“A causa básica da pandemia de obesidade são as corporações de ultraprocessados”
Carlos Monteiro, o médico que definiu o conceito de alimentos ultraprocessados, abre o jogo sobre o que motivou a nova classificação e as críticas à sua ideia

Obesidade, diabetes, depressão, problemas cardíacos, distúrbios do sono, ansiedade, Alzheimer, câncer… Sabe o que todas essas doenças têm em comum? Estão relacionadas ao alto consumo de alimentos ultraprocessados.
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Segundo a maior revisão de estudos sobre esses produtos, com dados de mais de 10 milhões de pessoas, a ingestão frequente está associada a 32 problemas de saúde.
Nos anos 1990, o médico epidemiologista brasileiro Carlos Monteiro foi o primeiro cientista no mundo a perceber que havia algo errado na relação entre o consumo de certos alimentos industrializados e o estado de saúde da população.
Em 2010, junto ao seu time na Universidade de São Paulo (USP), o professor criou a classificação NOVA, que divide a comida em quatro grupos: in natura, ingredientes culinários, processados e ultraprocessados.
Hoje, a metodologia é respeitada internacionalmente e utilizada numa série de estudos, embora ainda receba críticas de alguns setores. A VEJA SAÚDE, Monteiro expõe as evidências que coletou e sua visão de mundo.
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Depois de se formar médico, o senhor logo partiu para a área da prevenção, da nutrição e da saúde pública. De onde veio o estalo de que a alimentação seria peça-chave para nossa saúde?
A epidemia de obesidade foi um grande diferencial na minha percepção, mesmo tendo trabalhado antes com aleitamento materno e baixo peso ao nascer.
E o mais interessante é que, quanto mais você se aprofunda no tema, mais percebe como a alimentação não é só central por causa dos nutrientes e da prevenção da obesidade e de doenças crônicas, mas também por carregar um componente imaterial. Ela é uma forma de afirmar a cultura de uma sociedade, tornando-se até mesmo um movimento de resistência.
Cozinhar a própria comida, hoje, é resistir ao ambiente obesogênico em que vivemos. Porque o que a gente vive atualmente é uma pasteurização completa das culturas, algo que se vê também na música, com a mesma banda fazendo sucesso no mundo inteiro. E tudo isso está muito ligado à questão da indústria, das corporações transnacionais.
Eu acho que um dos maiores problemas da humanidade é o poder absurdo que essas empresas têm em várias áreas, inclusive na alimentação. Então a minha visão sobre o que comemos hoje se tornou bem mais abrangente.
A criação da classificação NOVA é considerada um divisor de águas na ciência da nutrição. Como chegou a essa ideia?
Tudo começou ao observarmos o aumento da obesidade no país, ali por volta dos anos 1990. Isso era considerado impensável, já que o Brasil era um país pobre, que sempre sofreu com a desnutrição.
E o desafio de analisar essa situação começou pelo básico: a falta de dados. Quando começamos a fazer os trabalhos em São Paulo sobre mortalidade infantil, por exemplo, a gente tinha séries anuais com esses dados, porque você tem os atestados de óbito.
Mas, em relação a doenças crônicas, a gente não tinha nenhuma ideia. O Brasil não contava com séries históricas sobre essa temática. Havia informação sobre doenças infecciosas, mas, quando pensávamos em diabetes, hipertensão e outras doenças crônicas, não tínhamos estatísticas.
Então, em 1989, houve a primeira pesquisa nacional sobre saúde e nutrição e obtivemos, de forma inédita, uma estimativa da prevalência da obesidade. Achamos o índice alto, mas não tínhamos com o que compará-lo.
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E o que fizeram?
Foi aí que descobrimos uma pesquisa de orçamentos familiares feita com 55 mil famílias em 1974, mas todos os dados não estavam disponíveis antes por causa da ditadura militar. Com a ajuda de alguns contatos, conseguimos a fita de computador com os resultados. Analisando os dois estudos, de 1974 e 89, ficava claro o cenário de aumento da obesidade.
Outras pesquisas posteriores confirmaram que essa situação seguia piorando entre todas as classes. E, assim, nosso trabalho de epidemiologia passou para outro patamar. Começamos a questionar: por que isso vinha ocorrendo?
Daí surgiu a suspeita sobre o grau de processamento dos alimentos?
Tudo foi um processo lento e bem analisado. O cientista é basicamente um observador, só que com um olhar treinado para fazer observações e com um rigor para analisar critérios. Aumentou como? Quais são as fontes de dados? São comparáveis? Esse é o treinamento básico que a gente recebe na epidemiologia.
Para tentar entender o aumento da obesidade, fomos investigar a alimentação dos brasileiros. Assim, analisamos diversos parâmetros, principalmente pesquisas de orçamento familiar. Montamos uma série histórica de compra de alimentos, que era a única coisa que a gente tinha para analisar.
E foi aí que começamos a descobrir mudanças na alimentação da população, algo que também ninguém tinha detectado antes. Passamos a notar que a principal característica era meio contraintuitiva: uma redução na compra de sal, açúcar e óleo. Não era o nutriente açúcar, o nutriente gordura.
Era o açúcar de mesa, o óleo de cozinhar, o sal adicionado, enfim, os ingredientes culinários. Mas como o consumo de componentes associados à obesidade, como açúcar e gordura em excesso, estava reduzindo, se a doença estava aumentando no país?
Na verdade, é exatamente isso que interessa ao cientista: quando ele observa uma coisa que não tem explicação ou que aparentemente é contraditória. No nosso caso, a gente percebeu que as pessoas estavam cozinhando menos com os ingredientes culinários e consumindo mais alimentos prontos ricos nesses elementos prejudiciais.
E assim despontou a ideia de reclassificar os alimentos?
Sim, entendemos que era importante separar. Uma coisa é a gordura do óleo que cozinha o feijão, o arroz, a verdura… Outra coisa é a gordura que está nos alimentos prontos para consumo. A classificação NOVA acabou se baseando no grau e no propósito do processamento da comida.
A gente começou a ir atrás para entender o que eram esses alimentos processados. Foi nesse movimento que desenvolvemos a classificação. Tanto que, no começo, tínhamos pensado só em três grupos de alimentos: os in natura, os ingredientes culinários e todo o resto, que chamávamos de “ultraprocessados”.
Mas fomos estudando mais e refinando a classificação, e aí redividimos em dois grupos: os processados, que são aqueles alimentos que existem e a gente consome há séculos, como pão, queijo, conservas; e os novos processados, que nomeamos efetivamente de ultraprocessados.
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E o que são eles, afinal?
São formulações químicas com pouco ou nenhum alimento e muitos aditivos cosméticos. Basicamente, eles são feitos de substâncias alimentícias, compostos químicos que são extraídos dos alimentos, como carboidratos, gorduras, proteínas, mas nunca o alimento inteiro, sempre uma parte dele.
E os aditivos são os corantes, flavorizantes, espessantes, emulsificantes, ou seja, aqueles que modificam as propriedades sensoriais das formulações. E por que eles são usados? Para dar sabor de comida a algo que não é comida.
O aditivo está ali para dar o gosto de carne à salsicha de soja. Para dar o gosto de queijo a uma sopa em pó. Para dar gosto de noz a um bolo que não leva nenhuma noz. E eles contam com uma característica clara: alta tecnologia.
Então os ultraprocessados são formulações comestíveis?
Você não pode fazer um alimento ultraprocessado na sua cozinha. Isso implica alterações no alimento que a gente não consegue fazer em casa.
Os alimentos viraram produtos, como um automóvel, em uma indústria de alta tecnologia e inovação. Só que essas inovações são feitas, como sempre, com o objetivo de reduzir o custo de produção e aumentar o lucro das empresas. No caso de um automóvel e de outros bens, essas inovações, em geral, até são positivas. No caso da alimentação, não é bem assim.
E qual é, exatamente, o problema do ultraprocessamento?
Hoje a gente sabe que, na realidade, o alimento é mais do que uma soma de nutrientes. Por exemplo, uma fibra que é intrínseca a um alimento integral é absorvida de forma diferente de uma fibra que foi adicionada a um pão de fôrma ultraprocessado.
No alimento in natura, a fibra preserva a estrutura celular, e ela está acompanhada de outros compostos bioativos que compõem aquela matriz alimentar. Quando isolada e adicionada a uma formulação, sem todo o conjunto natural e cheia de aditivos, já não funciona do mesmo jeito.
O ultraprocessamento altera o alimento de tal maneira que muitas vezes o produto final já nem se parece com comida. Assim, a gente formulou a hipótese de que talvez esses novos alimentos, que o ser humano não consumia no passado, estariam associados a problemas de saúde, inclusive a obesidade. E aí começamos a estudar a fundo.
O primeiro trabalho usando a classificação NOVA foi feito aqui no Brasil, e confirmou nossa hipótese. Depois, felizmente, isso ganhou o mundo, e atualmente a relação de ultraprocessados com a saúde é um dos temas mais estudados na área de nutrição.
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Algumas pessoas alegam que os alimentos que estão na categoria dos ultraprocessados são muito heterogêneos. Seria realmente tudo farinha do mesmo saco?
Todos eles têm aditivos, componentes que não precisariam estar lá. E você não deve comparar o pão de fôrma com um refrigerante para dizer que a categoria é heterogênea. A comparação tem que ser feita entre alimentos da mesma linha, ou seja, você tem que comparar o pão de fôrma ultraprocessado com o pão só processado.
Qual é melhor? Um cheio de aditivos, emulsificantes, realçadores de sabor, ou um pão feito apenas com farinha, água, sal e fermento? Uma pasta pronta que você passa no pão ou um queijo branco?
Ao consumir muitos alimentos ultraprocessados, o organismo parece ficar mais exposto a problemas. Hoje as pesquisas associam o consumo dessas formulações a obesidade, diabetes, doenças do coração, depressão, Parkinson e diversos tipos de câncer.
O senhor sempre menciona que os ultraprocessados são feitos para dar lucro à indústria. Mas, nesse debate, há quem critique a classificação NOVA por estar supostamente impregnada de ideologia. Como enxerga isso?
A gente não fez todas as nossas pesquisas para mostrar que as grandes corporações de alimentos são um problema para a sociedade. A gente queria estudar por que a obesidade estava aumentando e entender como é que a saúde poderia ser promovida nesse contexto.
Mas o achado de que a causa básica dessa pandemia de obesidade e diabetes são as corporações de ultraprocessados, especialmente os gigantes dessa indústria, é uma realidade.
A indústria alimentícia virou uma montadora, e todo esse modelo de negócios de descobrir matéria-prima de baixo custo que pode ser combinada e vendida rendendo lucros astronômicos só pode ser feito por grandes empresas com muita tecnologia.
As conclusões das pesquisas que se valem da classificação NOVA colocam em xeque o propósito dessas indústrias, que em geral têm departamentos de relações públicas fantásticos, fazem doações e filantropia, financiam esportes e prezam muito a imagem positiva que precisam passar para a sociedade.
Não querem imposto, não querem regulação, mas precisam manter prestígio. Essas corporações temem ser estigmatizadas como a indústria do tabaco.
Por isso essas empresas não reconhecem a classificação NOVA?
Os resultados das pesquisas incomodam, então elas fazem de tudo para tentar desqualificar a NOVA. Dizem que é ideologia, que é algo específico contra as corporações, que não é ciência.
Mas muitos países começam agora a regular os ultraprocessados. Até os Estados Unidos querem regular. Será que vão dizer que o governo americano atual é contra o capitalismo, contra as corporações? Que o ministro da Saúde de lá é um comunista, que o Trump é comunista?
Não, ao contrário, mas os governos estão se dando conta de que os gastos com a saúde estão ficando insustentáveis. E, portanto, a economia como um todo começa a se prejudicar.
Essas corporações de ultraprocessados continuam ganhando muito dinheiro, só que o restante da economia sai perdendo com as pessoas adoecendo e morrendo mais cedo. Não é questão de ideologia. É o que é.
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Neste ano, até uma fundação relacionada à indústria farmacêutica entrou nessa história com uma proposta de revisar a NOVA. O senhor respondeu formalmente ao documento. Por que tanta crítica?
Existem basicamente dois grupos que criticam a NOVA: pessoas e instituições financiadas pela indústria de ultraprocessados, que por razões óbvias não gostam das evidências contra esses produtos; e também pessoas muito ligadas ao establishment dessa área da ciência da nutrição, muito apegadas ao enfoque nutricêntrico, que resume os alimentos aos nutrientes.
Quando a gente propõe a NOVA, ela não é apenas uma classificação de alimentos, é uma nova forma de olhar a relação entre alimentação e nutrição, que não enxerga apenas os nutrientes, mas todo o contexto relacionado ao ultraprocessamento de alimentos e suas consequências para a sociedade.
Eles dizem que a NOVA é bobagem e não tem base científica porque, se tiver, como tem, eles vão ter que rever toda a carreira deles, vão ter que reescrever tudo o que escreveram, e isso é muito desconfortável. Esse episódio que você citou, envolvendo a Novo Nordisk, é um exemplo disso.
Tem gente lá dentro que representa muito esse conceito do nutricionismo e que, não por coincidência, mantém relações com a indústria dos ultraprocessados. E encontrou na Universidade de Copenhague uma professora que topou encabeçar um projeto de “revisão da NOVA”, que na verdade nem existe.
Eu pedi para eles me mandarem o tal projeto. Disseram que era sigiloso, que não podiam mandar. Na realidade, o projeto era basicamente desqualificar a classificação. Mas podem tentar. As evidências científicas estão do nosso lado.
O senhor ficou entre as 50 pessoas mais influentes de 2025 segundo o jornal americano The Washington Post. Como interpreta esse contraste entre o reconhecimento e as tentativas de descreditá-lo?
A associação entre consumo de ultraprocessados e doenças é algo muito palpável para as pessoas. Elas veem no dia a dia indivíduos comendo pior e ganhando peso, adoecendo muito mais do que as gerações anteriores. E aí publicam essa lista do The Washington Post, e eu sou a única pessoa da área de nutrição ali.
O que eles estão reconhecendo é a relevância de olhar criticamente para a alimentação atual. A indústria na Europa faz avaliações anuais com uma amostra probabilística de consumidores, e, na Inglaterra, que vive uma crise séria de obesidade, mais da metade dos consumidores já ouviu falar de ultraprocessados, tem uma ideia do que seja e está tentando reduzir o consumo.
Mesmo assim, os cientistas de alimentos das antigas se negam a atualizar o guia alimentar dese país. O descompasso existe, mas não desistimos.
Seu grupo está conduzindo uma pesquisa enorme sobre a alimentação dos brasileiros. O que podemos esperar?
Já temos mais de 100 mil pessoas inscritas em cinco anos de segmento do NutriNet Brasil. Investigar os padrões de alimentação da população é essencial para avaliar sua relação com as doenças crônicas, e este ano já saem resultados das primeiras análises, voltadas a obesidade, transtornos mentais, hipertensão, entre outros.
Temos uma grande rede de influenciadores que abraçaram a causa e nos ajudam com divulgação, pois ainda é possível entrar e fazer parte do estudo.
É um projeto mantido pela Fapesp, o Ministério da Saúde e a Fundação Umane. Porque só com ciência independente e política pública se muda a saúde do país.
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