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Uma conversa com Katalin Karikó, vencedora do Nobel pelas vacinas de RNA

Bioquímica húngara explica avanços que levaram aos imunizantes da Covid-19. E conta como a tecnologia ajudará contra outras doenças

Por Chloé Pinheiro
Atualizado em 2 out 2023, 10h36 - Publicado em 9 fev 2021, 12h41
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  • A bioquímica húngara Katalin Karikó e o médico norte-americano Drew Weissman foram laureados nesta segunda (2) com o Prêmio Nobel de Medicina por suas contribuições no desenvolvimento das vacinas de RNA mensageiro (mRNA) contra a Covid-19.

    Menos de cinco meses depois do surgimento dos primeiros casos de uma pneumonia misteriosa na China, as vacinas da Pfizer/BioNTech e da Moderna já estavam sendo aplicadas nos braços dos voluntários em fases iniciais das pesquisas. Mais tarde, elas se tornariam os primeiros imunizantes à base dessa tecnologia aprovados da história.

    Em 2021, quando as campanhas de vacinação ganharam tração pelo mundo, VEJA SAÚDE conversou com Katalin. Na época, a cientista já era cotada para o Nobel.

    Em vez de entregar algumas partes do vírus prontas, ou o vírus em si inativado, esse novo jeito de fazer vacinas usa o próprio maquinário das células do corpo para fabricar o tal antígeno (o composto que será visto pelo sistema imune e dará início à criação de anticorpos específicos).

    Para isso, basta entregar um RNA mensageiro “pirata”, criado em laboratório a partir de trechos do código genético original do vírus, contendo a receita para a produção de uma proteína específica.

    O raciocínio existe há tempos, mas só agora começa a viver seus momentos de glória, depois de décadas de avanços lentos e fracassos que minaram investimentos.

    Nos últimos 40 anos, Katalin mergulhou nos segredos do mRNA, sempre topando com dois desafios: entregar uma molécula tão sensível no alvo certo e garantir que ela fosse segura. Nos primeiros estudos, esse tipo de tecnologia gerava respostas imunes muito agressivas.

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    Mas, em 2005, o grupo liderado por ela e Weissmann fizeram a descoberta que mudou tudo na Universidade da Pensilvânia. Agora que deu certo, o RNA mensageiro pode ser usado para outros fins na medicina.

    Em conversa exclusiva, ela explica os desafios e o potencial do uso do mRNA para criação de vacinas e novos remédios.

    A expectativa é que o método se torne mais popular num futuro próximo.

    Katalin Kariko
    Katalín Karikó estuda há mais de 40 anos o RNA mensageiro, molécula que ordena a produção de proteínas nas células. (Arquivo pessoal - Katalin Karikó/Reprodução)

    VEJA SAÚDE: Durante muitos anos, o uso do RNA mensageiro provocava reações imunes bem agressivas. Por que isso acontecia e o que mudou?

    Katalin Karikó: Era um enigma para nós, porque o mRNA já existe nas células, então não deveria ser imunogênico [desencadear respostas do sistema imune]. Depois, compreendemos que o problema era o mRNA externo.

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    Como ele poderia ser um vírus, o organismo já contava com mecanismos para degradar rapidamente aquele material estranho. Isso também acontece com mRNAs do próprio corpo.

    Por exemplo, quando você corta um dedo, RNAs das células lesionadas caem na circulação e são reconhecidos por outras células. Isso ajuda a instaurar o processo inflamatório que leva à reparação do tecido.

    Começamos, então, a fazer testes para entender que partes do mRNA eram responsáveis por desencadear esse sistema de alerta e chegamos à uridina, uma das moléculas que formam sua estrutura.

    Ao trocá-la por uma molécula em específico, a pseudouridina, ela não só deixava de ser notada pelas defesas, mas também levava à produção de proteínas desejadas.

    Katalin Karikó
    Katalin em seu laboratório na Universidade da Pensilvânia, em 2005, ano em que seu grupo descobriu como “desativar” a resposta imune ao RNA mensageiro vindo de fora. (Arquivo pessoal - Katalin Karikó/Reprodução)
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    Em que outras doenças o RNA mensageiro pode ser utilizado?

    Desde os anos 1970, se pensa em usar o mRNA para criar vacinas terapêuticas contra o câncer. Nesse caso, é um pouco mais desafiador.

    Diferente da Covid-19, onde precisamos produzir apenas uma das 29 proteínas do novo coronavírus, numa célula cancerígena temos tantas mutações que nem sempre conseguimos identificar qual é a principal, que deve ser o alvo do tratamento.

    Mas há muitos progressos sendo feitos. Estamos desenvolvendo uma estratégia com a Sanofi que entrega às células de um câncer superficial, como melanoma ou de cabeça e pescoço, o mRNA com a receita para produzir uma citocina, marcador inflamatório.

    A presença da citocina nessas células convida o sistema de defesa a ir ao local, identificar os tumores e sair pelo corpo procurando por outros focos. Já vimos em animais que, assim, é possível até remover tumores no pulmão e órgãos de difícil acesso, como o cérebro.

    Também temos estudos com esclerose múltipla, onde apresentamos repetidamente ao sistema imune uma proteína específica envolvida na doença. A repetição induz o desenvolvimento de tolerância aos ataques constantes do próprio organismo, o que pode ser aplicado para outras doenças autoimunes.

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    Ainda veremos provavelmente mais vacinas chegando em breve, para doenças provocadas por vírus, como zika, gripe e malária.

    Quais são os principais desafios para expandir e viabilizar tratamentos com mRNA?

    Nosso foco principal está em melhorar a formulação e a entrega, porque diferentes alvos exigem partículas diferentes, capazes de encapsular o mRNA e o entregar no lugar certo. Para a vacina, revisamos todas as nanopartículas em pesquisa e escolhemos a melhor até agora, construída à base de um lipídio.

    Para o mRNA, a principal dificuldade é construir a partícula ideal. Além da criação em si, será necessário garantir que ela tenha o tamanho certo e que os componentes sejam certificados como seguros, depois de submetidos a um processo rigoroso de testes. Outro problema são os insumos, porque ainda não existem essas moléculas certificadas para uso humano em grande quantidade.

    Ou seja, precisamos inventar novos procedimentos e validá-los, praticamente ao mesmo tempo. Não é, contudo, uma questão de quando esse escalonamento vai acontecer, ele já está acontecendo. Empresas em todo o mundo estão se mobilizando para isso.

    Tratamentos do tipo serão mais caros, a exemplo das terapias gênicas [que custam milhões de reais]?

    Esse é um ponto crítico para mim. Se estou trabalhando em algo, quero ter certeza que outros pesquisadores tenham as ferramentas para explorar essa tecnologia e que as pessoas de diversos países tenham acesso a ela.

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    Uma das vantagens do uso de mRNA é, aliás, a possibilidade de escalonar tratamentos melhores, mais específicos.

    Por exemplo, anticorpos monoclonais são considerados uma terapia de ponta, que muda o curso de várias doenças, e inclusive foram usados por algumas pessoas para tratar casos graves e moderados de Covid-19.

    Além de caros, eles só podem ser produzidos em pequenas quantidades, já que demandam culturas de células e um processo de purificação complexo, que acaba sendo a parte mais cara da produção.

    A mesma coisa poderia ser feita de uma maneira mais simples com o RNA mensageiro, enviando ao corpo a instrução para que ele próprio produza o anticorpo em questão. Tenho certeza que o preço mudará muito e, conforme as tecnologias avançam, cairá ainda mais.

    A temperatura é um ponto discutível [as vacinas de mRNA precisam ficar em -80 °C], mas estamos trabalhando para chegar aos -20 ºC. E, mesmo se forem -80 °C, basta que o local tenha eletricidade e um freezer adequado para armazená-las por tempo indeterminado, sem que percam sua validade.

    Com a chegada das vacinas ao mercado, as terapias de mRNA devem ficar mais populares?

    Com certeza. Quem é do ramo sabe que há anos estamos vendo uma expansão e já existe muita coisa em vias de se tornar realidade. Há oito anos, criamos um encontro anual dedicado ao mRNA, que tem recebido entidades reguladoras e cientistas do mundo todo.

    Ou seja, há um movimento de educação e preparação em curso. Para concretizá-lo, mais atenção e dinheiro devem ir para a ciência, para a pesquisa básica, inclusive para incentivar jovens garotas querendo se tornar cientistas.

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