) e estudioso de comportamentos alimentares, ressalta que o momento do preparo promove uma conexão saudável com o alimento. “Observar as etapas do processo traz a atenção plena”, afirma.

Estar presente no passo a passo (e na degustação) melhora o foco e atenua o estresse — puro mindfulness. Não faltam trabalhos científicos comprovando o poder da culinária nas emoções. “E, quando o pão fica pronto, vem a satisfação de conferir o resultado da sua obra”, constata Motarelli.

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Fermentos e farinhas de trigo

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(Foto: The Picture Pantry/Getty Images)

Fermento natural: levain, sourdough, masa madre… O nome muda conforme a região do mundo. São leveduras e bactérias do grupo dos lactobacilos capazes de garantir acidez e barrar micro-organismos indesejados. Produzem bolhas de gás e estão por trás da consistência do miolo e do crescimento do pão. Ainda liberam compostos que despertam o aroma incrível e facilitam a digestão do alimento. Para iniciar a produção, só precisa de farinha, água e ar. A mistura deve repousar e ser nutrida — com mais farinha e água.

Fermento químico: obrigatório em bolos e panquecas, não é indicado para pães. Sua ação ocorre pela interação de uma substância alcalina, no caso o bicarbonato de sódio, e de um componente ácido que, juntos, produzem dióxido de carbono. O efeito é rápido. Se essa for sua única opção, siga direitinho todos os passos da receita escolhida. Mas o certo mesmo é evitar esse fermento no pão.

Fermento biológico: nas versões seca ou fresca, trata-se de um ingrediente produzido a partir de uma das cepas que compõem os fermentos naturais — em particular a Saccharomyces cerevisiae. Sua concentração, porém, é bem elevada, acelerando a geração de gases e expansão da massa. Logo, use em menor quantidade. Aí o sabor se desenvolve com calma, respeitando a fermentação.

Farinha de trigo refinada: é produzida a partir da fração chamada de endosperma, estrutura que guarda o amido e a proteína, entre outras riquezas. Para obter o pó branco, fino e de sabor suave, os grãos são limpos, mergulhados em água e passam por vários cilindros. Desde 2002, todas as farinhas brasileiras são turbinadas com ferro e ácido fólico para evitar a anemia e a malformação fetal.

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Farinha de trigo integral: há duas formas de obtê-la. Uma se dá logo no início da moagem, quando as máquinas não maceraram os grãos totalmente. Também pode resultar da mistura de farelo de trigo com a farinha refinada. O fato é que as duas versões têm um ponto em comum: carregam boas doses de substâncias bacanas, como minerais, vitaminas do complexo B e fibras da casca do cereal.

Outros ingredientes (e a saúde nessa história)

Embora os egípcios sejam considerados os primeiros padeiros, há quem defenda que foram os gregos que deram ao pão um toque mais sofisticado, já que eles incluíram sementes aromáticas e outras delícias nas receitas.

“Entre os benefícios de fazer o pão em casa, destaco esse contato com vários ingredientes”, analisa a nutricionista Andréa Esquivel, da Clínica Cedig — Centro de Diagnóstico em Gastroenterologia, em São Paulo. “As escolhas ampliam o universo, trazem mais diversidade e riqueza”, defende. Sem contar que aumentar o repertório agrega valor nutricional às fornadas e à mesa da família.

Porém, a busca por mais saúde requer certa destreza. “Um pão produzido com farinha totalmente integral é mais nutritivo, mas nem sempre terá um bom volume”, exemplifica o padeiro francês Pascal Menard, do Grupo Pão de Açúcar. A dica é misturá-la com o tipo refinado e ficar de olho nos teores de hidratação.

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(Ilustração: Letícia Raposo/SAÚDE é Vital)
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Para trabalhar com farinhas sem glúten, como a de arroz, outros truques são bem-vindos. O chef-padeiro Rogério Shimura, da Levain Escola de Panificação e Confeitaria, na capital paulista, aconselha incluir itens como gomas e psyllium. Quando utilizados na proporção adequada, eles colaboram para a consistência desejada da receita.

Que fique claro: não é tão simples abdicar do glúten. “Se imaginarmos o pão como uma catedral, ele seria uma espécie de arcabouço, porque dá sustentação à massa”, descreve o chef Carlos Siffert, consultor da Casa Santa Luzia e professor na Escola Wilma Kövesi de Cozinha, ambas em São Paulo.

O glúten é, portanto, essencial para a textura e para a formação daqueles característicos buraquinhos — os alvéolos do miolo. “Falamos de um complexo proteico, com destaque para gliadinas e gluteninas, que são elásticas e resistentes. Ao mesmo tempo, elas retêm os gases expelidos pela fermentação”, diz Andréa, que também é professora de gastronomia. A boa sova tem sua parcela de contribuição nessa operação.

Para celíacos, o glúten é proibido, já que prejudica a mucosa intestinal. Há ainda grupos que sofrem de intolerância e devem evitar. Mas quem não faz parte dessa turma não precisa temê-lo.

Principalmente ao provar pães caseiros e de fermentação natural, que, por obra dos micro-organismos presentes ali, tendem a ser mais bem digeridos. Não bastasse, estão livres de aditivos químicos, conservantes e afins.

Quanto aos acompanhamentos, fica a gosto do freguês — ainda que, na minha humilde opinião, a manteiga seja a pedida número 1. “Azeite, queijos, pastas de ervas, geleias, tomate e abacate são alternativas”, lista Maristela.

Use a criatividade. Mas não deixe de prová-lo puro: é o pão em sua versão mais virtuosa. E ele tende a sair melhor a cada fornada.

Toques de sabor

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(Foto: Sol de Zuasnabar Brebbia/Getty Images)

 

Oleaginosas: castanhas, amêndoas, nozes e até amendoim enchem os pães de nutrientes, num combo de minerais, gorduras boas e vitaminas. Para algumas receitas, vale triturar, mas há quem prefira utilizar esses alimentos inteiros.

Azeitonas: as pretas dão coloração especial ao pão. Sem contar que são saborosas e aromáticas. Um aviso: elas são vendidas em conservas lotadas de sal. Além de desandar a receita, o abuso não é nada bom para o corpo.

Frutas secas: uvas-passas, figos, ameixas, bananas e outras frutas desidratadas sobressaem pelo sabor adocicado. Sem falar que são excelentes redutos de substâncias do bem, como as fibras, que ajustam o trânsito intestinal.

Sementes: as receitas mais tradicionais trazem as de papoula, girassol, abóbora e gergelim. Mas chia e linhaça caem como uma luva. Até porque esbanjam gorduras benéficas de ação anti-inflamatória, além de vitaminas A e E.

Ervas: tomilho, alecrim, orégano, sálvia, entre outras, perfumam as massas e aparecem especialmente em receitas de foccacia. Algumas têm propriedades digestivas, caso do alecrim. Ainda enfeitam os pães.

Queijos: parmesão, gorgonzola e outros queijos fortes costumam surgir em pães rústicos. Emprestam seus aromas e contribuem com sabores intensos. Pedem habilidade do padeiro. E, outra vez, cabe cautela por causa do sódio.

Cacau: ao incluir o pó desse fruto tão especial, o pão ganha pitadas de flavonoides, grupo de compostos protetores das células. Também adquire elementos promotores de bem-estar mental, caso da teobromina.

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