A história do Brasil se confunde com a do café.
Parece poesia, mas é a mais pura verdade: nosso “ouro negro”, que carregou a economia e foi responsável pelo desenvolvimento industrial do país a partir do século 19, ainda hoje é um dos nossos principais artigos de consumo e exportação.
Segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), sua cadeia produtiva gera mais de 8 milhões de empregos diretos e indiretos e cerca de 2 milhões de hectares de terras estão ocupados por cafezais.
Para 2023, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) estima a produção de 54,7 milhões de sacas de 60 quilos de café, volume que representará mais de 30% da safra mundial.
Por aqui, café só não é mais consumido que água. E nosso desjejum se chama “café da manhã” porque é quase inconcebível começar o dia sem a bebida. Goles que dão energia e, segundo novas e velhas pesquisas, entregam benefícios quando ingeridos na dose certa.
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À medida que o consumo aumenta, o café também se gourmetiza. E, na contramão, as questões climáticas batem na porta: a área adequada para a produção do grão poderá ser reduzida pela metade até 2050 se a Terra continuar esquentando no ritmo atual.
É hora, portanto, de abrir não só o paladar mas também os olhos para o café, essa bebida que virou sinônimo de encontro e afeto.
“As pessoas começam o dia tomando café, finalizam o almoço com café, convidam amigos para tomar um cafezinho…”, comenta a barista Concetta Marcelina, professora do Senac.
Estando há mais de 200 anos por aqui, e sem perder a tradição, seu consumo também tem se atualizado diante de novos hábitos e tendências.
Na época dos nossos avós, a preferência era pelo café preto, intenso, puro e forte, que ajuda a acordar e a trabalhar. Com o passar do tempo, açúcar, leite e até chocolate entraram na xícara.
Hoje, tomar café também virou degustação, com um grande valor gastronômico.
“Há 20 anos não havia essa concepção, e confesso que não entendia por que as pessoas gostavam tanto de café”, recorda Concetta, que, na época, não consumia a bebida. “Mas, a partir de 2003, especialistas da Brazil Specialty Coffee Association (BSCA) procuraram o Senac para oferecer um curso de barista. Foi aí que a concepção da bebida mudou para mim”, diz.
Concetta não está sozinha nessa. A professora do Senac conta que o objetivo da BSCA era treinar pessoas a servir e a se especializar nos melhores cafés. Ela fez parte da primeira turma, e foi levada para uma das fazendas do grupo, que só produzia grãos especiais para exportação.
“Foi ali que tive contato com café de verdade, e aí o queixo cai”, lembra, empolgada, Concetta. Na época, apenas cinco fazendas no país se dedicavam à produção dessa matéria-prima selecionada, mas hoje ela representa 20% das exportações nacionais.
Tipos de café
A qualidade, os sabores e o preço variam. Entenda as classificações mais comuns usadas no mercado
Extraforte
Pó preto, fino, com alto amargor. Mais barato, pois pode ter grãos ruins muito torrados para mascarar o sabor.
Tradicional
Pó com mistura de grãos (blend) ou apenas uma espécie. O preço é bom, mas alguns grãos não são perfeitos. A torra e o amargor variam.
Superior
Qualidade e preço mais elevados. É considerado suave, com um amargor e acidez leve. Já pode ser vendido em grãos.
Gourmet
Tem baixo amargor, acidez e doçura moderada a alta, com notas de chocolate. O preço também sobe.
Especial
Exige somente grãos perfeitos e selecionados e passa pela aprovação de um degustador certificado. O mais caro.
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Desvendando o melhor do café
O que se chama de “café especial” nada mais é que um café feito com grãos perfeitos, sem defeitos e impurezas, oferecendo uma grande gama de sabores e sentidos ao ingerir a bebida.
Para garantir essa qualidade, a Specialty Coffee Association (SCA) criou a Metodologia de Avaliação Sensorial, que pontua os preparos de acordo com dez características.
Para ser classificado como “especial”, obrigatoriamente o café precisa receber pelo menos 80 pontos — sendo que o máximo é 100.
Essa qualidade é levada tão a sério que os lotes de grãos de primeira são avaliados por experts no assunto antes de serem comercializados.
Mas qual seria a diferença essencial desse café ao provar? Não tem amargor?
“Tem sim, essa característica vem da cafeína, mas no café especial isso é algo positivo, resultado de toda uma cadeia produtiva cuidadosa, desde o plantio até a torra. O amargo dos cafés tradicionais não é natural, é resultado de grãos com defeito ou torra malfeita”, explica o especialista em café especial Caio Tucunduva, fundador da No More Bad Coffee.
Todo esse cuidado, claro, pesa no custo: uma xícara de um café premiado já chegou a ser vendida por 128 reais no Brasil, na renomada cafeteria Pato Rei, em São Paulo.
“Esses lotes mais caros são os primeiros que acabam. O público que aprecia café especial gosta da experiência de tomar algo novo e de alta qualidade, e paga por isso”, afirma o musicista, barista e especialista em café especial Tiago de Mello, fundador da cafeteria paulistana.
“Quando eu compro um lote de grãos que não conheço, é realmente um trabalho artístico descobrir a forma de obter sua melhor versão. Exige testagem de tipos de torra e métodos de extração para saber o que vai se expressar melhor”, explica.
E se engana quem acha que apreciadores de bons cafés só tomam a bebida pura. Na verdade, um dos carros-chefes da Pato Rei é o café gelado, uma versão do cold brew.
“A gente se inspirou nos cafés coreanos, e faz uma coquetelagem com café, creme de leite fresco e açúcar de confeiteiro, que não fica doce, mas estável, resultando num drink equilibrado e delicioso”, conta Mello. Sim, no frio ou no calor, café também envolve arte.
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Na linha da inovação, Tucunduva oferece serviços de personalização de cafés especiais para marcas. “Através dos blends, misturas de grãos, conseguimos criar sabores, valorizando o que o cliente quer transmitir”, afirma.
E os cafés especiais também estão em lugares populares: a famosa rede We Coffee oferece, além de docinhos coloridos, uma gama de bebidas premium. “Para ajudar o cliente a escolher, nos totens de venda disponibilizamos as características: café mais frutado, café mais cítrico, com alusão a chocolate etc. Não adianta só falar ‘café especial’, precisamos ajudar as pessoas a perceberem os sabores”, conta a barista da rede, Elena Boscato.
Na unidade da Avenida Paulista, em São Paulo, eles investiram na primeira máquina de café Mod Bar do país, que possui estações independentes para processos como extração e vaporização, essenciais para fazer um bom cappuccino, por exemplo.
“Além de oferecer qualidade, a cafeteira chama a atenção pela beleza. Tem gente que tira foto com ela. E isso contribui para a disseminação da cultura de bons cafés”, afirma Júnior Vieira, head de marketing da We Coffee.
Mas você pode estar se perguntando: além do sabor, existe outra vantagem ao consumir café especial em vez do café de gôndola, que é muito mais barato? Pode apostar.
Faz bem para a saúde
Para captar as diferenças entre eles, primeiro é preciso entender de onde vêm os benefícios nutricionais dessa bebida natural tão amada.
Vamos lá: nos grãos de café, tem cafeína, açúcar, minerais, vitaminas e diversos óleos essenciais, que contêm compostos fenólicos.
Essas substâncias possuem grande capacidade antioxidante, o que resulta em uma série de benesses a nossas células e à saúde.
“Estudos mostram efeitos na proteção contra o câncer, o diabetes, a pressão alta e doenças do fígado, mas isso consumindo café de boa qualidade e na medida certa”, afirma a cientista de alimentos Elizabeth Torres, professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).
Nos laboratórios de pesquisa, boas notícias não param de surgir. “Descobrimos que o café atua na produção de um precursor de um importante neurotransmissor, a dopamina. Ainda estamos investigando, mas é fato que há muito mais nele do que se sabe”, conta o agrônomo Antonio Chalfun, professor da Universidade Federal de Lavras (UFLA), em Minas Gerais.
Mas um detalhe essencial nessa história é que a composição ideal do café depende de fatores como práticas agrícolas, processamento e condições de estocagem e torrefação.
“Quando o grão fica muito escuro e brilhoso, muita gente acha lindo, mas é porque a torra passou do ponto. E aí se perdem os benefícios”, avisa Tucunduva, que também é mestre torrador.
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Cafezais regenerativos
Já deu para perceber que não há café bom sem lavouras de qualidade, que respeitem o meio ambiente e processos sustentáveis.
E essa é uma tendência global. A Nespresso, que reinventou a forma de tomar café através das cápsulas para máquinas de espresso, leva isso a sério.
“Inventamos o café fracionado lá na década de 1980 para combater o desperdício do produto. Nosso café é de qualidade não só para trazer aquela imagem de uma xícara perfeita, mas porque é fruto de uma cadeia que respeita o ambiente e as pessoas envolvidas no cultivo”, diz Cecília Seravalli, gerente de sustentabilidade da marca.
Hoje, mais de mil fazendas espalhadas pelo país que fornecem grãos especiais para a empresa já trabalham com agricultura regenerativa, que visa diminuir o impacto no solo e no clima das lavouras e minimizar os efeitos das próprias mudanças ambientais nos cafés.
Não se trata de capricho. O café, idealmente plantado nos trópicos, está sendo diretamente ameaçado pelas altas temperaturas globais.
“Elas prejudicam o desenvolvimento da planta e aumentam a reprodução das pragas no cafezal, como o bicho-mineiro e a broca. Se continuar do jeito que está, os efeitos negativos virão muito rápido”, explica a agrônoma Madelaine Venzon, da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig).
“Não só o aumento de temperatura como a grande variação na disponibilidade hídrica e também a alta exposição da planta ao sol impactam o resultado das safras”, expõe a agrônoma Dalyse Toledo Castanheira, professora da UFLA.
E não é só o Brasil que colherá as consequências. “Haverá repercussões para toda a indústria mundial de café, uma vez que abastecemos o planeta”, adverte.
Environmental, Social and Governance (Ambiental, Social e Governança), ou ESG, é a sigla do momento. Ela contempla o desempenho de empresas nas áreas de preservação do meio ambiente, responsabilidade com a sociedade e transparência empresarial. Essas ações são valorizadas pelos principais importadores do café brasileiro, o que faz os produtores procurarem se alinhadar às novas metas. No segmento de cafés especiais, a rastreabilidade facilita a fiscalização. Mas, entre produtores de cafés de gôndola, como tradicionais e extrafortes, isso ainda é um desafio.
O cenário é preocupante, mas nosso país, que hoje é responsável por cerca de 40% das publicações científicas sobre café no globo, está avidamente caçando soluções para se antecipar à crise.
Quando contatei a UFLA, universidade brasileira que mais investiga o assunto, o professor Rubens José Guimarães, do Departamento de Agricultura, respondeu com a seguinte mensagem: “Temos mais de 100 especialistas pesquisando café. Posso levar uns colegas para a entrevista?”
Resultado: uma mesa-redonda com sete professores explanando suas linhas de estudo e inovações para garantir o futuro do nosso café.
A base desse plano é a agroecologia. E há projetos não só para aprimorar os fertilizantes e reduzir seus impactos ambientais como até a invenção de um protetor solar para pulverizar no cafezal.
As inovações não param. Se depender dessa turma, nunca vai faltar o grão que virou símbolo de Brasil.
O que cada um de nós pode fazer
O maior impacto ambiental do café está nas plantações, mas, como consumidores, podemos ajudar
Reciclar
Muitas embalagens e cápsulas de café, feitas de alumínio, são 100% recicláveis. Empresas como a Nespresso possuem opções de coleta. Cabe aos consumidores contribuir.
Não desperdiçar
Eis um ditado popular: “O maior consumidor de café é a pia”. Isso porque se produz muito mais bebida do que se consome, descartando-se boa parte. Talvez seja melhor rever as medidas.
Valorizar a rastreabilidade
Cafés especiais têm todo o seu percurso de produção verificável: qual região, quem produziu, os métodos usados, como é a lavoura etc. Isso ajuda a optar por origens que respeitam o planeta.
Aprenda a avaliar
Há um protocolo que pontua as bebidas. Veja algumas características para levar em conta
Fragrância e aroma
São coisas diferentes: fragrância é o cheiro do pó de café seco e aroma é após ser molhado. Isso é avaliado sem preparo.
Sabor
Checam-se as notas sensoriais, que são alusões a gostos: “notas de baunilha” ou “notas de cravo”, por exemplo.
Doçura
Apesar de café puro parecer amargo para os leigos, a torra realça os açúcares do grão, e isso é avaliado por experts.
Acidez e corpo
Uma boa acidez valoriza a doçura, e corpo mede o preenchimento do café na boca — se é leve, acentuado etc.
Balanço
Junção de sabor, acidez e corpo, para averiguar se os três combinam, gerando um bom conceito para o provador.
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*Agradecimentos especiais aos pesquisadores e professores Mario Lucio de Resende, Douglas Guelfi Silva, Tulio Junqueira e Whasley Ferreira Duarte, da UFLA, que também contribuíram com a reportagem. As fontes dos dados citados nas imagens são a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Pesquisa Hábitos e Preferências dos Consumidores de Café – Associação Brasileira da Indústria de Café (ABIC).