Alimentação infantil: como lidar com o desejo das crianças por açúcar?
Embora o limite de açúcar para crianças seja rígido, um dos maiores desafios é contornar os pedidos e o apetite dos pequenos num mundo cheio de guloseimas
Fácil na teoria, difícil na prática. Entre tantas recomendações dadas aos pais em nome do bem-estar dos filhos, sem dúvida uma das mais complicadas de cumprir, ao lado da restrição de telas, é evitar ou moderar o consumo de açúcar.
Que atire a primeira bala o adulto que nunca comeu um doce escondido dos pequenos, que nunca prometeu sobremesa à turma que almoçasse direitinho ou que nunca usou o chocolate como moeda de troca.
Atitudes do tipo estão distantes do que defendem os guias e os profissionais da área, mas não dá para negar que também precisamos naturalizar as coisas e trazer a discussão à vida real — afinal, o açúcar não deveria ser visto como veneno nem motivo de culpa.
“O ponto é que separar os alimentos entre bons e ruins, usá-los como premiação ou mesmo proibi-los atrapalha a relação da criança com a
comida”, avisa a nutricionista Mariana Del Bosco, colunista de Veja Saúde. Ou seja, o segredo está numa boa conversa e na educação à mesa.
Digamos que as diretrizes brasileiras são bem rigorosas nas orientações sobre o consumo de açúcar nos primeiros anos de vida. Elas indicam que crianças com menos de 2 anos não devem ingerir nadica de nada do ingrediente nem de produtos feitos com ele.
“Sabemos que a alimentação correta até os 2 200 dias de vida é fundamental para o futuro da criança”, justifica a pediatra Virgínia Weffort, presidente do Departamento de Nutrologia da Sociedade Mineira de Pediatria. A partir dos 2 anos, doces são liberados, mas com muitíssima parcimônia.
A Associação Americana do Coração, por exemplo, estipula um limite de 25 gramas de açúcar por dia, o equivalente a 5 colheres de chá. Só que, nessa conta, entra o que adicionamos a receitas e refeições em casa, mas também a quantidade presente nos produtos industrializados. Por que tão pouco? Para reduzir o risco de ganho de peso, cáries e diversas doenças crônicas.
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“Temos uma preferência pelo paladar doce desde cedo. Porém, se a ingestão desses alimentos é frequente a partir dos 6 meses de idade, pode haver dificuldades na introdução alimentar e na aceitação de comidas que não tenham esse sabor”, destrincha Mariana.
O desafio é que a oferta de guloseimas por aí é imensa. Em casa, na rua, na escola… Cedo ou tarde, as crianças são convidadas a uma eterna festa de Halloween. E o problema é que o ingresso ao mundo dos doces (nem tanto das travessuras) está acontecendo cada vez mais precocemente.
É sobre isso que joga luz o Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani), que acompanha 14 558 crianças menores de 5 anos pelo país. Esse trabalho descobriu que, entre bebês de 6 a 23 meses, a frequência de exposição ao açúcar chega a quase 70%, e, na faixa dos 2 aos 5 anos, bate 87%.
“Observamos que, desde os 6 meses de idade, quando a criança começa a receber os primeiros alimentos além do leite materno, há um considerável percentual ingerindo açúcar, e isso vai aumentando com a idade”, diz a nutricionista Elisa de Aquino Lacerda, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e uma das coordenadoras da pesquisa.
E não falamos só do açúcar refinado e das colheradas em sucos, frutas e afins. As doses a mais também se escondem em produtos prontos à venda no supermercado, que viraram presenças marcantes nas refeições em casa e nas lancheiras da escola.
Um estudo realizado pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição da Universidade de São Paulo (USP) na cidade de Pelotas (RS) investigou a presença de ultraprocessados — alimentos industrializados que geralmente são ricos em açúcar e aditivos químicos — na rotina de crianças pequenas, assim como seu possível impacto na saúde delas.
Constataram que, em dois anos de vida, o consumo de bebidas de caixinha, sucos em pó, biscoitos, achocolatados, refrigerantes, salgadinhos e companhia decola.
O campeão é o achocolatado, cuja ingestão frequente salta de 43% entre as crianças de 2 anos para 66% nas de 4. O trabalho evidencia, ainda, uma associação entre o consumo elevado de ultraprocessados e o aumento no índice de massa corporal (IMC) e a diminuição na altura esperada de meninos e meninas.
Em outras palavras, existem efeitos desse padrão alimentar no peso e na curva de crescimento das crianças. São consequências que podem se estender no longo prazo.
“O alto consumo desses alimentos aumenta o risco de excesso de peso não só na infância mas também na adolescência e na vida adulta, elevando a exposição dessas pessoas a problemas relacionados à obesidade, como as doenças cardiovasculares”, examina Elisa.
Os números desse fenômeno estão no Painel de Obesidade Infantil do Ministério da Saúde para quem quiser ver: 14,5% dos brasileiros de até 9 anos estão muito acima do peso. O que fazer diante desse cenário amargo?
Como balancear o cardápio e dosar o açúcar com responsabilidade sem cair numa postura punitiva ou irrealista? Bem, o pediatra, com o apoio de nutricionistas, pode orientar os pais com o planejamento alimentar — e existem coordenadas para isso em documentos como o Guia Alimentar para Crianças Brasileiras, publicado pelo governo.
“Mas as escolhas em casa estão nas mãos dos adultos, e o equilíbrio é a chave de tudo. Por isso, no dia a dia, sempre vale dar aquela boa olhada nos rótulos dos produtos industrializados e buscar fazer as melhores escolhas”, defende a pediatra Ana Escobar, professora da Faculdade de Medicina da USP.
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A recomendação de privilegiar comidas naturais e frescas nunca perde atualidade, só que a gente sabe que, na correria, produtos prontos entram vez ou outra em cena — quando não viram a base da dieta.
Nesse sentido, as novas regras de rotulagem, que passaram a valer no fim do ano passado, ajudarão os consumidores a visualizar melhor, com uma lupa e informações na frente das embalagens, quais opções estão lotadas de açúcar adicionado (e também de sódio e gordura saturada). Melhor evitar o que estiver estampado com esse aviso!
Desafios fora do lar
Todos os pais com filhos que já levam lancheira à escola sabem o peso que ela carrega. Se não é fácil balancear a alimentação em casa, que dirá no recreio, que ainda pode ter uma lanchonete por perto! Então como preparar algo gostoso e saudável sem abrir mão da praticidade?
Para começar, tenha em mente que o Programa Nacional de Alimentação Escolar sugere que apenas 20% do total das calorias diárias deve se concentrar no lanche.
“Nesse momento, priorize alimentos in natura e minimamente processados, variando a oferta no dia a dia”, indica Virgínia. Frutas são sempre uma ótima pedida, mas a lista não precisa ficar restrita a elas. Dá para apostar em batata-doce, milho, tapioca, cereais integrais, castanhas, tomatinho, iogurte, pão caseiro etc.
Para as bebidas, tente passar longe dos néctares de caixinha e dos preparos em pó, que costumam conter níveis de açúcar próximos aos dos refrigerantes. O ideal é investir em suco integral e água — muita água mesmo! Outra dica valiosa é convidar o pequeno a participar da confecção da lancheira.
“O envolvimento na escolha dos itens faz com que a composição fique mais interessante para ele, além de ajudar no processo de educação alimentar e nutricional”, ressalta Mariana.
E, como nada na vida precisa ser inflexível, dá até para combinar um dia da semana em que a criança poderá levar alguma guloseima para o recreio, sempre pensando na qualidade e na quantidade da alimentação como um todo. Nada de mandar um pacote inteiro de bolacha recheada, por exemplo.
Não é conversa de mãe: comer (e beber) produtos adocicados de forma exagerada pode semear confusões pelo corpo. A começar pela boca, que encara o maior risco de cárie. Não só balas e outras guloseimas clássicas, mas também sucos, refris e outras fontes de açúcar alimentam perigos para os dentes, especialmente quando a higiene bucal deixa a desejar.
“O maior risco está relacionado à frequência do consumo, e não à concentração de açúcar do produto”, afirma o dentista Jaime Cury, professor da Faculdade de Odontologia de Piracicaba, ligada à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Quando ingerimos a sacarose, tipo de açúcar bastante usado pela indústria, as bactérias da boca irão fermentá-la e transformar o ingrediente em um ácido capaz de dissolver a camada mineral que reveste e protege os dentes, abrindo progressivamente o caminho às cáries.
Nesse contexto, Cury destaca que é muito importante criar o hábito de correr para a pia e escovar os dentes após o consumo de doces em geral. “Em apenas dois minutos após a exposição aos açúcares já começa a dissolução dos minerais do dente, e isso se prolonga por 20 a 40 minutos”, alerta. Tão importante quanto isso é fazer a limpeza bucal com pastas com flúor.
“Nossa saliva faz a reparação dos minerais dos dentes, mas seu efeito é limitado quando o esmalte se dissolve. O creme dental fluoretado é justamente um ativador desse processo de remineralização”, explica. Na mesma linha, o professor sugere evitar o consumo de açúcar à noite. “É que a produção de saliva cai drasticamente no período do sono”, justifica.
De obesidade a cárie, a impressão que dá é que o açúcar é um perigo para os mais novinhos. Mas calma! Não significa que ele nunca deverá ser convidado a entrar na vida da criança nem que precisa ser completamente abolido. Diante ou depois do primeiro brigadeiro, o que salva é a conscientização.
Sim, a sobrecarga de açúcar na dieta dos brasileiros desde cedo tem a ver com aspectos culturais e está diretamente ligada à educação nutricional dos responsáveis e das próprias crianças.
Com a devida orientação no consultório e na escola, a gente aprende que o problema não é experimentar um doce numa festinha ou comer um quadradinho de chocolate após o almoço, mas o consumo se tornar frequente ou exagerado. Parece simples, mas é fácil escorregar e vivenciar o efeito bola de neve.
E olha que nem adianta culpar o DNA nessas horas, com o argumento de “pais formigas, filhos formigas”. “Até existe uma influência genética nas preferências de paladar, mas o que realmente pesa é o hábito familiar”, afirma o pediatra e nutrólogo Mauro Fisberg, do Instituto Pensi — Pesquisa e Ensino em Saúde Infantil, em São Paulo.
O conselho, portanto, é, a partir dos 2 anos, dosar o acesso e limitar o consumo do doce a ocasiões esporádicas, como comemorações e eventos no fim de semana. Não adianta proibir ou fechar os olhos: é provável que, num dia ou outro, seu filho caia em tentação quando estiver só com os amigos.
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Da mesma forma, vale incentivar o consumo de frutas como lanches e sobremesas — ora, elas podem ser docinhas e não fazem parte do balaio do açúcar adicionado. Outra recomendação crucial: nada de manter um estoque de guloseimas nos armários de casa, nem mesmo se você for comer chocolate escondido na área de serviço (outra péssima ideia)! A família é o exemplo e o espelho dos pequenos.
“É possível unir prazer e qualidade nutricional. Com bom senso e uma alimentação equilibrada, o doce pode encontrar seu lugar”, sintetiza
Fisberg. Na dose certa, sem proibições e recompensas, o açúcar tem seu espaço — e a infância não vai virar uma amarga chatice.
Adoçar com quê?
Açúcar refinado, mascavo, frutose, melado de cana…Tanto faz se pensarmos que tudo vai virar glicose no organismo. “Qualquer tipo em excesso provoca problemas. A diferença está apenas no processo de refinamento”, crava o pediatra Mauro Fisberg. O professor sublinha que, no refinamento do açúcar branco, o preparo perde minerais e ganha aditivos. Então ele teria desvantagens em relação ao mascavo, por exemplo. Mas, de novo, a moderação vale para qualquer um.
Uma palavra sobre os adoçantes
“Crianças com mais de 2 anos que têm restrições ao consumo de açúcar podem, sim, usar adoçante quando necessário”, afirma a pediatra Ana Escobar. Segundo ela, há estudos consistentes atestando que não há riscos, desde que as quantidades sejam moderadas e adequadas ao peso corporal. A orientação dos experts é buscar uma dieta mais saudável no geral, que priorize fontes naturais de açúcar, como as frutas. Mas o uso dos adoçantes poderia ser realizado esporadicamente, sobretudo em um contexto de excesso de peso ou diabetes.