“Precisamos criar um protocolo nacional de assistência ao pós-Covid”
Programas que ensinam os sobreviventes da Covid-19 a respirar novamente estão ganhando destaque – e podem beneficiar mais gente, aponta médico
Durante uma pandemia que ataca especialmente os pulmões, a importância de respirar bem ficou ainda mais nítida, como destacamos na nossa reportagem de capa de maio.
Ora, estamos atentos como nunca ao jeito em que o ar entra e sai do corpo. E nas consequências de problemas nesse processo. À frente de um dos primeiros programas focados em pós-Covid no país, o cardiologista Carlos Hossri, do Hospital do Coração (HCor), em São Paulo/SP, vê tudo isso na prática.
Em entrevista para VEJA Saúde, ele explica a importância da reabilitação cardiopulmonar e dos exercícios respiratórios para recuperar pessoas que pegaram o coronavírus, mas não só. Para ele, estratégias do tipo deveriam ganhar mais destaque em nome da saúde de todos.
VEJA SAÚDE: Como fica o organismo depois da Covid-19?
Carlos Hossri: Depois do período inflamatório da infecção, estamos vendo a síndrome pós-Covid, uma doença multissistêmica, com problemas vasculares, neurológicos, musculares e cardíacos. O sintoma mais comum é o cansaço, que dificulta a realização de tarefas. Cerca de 50% dos recuperados relatam fadiga e fraqueza.
Além da perda de massa muscular e dos danos pulmonares em si, o comprometimento do coração contribui para o quadro. Cerca de 10 a 15% dos acometidos podem evoluir com inflamação do músculo cardíaco, o que atrapalha o bombeamento de sangue para os órgãos. Tanto que notamos ainda debilidades na capacidade de oxigenação no sangue e dificuldades respiratórias. Para piorar, a ventilação [troca de gases no pulmão] não ocorre como deveria.
O tamanho do dano varia de acordo com a severidade da infecção. Indivíduos que receberam oxigênio e ficaram na UTI têm uma recuperação mais lenta, e precisam de atenção especial do sistema de saúde. Um estudo da Coalizão Covid-19 Brasil traz um dado preocupante sobre isso: 25% dos intubados que tiveram alta morreram até seis meses depois de sair do hospital.
Qual é a importância de programas de reabilitação para melhorar esse quadro?
O grande trunfo da reabilitação cardiopulmonar é estimular a ventilação adequada por meio dos exercícios físicos e sessões específicas para a respiração. A ideia é trabalhar a musculatura para tornar a pessoa mais tolerante ao esforço, e compensar problemas como o baixo aproveitamento do oxigênio ou as inspirações curtas, ofegantes.
A respiração é realizada por uma musculatura complexa e potente. Temos os músculos intercostais, que recobrem os pulmões, e os diafragmáticos, que são os mais potentes, atuando como um fole. Se esse aparelho for bem treinado, o corpo consegue inspirar e expirar de maneira mais eficiente.
Isso compensa o desconforto respiratório sentido por esses pacientes, assim como ocorre com cardiopatas e portadores de doenças pulmonares. Até mesmo pessoas saudáveis podem se beneficiar dos exercícios diafragmáticos, ganhando desempenho nas atividades esportivas.
Além disso, fazemos exercícios com o fisioterapeuta, pois a saúde dos músculos como um todo também contribui para a circulação de sangue e oxigênio pelo organismo.
Como é feita a reabilitação no pós-Covid?
O ideal é começar o mais cedo possível e ter um plano desenhado conforme as particularidades de cada paciente, já que as consequências variam muito. Alguns precisarão de suplementação de oxigênio mesmo fora do hospital, outros têm sarcopenia e dificuldade de movimentação…
É um universo enorme, então o ideal seria ter um protocolo de assistência pós-Covid nos centros públicos, para atender essas pessoas mais rápido e melhor. Mesmo quem apresenta apenas sintomas mais leves deve ser orientado a fazer treinos ainda que domiciliares, focados na saúde cardiopulmonar.
Por enquanto, existem iniciativas isoladas. No programa do HCor, são dois a três meses de programa, com uma equipe multidisciplinar composta por médicos, fonoaudiólogas, fisioterapeutas, nutricionistas e psicólogos.
Outras doenças também se beneficiam de programas do tipo?
Hoje sabemos que há padrões respiratórios associados com doenças. Por exemplo, portadores de insuficiência cardíaca respiram mais rápido e superficialmente, levando a um estado de hiperventilação [condição em que diminuem os níveis de gás carbônico no corpo] constante. Já apneia do sono e obesidade causam o oposto, a hipoventilação, quando o gás carbônico em circulação aumenta muito.
Por outro lado, trabalhos científicos mostram que é possível restabelecer a respiração com exercícios específicos e, assim, melhorar o estado de saúde do indivíduo. Além da questão física, há o aspecto psicossocial. Alguém em recuperação pode ficar nervoso, ansioso, induzindo o organismo a um estado desnecessário de hiperventilação, ou favorecendo um padrão ruim já existente por conta da doença.
Nesse sentido, o acolhimento humanizado e familiar faz toda a diferença, e até as próprias práticas respiratórias ajudam a acalmar e restaurar o equilíbrio sistêmico. É trabalhoso e demorado, mas vale a pena.
Se a reabilitação do paciente com doenças cardiovasculares é feita com sucesso, pode haver uma diminuição de até 30% do risco de morte. O que fica de lição sobre o assunto para depois da pandemia?
Ficou claro que encaminhamos poucas pessoas para a reabilitação, dentre muitas que se beneficiariam dela. E estamos falando de uma parcela significativa da população mesmo: não só sobreviventes da Covid-19, mas cardiopatas e portadores de doenças pulmonares, que são milhões de brasileiros.
É uma realidade a ser mudada, porque não há uma cultura de reabilitação no mundo, mesmo nos melhores centros. Aqui no HCor, menos de 5% dos indivíduos atendidos são referenciados ao setor. E temos ainda o problema da baixa adesão. É preciso se comprometer com idas periódicas à instituição e programas de exercício que exigem ajustes na rotina.
Ao meu ver, temos uma gestão equivocada do atendimento ao indivíduo. Reabilitação e treinamento físico são meios de acolher o paciente como um todo, o que faz a diferença na sua sobrevivência e qualidade de vida. Há décadas estamos na batalha para migrar desse ponto de vista tacanho e imediatista, e antever os problemas, o que é possível por meio dessa visão mais integrada.
Em termos de saúde pública, esses serviços deveriam chegar nos rincões do país, de jeitos simples, que pudessem atender mais gente. Traria uma economia enorme ao SUS, mas depende de uma série de fatores para isso sair do papel.