Acantora Solange Almeida, de 47 anos, foi apresentada ao cigarro eletrônico no final de 2020. Um grupo de amigos elogiou tanto que ela resolveu experimentar. “Não contém nicotina”, disseram uns. “Ajuda a desestressar”, alegaram outros.
Ex-fumante havia 15 anos, Solange detestou a experiência. Teve falta de ar, crise de ansiedade e quase perdeu a voz. “Não foi coisa boba. Poderia ter me prejudicado para o resto da vida”, desabafou nas redes sociais.
Lá fora, a vítima mais recente dos dispositivos eletrônicos para fumar (DEF) foi a rapper americana Doja Cat, de 26 anos. Ela chegou a cancelar uma turnê depois de fazer uma cirurgia às pressas nas amígdalas por uso excessivo do aparelho. “Vou parar por um tempo. Tomara que não tenha mais vontade depois”, postou.
No Brasil, a venda de cigarros eletrônicos, assim como sua importação e propaganda, é proibida desde agosto de 2009 por uma resolução da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa). Mas nem parece. Os vaporizadores (vapes, em inglês) podem ser encontrados em lojas físicas e virtuais, com direito a delivery. Na internet, os preços dos kits variam de 150 a 800 reais, e, no Instagram e TikTok, há influenciadores compartilhando seus aromas favoritos (são mais de 16 mil!) e contando onde podem ser adquiridos.
Apesar da proibição, 3% da população adulta faz uso diário ou ocasional do cigarro eletrônico, a maior parte proveniente de contrabando, como revela levantamento do Datafolha de fevereiro deste ano. Considerando o total de brasileiros acima dos 18 anos, dá algo em torno de 4,7 milhões de vapers.
Já a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar de 2019 mostra que 13,6% dos estudantes de 13 a 15 anos já experimentaram cigarro eletrônico. Entre alunos de 16 a 17 anos, o índice foi maior: 22,7%. Os números traduzem um fenômeno visto não só em bares e baladas mas também nos arredores das escolas: tem muito jovem descobrindo o vaporizador.
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A comunidade médica, enfaticamente contra essa e outras formas de fumar, está preocupada com isso. “O cigarro eletrônico é pior porque causa dependência muito mais rápida e intensamente que o convencional. Quando o usuário menos espera, já virou refém”, alerta a cardiologista Jaqueline Scholz, diretora do Programa de Tratamento de Tabagismo do Instituto do Coração (InCor/USP).
E o alarme soou de vez com a possibilidade de a Anvisa voltar atrás e liberar o produto. “Seria um retrocesso”, afirma o pneumologista Elie Fiss, da Faculdade de Medicina do ABC. “Uma verdadeira catástrofe”, define Fábio Rossi, presidente da Sociedade Brasileira de Angiologia e Cirurgia Vascular (SBACV-SP).
Por dois meses, a Anvisa coletou dados técnicos e evidências científicas relacionadas ao assunto. No período, quase 50 entidades médicas divulgaram um documento sobre os malefícios do cigarro eletrônico. Tanto a Associação Médica Brasileira (AMB) como o Conselho Federal de Medicina (CFM) são contrários à mudança de posição da agência.
“Os jovens fumam esses dispositivos porque pensam que não fazem mal e tem gente achando que eles ajudam a parar de fumar cigarro. Mas esses aparelhos não são inócuos, oferecem riscos e causam doenças”, avisa o pneumologista Ricardo Meirelles, coordenador da Comissão de Tabagismo da AMB.
Para os especialistas, não basta manter a proibição. É preciso criar mecanismos de controle e fiscalização desse mercado que já existe na surdina, além de campanhas de conscientização.
O Colégio pH, no Rio de Janeiro, já começou a fazer sua parte. O tema foi abordado na disciplina de convivência ética e debatido através de lives, palestras e podcasts. Muitos alunos admitiram não saber que os aparelhos contêm nicotina e, por essa razão, provocam dependência.
“Em geral, pais e responsáveis adotam um discurso moralista e alarmante. Em sala de aula, procuramos criar um espaço acolhedor onde os alunos se sentem à vontade para compartilhar histórias, fazer perguntas e tirar dúvidas”, relata a psicóloga Camilla Oliveira, da escola carioca.
A pediatra Débora Chong, do Departamento Científico de Pneumologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), elogia iniciativas assim. “Os cigarros eletrônicos estão cada vez mais coloridos, tecnológicos e atrativos. É o famigerado ‘lobo em pele de cordeiro’. Se soubessem o mal que fazem à saúde, os adolescentes não se arriscariam”, sentencia.
Mais parecidos com pen-drives do que com cigarros, os e-cigarettes podem causar a mesma legião de males da versão convencional em papel. O uso predispõe problemas cardiovasculares e respiratórios, além de vários tipos de câncer. Nem os dentes estão a salvo.
“Não há limite seguro para o consumo de produtos derivados do tabaco. Todos são igualmente nocivos e podem causar danos irreparáveis, inclusive à saúde bucal”, diz a dentista Caroline Bittencourt, mestre em clínica odontológica pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
Os vapes ainda estão por trás de uma doença nova e específica, a síndrome respiratória aguda conhecida como evali, sigla do inglês para e-cigarette or vaping product use-associated lung injury (lesão pulmonar associada ao uso de cigarro eletrônico, em livre tradução), que pode levar à morte.
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Só nos Estados Unidos, ela causou, entre agosto de 2019 e fevereiro de 2020, 2,7 mil internações. Dessas, 68 pacientes não resistiram e foram a óbito. No Brasil, a Anvisa registrou oito casos da doença.
Quatro usuários precisaram ser internados e três pacientes relataram sequelas. Uma das preocupações dos estudiosos é que nem sempre se conhece a composição exata do que está sendo inalado pelo vaporizador. Pobres pulmões!
Aroma de ameaça
No cigarro comum, o fogo queima mais de 4,7 mil substâncias, como nicotina e alcatrão. No eletrônico, não há combustão, mas aquecimento. Uma bateria de lítio aquece uma solução líquida, que contém cerca de 80 elementos tóxicos.
Para atrair o público mais jovem, a indústria de tabaco adiciona aromatizantes como baunilha, chocolate e algodão-doce à mistura.
“Os jovens são o principal alvo dos cigarros eletrônicos. A indústria de tabaco precisa repor os fumantes que pararam de fumar ou, simplesmente, morreram vítimas do tabagismo”, interpreta a sanitarista Silvana Turci, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Fora os aromas, a maioria desses dispositivos possui nicotina, o componente que causa dependência.
Os porta-vozes das sociedades médicas apontam que os cigarros eletrônicos representam um perigo para crianças e adolescentes porque funcionam como uma “porta de entrada” para o tabagismo. Uma revisão do Instituto Nacional de Câncer (Inca) analisou 31 estudos, totalizando dados de 131,4 mil indivíduos de diferentes países, e concluiu que o uso dos e-cigarettes aumenta em quase três vezes e meia o risco de experimentar o cigarro convencional e em mais de quatro o de se tornar fumante habitual.
“São pessoas que nunca fumaram e, quando experimentam, se tornam dependentes de nicotina”, analisa a epidemiologista Liz Maria de Almeida, chefe de Prevenção e Vigilância do Inca.
Mas os executivos da indústria do tabaco, que viu nos dispositivos eletrônicos a grande alternativa para o consumo em queda do cigarro, defendem o uso entre adultos como uma forma de redução de danos. Em outras palavras, eles causariam menos estragos à saúde e poderiam até auxiliar fumantes a largar o vício.
O argumento é baseado num estudo inglês que estimou que, só em 2017, 50 mil britânicos deixaram de fumar cigarros comuns graças aos eletrônicos. Por essa razão, o órgão equivalente à Anvisa no Reino Unido regularizou o produto mediante receita médica por lá.
Já nos EUA, a agência reguladora aprovou recentemente a venda de três novos aparelhos sob o pretexto de que eles ajudariam a vencer o vício. Mas uma pesquisa da Universidade da Califórnia, com quase 5 mil fumantes e ex-fumantes americanos, rebate a tese. Comparados com outras estratégias para lidar com a dependência, como remédios e medidas comportamentais, os cigarros eletrônicos são menos eficazes. Até mesmo os voluntários que não recorreram a qualquer apoio para parar tiveram mais sucesso do que os vapers.
Enquanto a Anvisa analisa os dados a fim de elaborar sua nova resolução — ainda sem previsão de quando será publicada —, médicos anteveem os riscos de uma liberação e condenam o lobby das empresas do setor.
“O objetivo da indústria de tabaco é um só: lucrar. Ela não está preocupada com a saúde de seus usuários. Todo mundo conhece alguém que infartou, teve câncer ou sofreu AVC em decorrência do tabagismo”, observa o pneumologista Ciro Kirchenchtejn, da Comissão de Tabagismo da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT).
+Leia também: A anatomia dos vícios: por que eles surgem e como domá-los
Os especialistas temem que a popularização (ainda mais com aval oficial) do cigarro eletrônico coloque em xeque os avanços da luta antitabagista no Brasil, que ainda é referência global na área. Segundo o último mapeamento da Organização Mundial da Saúde (OMS), nosso país é um dos 32 que ainda proíbem a venda da categoria — 84 nações já regularizaram e 79 liberaram, mas com pelo menos uma medida restritiva, como proibição de propaganda.
O ponto é que nenhuma nação conseguiu reduzir tanto o percentual de fumantes como a nossa. Passamos de 35% da população em 1989 para quase 13% em 2019.
O tabagismo é reconhecido como doença pela OMS e consome anualmente 8 milhões de vidas — 7 milhões por fumo ativo, 1 milhão por passivo. “Todo mundo sabe quanto o cigarro faz mal, até o fumante inveterado. Ele só não consegue parar porque é um dependente químico”, reforça o médico Aristóteles Alencar, representante da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC).
Mas tem tratamento, inclusive disponível no SUS desde 2002. A proposta para quem não consegue parar é combinar psicoterapia com a prescrição de remédios. “Não existe produto novo. O que existe são terapias online, que tratam os pacientes em casa por meio do celular. A taxa de sucesso ultrapassa os 90%”, conta o cardiologista Márcio Gonçalves de Sousa, do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, em São Paulo, que mantém o programa de assistência virtual Feliz sem Tabaco.
Apesar da nomenclatura genérica, o cigarro eletrônico é apenas um dos quatro tipos de DEF — e o mais popular. Os outros três, menos badalados, são o tabaco aquecido, o vaporizador de ervas e o produto híbrido. Os e-cigarettes estão em sua quarta geração.
A primeira era formada por aparelhos descartáveis que se assemelhavam a cigarros comuns. Na segunda, os dispositivos ganharam a aparência de canetas esferográficas e traziam cartuchos recarregáveis. A terceira era composta de equipamentos com reservatório, também chamados de “mods”. E a última geração é a dos “pods”, esses que lembram pen-drive e costumam apresentar maior concentração de nicotina.
“Um único cartucho desses cigarros eletrônicos pode conter a mesma quantidade de nicotina que um maço inteiro”, compara Mariana Pinho, coordenadora do Projeto Tabaco da ACT Promoção da Saúde.
Se você ainda tem dúvida e pensa que esse jeito mais moderno de fumar é menos prejudicial, então vale a pena ouvir quem fez uso e se arrependeu. Caso do cantor Zé Neto, da dupla com Cristiano, que chegou a se submeter a um tratamento para se recuperar de um “problema sério no pulmão”. “É um cigarro como outro qualquer. E faz mal do mesmo jeito. Ou até mais”, alertou.
Quem se arrisca?